Pedro Sena-Lino: "Assustou-me a fragilidade do marquês de Pombal"

A biografia definitiva do marquês de Pombal acaba de ser publicada: De quase Nada a quase Rei. Escrita por um português que seguiu o conselho de um primeiro-ministro e foi ensinar a língua portuguesa na Bélgica.

Não é a primeira biografia do marquês de Pombal mas pelos próximos anos a investigação profunda e ampla do autor, Pedro Sena-Lino (n. 1977), deverá ser a última. A partir desta obra, De quase Nada a quase Rei, que expõe em 600 páginas - mais 30 de notas - o percurso de vida de uma das figuras mais polémicas e marcantes da história de Portugal, o que fica a faltar para se ajuizar o marquês de Pombal é muito pouco.

Segundo o autor, atualmente "exilado" em Bruxelas desde 2014, desde o período que coincidiu com o convite do primeiro-ministro para que os portugueses procurassem oportunidades fora do seu país, é impossível abarcar tudo o que se deseja: "Fica sempre muita coisa por contar de uma vida de mais de 80 anos e resumida em 600 páginas." Nada que o deixe insatisfeito, até porque era seu desejo biografar a vida com acesso a documentação inédita, ou pouco consultada, que se encontra nos arquivos de Londres e de Viena, entre os quais muitos manuscritos do próprio e outros de dignitários contemporâneos que o referem.

Pedro Sena-Lino tem uma vasta obra publicada, mas De quase Nada a quase Rei é o seu primeiro fôlego gigante neste género, o da biografia literária. Inesperadamente, os leitores acorreram às livrarias e empurraram este novo título de imediato para o primeiro lugar das tabelas de vendas de livros. Estranhamente, a comunicação social interessou-se também pela vida do marquês de Pombal e entrevistas, artigos e resenhas fizeram o pleno como é raro verificar-se no país perante um livro.

O autor nasceu em 1977 em Lisboa, foi seduzido pela vida religiosa após uma viagem a Israel aos 14 anos, publicou vários volumes de poesia e ficção. Doutorou-se em Literatura Portuguesa do Século XVII na Faculdade de Letras de Lisboa. Atualmente, reside na Bélgica - com duas gatas, Sascha e Poppy - e é professor assistente na Universidade de Gante.

Como explica que a sua biografia sobre o marquês de Pombal tenha chegado logo na primeira semana ao primeiro lugar de vendas em Portugal?

Nunca pensei nisso, mas o que aconteceu vem confirmar que não conhecemos as nossas personagens históricas, nem no seu lado humano nem no percurso de vida. Tem havido algumas biografias sobre o marquês de Pombal ao longo do tempo mas são feitas por especialistas que, tendo incontáveis qualidades, diferem das biografias literárias que têm a capacidade de reunir situações que essas não são capazes. E as literárias atingem diretamente o coração dos leitores, que estão ansiosos por conhecer os que fizeram parte da sua história. Essa deve ser a principal razão.

Porquê Pombal?
Haveria muitas respostas, mas como biógrafo interessa-me o retrato do percurso de vida de algumas figuras históricas, designadamente as que impuseram a sua forma de viver e como nós as vimos hoje. Interessou-me o marquês de Pombal porque parecia-me ser um dos fantasmas que nós não conhecemos senão através de construções feitas sobre ele. Enquanto seu biógrafo, usei um conjunto de armas mais amplas para o descrever, como as de um escritor e mesmo as de um psicólogo.

Qual foi o maior desafio desta figura?
O desafio maior foi construir uma narrativa a partir das fontes. Então, procurei resumir as cartas do próprio, de segundos e até de terceiros, de modo a criar uma primeira narrativa que acompanharia o fio da história, sempre tendo em conta onde vivia em determinados momentos: Inglaterra, Áustria e, claro, Portugal. Em seguida, tive de desbastar essa primeira versão e torná-lo mais aberto a quem conhecesse pouco de história ou estivesse apenas com curiosidade em saber quem era o marquês de pombal. Uma coisa é certa, não quis que a biografia tivesse uma única vírgula de ficção.

O que mais o surpreendeu durante a investigação e a escrita?
Sem dúvida, o tempo de Pombal enquanto embaixador em Viena, devido à fragilidade humana, afinal ele está sempre acossado e é maltratado por Lisboa durante o tempo em que está nas embaixadas portuguesas pois não lhe dá respostas a tempo. Vê-se que procura fazer o seu trabalho e falha em alguns casos por essa razão e também porque não acompanham a sua visão, além do jogo de invejas e de maldades que lhe são feitas diretamente em Portugal nas várias fases como embaixador. Essa foi uma perceção que me assustou bastante: a fragilidade do marquês de Pombal perante os obstáculos colocados enquanto está fora do país. Que impediam várias situações importantes para Portugal, como a de ter podido promover grandes conversações europeias para a paz entre Áustria, Espanha e França, mediadas por Portugal, e que não aconteceram porque os inimigos do marquês de Pombal não o permitiram.

Durante a investigação leu alguma biografia anterior que considerasse satisfatória?
O meu método de trabalho fez que no início não lesse nenhuma biografia sobre o marquês de Pombal. Comecei por ir diretamente às fontes e aos manuscritos - que é a minha experiência enquanto investigador - e por não querer ser perturbado por nenhuma ideia prévia, além das que tinha como português e apreciador de história, que outros biógrafos tivesse e impusessem na minha cabeça. Procurei encontrar a sua voz nos primeiros e mais fiáveis manuscritos que existem sobre ele, que são os seus despachos enquanto embaixador. Só depois, para aclarar zonas da sua vida e verificar as construções que são feitas pelo próprio mais tarde, é que me pus a ler outras biografias. Praticamente todas, quer as ainda do século XVIII, bem como aquelas até ao século XX. Aliás, neste último período há uma excelente biografia, a de João Lúcio de Azevedo.

E as biografias de Camilo Castelo Branco ou a de Agustina Bessa-Luís?
Também as li já no final do trabalho de investigação, porque quis perceber qual a imagem que os outros biógrafos tinham dele.

São fiéis ou pouco credíveis?
Sobre a credibilidade não posso pronunciar-me pois são duas obras marcadas pelo seu tempo e com outra forma de fazer. A do Camilo é uma biografia ad hominem, completamente contra o marquês de Pombal, e interessou-me nesse sentido. Cito-a no meu livro para se perceber a anticonstrução que se fez de Pombal durante algum período após a sua morte. A do Camilo vem coroar uma série de biografias contra o marquês e que procuram dar um retrato negativo, puxando por aspetos da sua personalidade e do seu trabalho. É diferente da de Agustina, que é feita no contexto do centenário e tem características muitos pessoais da escritora.

No seu caso não pretendia estar antecipadamente contra Pombal?
De todo, o que procurei foi saber quem era este homem antes de ele próprio ser ele próprio. É a pergunta que o biógrafo tem de fazer, aliás a mesma que todos nós fazemos na nossa vida. Queria saber como é que esta pessoa começou a ser ela própria, qual foi o trampolim que levou esta figura a ser deste modo. Foi o que procurei fazer, sobretudo através dos seus manuscritos.

Não podia ser de outro modo?
Não, e explico porquê. Temos um rapaz de 38 ou 39 anos que tinha saído do campo e voltado a Lisboa, sem grande currículo e que está a escrever os seus primeiros ofícios numa das cidades - e das embaixadas - mais importantes do mundo, pelo menos para o rei de Portugal. Aqueles ofícios revelam, na escolha de palavras, nos receios e nas descrições, um retrato direto desse rapaz acossado e que sabe que está num cargo importantíssimo e teme não ser capaz de o exercer. Procurei esse retrato para depois iluminar o seu outro lado, até porque esse foi sempre o período menos trabalhado em todas as biografias. Comprovei-o na minha leitura feita mais tarde dessas biografias.

Sentiu necessidade de "eclipsar" o terramoto de 1755, o ódio à Companhia de Jesus, a perseguição aos Távoras, para dar um Pombal mais completo?
A biografia tinha um limite de páginas e o mais importante era focar-me no período até que Sebastião José atinge um poder quase total e já é secretário de Estado do rei. A partir daí, existem obras muito completas de historiadores que estudaram o reinado de D. José. A minha intenção era tratar daquilo que poderia fazer falta, a imagem do pré-Pombal.

O marquês de Pombal é descrito por um inglês que esteve em Portugal como invejoso e malformado pelas seguintes palavras: "cobiça das riquezas" e "ruins estudos". Concorda com essa visão?
Essa é uma questão extremamente difícil de responder. O que consigo compreender em relação aos "ruins estudos" tem que ver com a opinião que os seus contemporâneos em Londres e Viena - embaixadores e ministros estrangeiros - e com quem trabalhou davam: precisamente a imagem contrária. Que era um homem a que os ingleses chamaram o enviado letrado e louvam o seu trabalho. Diziam que chegava às reuniões com os tratados anotados e citava obras de direito internacional, portanto, penso que é um homem de estudos apurados e que se preparava muito bem. Os primeiros anos do reinado de D. José são também momentos em que ele faz reformas, sobretudo ligadas ao Brasil, muito bem pensadas. Daí que os fracos estudos não sejam verdade na minha opinião e pelo que é provado. Se na parte final da vida, já com o poder total, continuava a estudar não sei dizer, até porque com o passar da idade os interesses vão diminuindo.

A entrada precoce para a Academia Real de História dá fim ao seu tempo de agricultor e permite-lhe sonhar com o poder. Podia acender-se a esse lugar sem uma boa formação?
Sem dúvida. Procurei se tinha havido casos de outros académicos sem grande currículo nomeados e, de facto, ele não tinha sido caso único. É convidado para a Academia porque o presidente da instituição dava-lhe uma certa proteção e continuou a fazê-lo durante a sua ascensão. Contudo, vê-se bem nas suas análises e em documentos diplomáticos que tem conhecimentos históricos, tanto de história universal como da política europeia. Não esquecer que esses estudos eram também marca da família, como era o caso do pai e do avô, num tempo em que a ascensão social resultava do conhecimento. Desde cedo que o marquês percebeu que sem estudos não iria ascender socialmente.

A biografia foca-se muito na vida pessoal de Pombal. Foi difícil pôr-se na sua pele?
Posso dizer que até muito tarde tentei compreendê-lo, mas não sei se o biógrafo tem de entender totalmente quem está a biografar. Se o compreendo, corro o risco de o reduzir, então, tem de continuar a ser um mistério para mim e para me obrigar a perceber quem foi essa pessoa. Quis que os dados da investigação, as vozes do próprio e de outros que o conheceram e os documentos da época, que tudo isto pudesse passar a imagem da figura. Esta é uma biografia da vida dele e faço escolhas. Ele foi secretário de Estado e é por isso que o conhecemos, mas também embaixador, filho, pai e avô, todos aspetos que estão retratados.

Nos agradecimentos refere "os que tentaram perturbar, limitar e impedir este livro". Quem acusa?
Esse é um agradecimento que pela primeira vez pus num livro mas sempre o disse em sessões de lançamento de outros livros. Como devido à pandemia não existem apresentações físicas, senti-me na obrigação de agradecer aos que nos tentam dificultar os caminhos. Também merecem ser agradecidos, porque os obstáculos que colocam criam novos desafios, evitam os caminhos já percorridos e obrigam a procurar algo que tenha estado escondido.

Alguma vez se sentiu um obstáculo ao seu próprio trabalho?
Eu tentei não ser um obstáculo, tanto que procurei olhar para o marquês de Pombal embaixador no contexto inglês e para o enviado no contexto vienense. Essa é uma dimensão cultural que eu, como português, não posso ter, talvez só como estrangeirado. Portanto, procurei sempre que a minha própria visão não perturbasse a investigação e compreendesse sim os ângulos em que ele estava.

Considera que fez uma "pesquisa da verdade num tempo de desverdades". A verdade histórica já não é uma exigência?
É sim, esse é o objetivo de qualquer biógrafo. Trata-se de uma pesquisa da verdade em várias camadas; encontramos primeiro a verdade que o próprio queria passar sobre si próprio. Que no final da vida é bem conhecida e desencadeou muitas das biografias escritas mais tarde ao fazer a revisão do seu ministério com manifestos exageros e especulações em vez da realidade. A imagem do próprio é uma coisa com que o biógrafo tem de lidar e contornar, pondo-o ao espelho perante a cronologia da sua vida e dos seus fantasmas. E, para não falar em mais níveis de verdade, interessava-me perceber que marcas ficaram do percurso de alguém que teve um impacto tão grande na vida nacional.

O que observou?
Vi que havia muitas pequenas desverdades que foram usadas no seu tempo. Como a grande violência que sofreu, a um nível inusitado. Foi um homem que sofreu muitíssimo com os obstáculos que lhe foram colocados na vida profissional pelos outros, além de campanhas de assassinato de carácter e de vários atentados. Uma situação extremamente rara em Portugal e que nunca foi estudada o suficiente.

Pode dizer-se que Pombal é um biografado ainda mais complexo pois é ele próprio um revisionista da sua biografia?
Sim, ele revê a sua biografia no final da vida e aumenta e diminui situações. Sublinhei vários aspetos importantes no livro, casos em que é completamente omisso como a primeira parte da sua vida. Podem ter desaparecido documentos, talvez por culpa do terramoto, mas tudo leva a pensar que a primeira parte da sua vida não foi tão virtuosa assim. Dou um exemplo: ele diz que foi nomeado como embaixador para Londres para rever as relações comerciais, o que não tem lógica porque nunca poderia ter sido nomeado para uma situação destas. Ele modificou a sua própria vida, vitimizando-se.

Compara a composição do governo de D. Maria I com a "renovação na continuidade" de Marcello Caetano. Estes paralelismos servem para facilitar a vida ao leitor?
Tentei não fazer comparações com o tempo atual, nem sequer o imediatamente posterior. Nesse caso, usei por achar que, para a maior parte dos leitores que não conheçam Pombal e o tempo de D. Maria I, poderia ajudar um pouco a compreender o que se passou. Creio que foi o único salto ao século XX que fiz.

Já que falamos de Estado Novo, reproduz uma carta de Pombal que faz lembrar o perfil que Salazar deixa para a história. Sentiu a "presença" do ditador enquanto trabalhava na biografia?
Lá mais para o final da vida do marquês de Pombal, quando revê a sua história, ele observa-se como um servidor honesto que viera praticamente do nada, uma pessoa exemplar, que fez o que o rei pediu, que cumpriu a sua missão e foi alguém que viveu à margem dos grandes, subindo graças ao seu trabalho. Essa imagem corresponde à de alguns políticos que gostam de se ver como antipolíticos e, sem dúvida, que é o retrato a partir do qual outros políticos construíram a sua imagem em Portugal. Até aí posso afirmar.

Face ao exemplo de Pombal, pode dizer-se que o país nunca foi muito de agradecer a quem o tem governado?
Não sei nem nunca pensei na questão dessa forma. Creio que no caso do marquês de Pombal esse agradecimento é muito difícil. No entanto, há uma imagem que não me sai da cabeça, que foi o autêntico virar de página do país durante a vida e o ministério dele. Ao sair de um período do final do reinado do D. João V, em que há muito atraso sob vários pontos de vista, entramos no de D. José, mas quando se entra no de D. Maria sentimos que estamos claramente a entrar no século XIX e que houve uma grande mudança. Pombal traz reformas que dão a sensação de um virar de página e da chegada de um tempo novo nas ideias e no avanço civilizacional, mesmo que com violências inqualificáveis

O século XX não olhou com bons olhos esse virar de página?
A forma como Pombal foi considerado mais tarde sai do âmbito da minha biografia e essa construção posterior interessou-me menos. Vou até à sua morte e pouco mais. Estive focado até àquele que foi o último dia da sua vida.

DE QUASE NADA A QUASE REI
Biografia de Sebastião José de Carvalho e Melo,
Marquês de Pombal

Prefácio de Rui Tavares
Editora Contraponto
624 páginas

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