De olhos postos no petróleo e no gás natural que está escondido sob as águas do Mediterrâneo, Israel e o Líbano viram as costas a décadas de conflito - tecnicamente ainda estão em guerra - e começam nesta quarta-feira a negociar para ultrapassar o diferendo sobre as suas fronteiras marítimas. O diálogo, que surge após três anos de pressão dos EUA, será mediado por Washington e pelas Nações Unidas..As apostas são elevadas, mas não se esperam milagres. "Não estamos a falar de negociações de paz e de normalização das relações, mas de uma tentativa de resolver uma disputa técnica, económica, que há dez anos atrasa o desenvolvimento dos recursos naturais offshore", escreveu no Twitter o ministro da Energia de Israel, Yuval Steinitz, falando na necessidade de ser "realista"..O Hezbollah, movimento xiita apoiado pelo Irão que nasceu para lutar contra a ocupação israelita do Líbano e se transformou num partido político apesar de ser considerado uma organização terrorista pelos EUA, deu o seu aval. Mas lembrou que não estão em causa negociações de paz.."Apesar de toda a conversa que tem gerado, o acordo para negociar diz respeito às fronteiras marítimas e em reclamar a nossa terra, para delinear a nossa soberania nacional", disse a ala política do grupo num comunicado, lembrando que não tem nada que ver com a normalização de relações que outros países árabes alcançaram com Israel - os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein..Os EUA, que têm pressionado para uma solução não só para a fronteira marítima mas também para a terrestre, congratularam-se com o anúncio de um acordo para negociar, feito pelo presidente do Parlamento libanês, Nabih Berri, a 1 de outubro. O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, falou de "acordo histórico"..Segundo o The Times of Israel, a equipa de negociadores israelita é formada por seis pessoas, incluindo o diretor-geral do Ministério da Energia, um conselheiro diplomático do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e um estratega militar..Já a equipa libanesa, de apenas quatro pessoas, inclui dois militares e dois civis (o principal geólogo da petrolífera estatal e um perito em fronteiras marítimas), tendo sido alvo de discussão entre as várias forças políticas, que não conseguem chegar a acordo para a formação de governo. No passado, Beirute já recusou propostas negociadas pelos EUA de ficar apenas com entre 52% e 60% da área em disputa..As negociações vão decorrer de forma indireta, com ambos os lados a falar através dos mediadores da ONU e dos EUA, apesar de estarem na mesma sala, na cidade libanesa fronteiriça de Naqoura. É a sede da missão da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL, na sigla em inglês), que foi criada em 1978 e tem atualmente mais de dez mil homens de 45 países na região..A guerra entre os dois países tem as suas raízes nos ataques fronteiriços a partir de 1968, que opunham israelitas e membros da Organização da Libertação da Palestina refugiados no Líbano, ganhando força com a invasão de Israel em plena Guerra Civil no vizinho do norte em 1978 e depois novamente em 1982..Três anos depois, nascia oficialmente o Hezbollah, o movimento xiita libanês patrocinado pelo Irão para lutar contra a invasão que mais tarde se transformaria num partido político (atualmente parte do governo). Nos EUA, são considerados um grupo terrorista (também na União Europeia, a ala militar)..Israel recuaria para a fronteira designada pela ONU apenas em 2000 - é a chamada "linha azul". Mas a captura de dois soldados israelitas por parte do Hezbollah em 2006 acabaria por levar aos 34 dias da guerra do Líbano. Apesar do cessar-fogo, mantém-se a tensão na região fronteiriça, com ataques israelitas em território libanês e ataques com drones libaneses a alvos israelitas..A disputa na fronteira marítima é mais recente do que a guerra que já dura há mais de meio século. Em 2011, Israel e o Chipre assinaram um acordo em relação à sua própria fronteira no Mediterrâneo, usando como referência o acordo que tinha sido alcançado quatro anos antes entre o Chipre e o Líbano - mas que nunca chegou a ser ratificado pelo Parlamento deste país..O Líbano disse então às Nações Unidas que a sua fronteira marítima tinha mais 860 quilómetros quadrados para sul da linha estabelecida em 2007 com o Chipre, mas Israel não concordou. Por essa altura, já tinham sido descobertos importantes campos de gás natural sob o Mediterrâneo, nomeadamente nos campos de Tamar e de Leviathan..O Líbano dividiu a sua zona económica exclusiva em dez áreas de exploração, tendo aprovado em 2018 licenças para a italiana ENI, a francesa Total e a russa Novatek que incluem parte do território em disputa com Israel e estão por isso em suspenso. Daí que um acordo seja mais importante para o Líbano do que para Israel, que já procede a explorações noutros lados..Não são só israelitas e libaneses que têm disputas com as fronteiras marítimas no Mediterrâneo. Turquia, Grécia e Chipre também disputam os direitos de exploração de outras áreas..Grécia e Turquia: gás natural no Mediterrâno incendeia velhas rivalidades entre aliados da NATO.Em crise política há décadas por causa de um complicado sistema de distribuição do poder com base na confissão religiosa, o Líbano viu a situação piorar ainda mais com a explosão que destruiu o porto de Beirute e fez quase duas centenas de mortes em agosto..O Líbano está não só pressionado pela comunidade internacional, nomeadamente a França, para efetuar reformas políticas e assim desbloquear o dinheiro dos doadores, mas também sob a pressão dos EUA. Washington ainda no mês passado sancionou um dos principais assessores de Berri por corrupção e financiamento ao Hezbollah..O país terá assim optado pelo diálogo, mesmo que seja apenas para acalmar a situação antes das presidenciais norte-americanas. O líder do Parlamento é do partido xiita Amal, aliado do Hezbollah, tendo bloqueado uma rápida solução para um governo que pudesse implementar um plano de reformas..O primeiro-ministro que tinha sido designado em final de agosto, Mustapha Adib, demitiu-se em finais de setembro por não ter conseguido fazer aprovar o executivo..Novas consultas serão empreendidas pelo presidente Michel Aoun nesta semana para designar um novo líder do governo, com o ex-primeiro-ministro Saad Hariri (filho do falecido Rafic Hariri) a mostrar-se disponível para ocupar o cargo, de onde saiu há um ano por pressão das ruas..É no meio deste caos político, ao qual se junta o caos económico que a explosão de Beirute apenas acentuou, que o Líbano concorda negociar com Israel..Os israelitas também passaram por um período político conturbado, com duas eleições que não ofereceram uma maioria suficiente para governar. À terceira, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu concordou numa partilha do poder com o principal opositor, Benny Gantz, que irá assumir a chefia do governo na segunda parte do mandato e serve atualmente como ministro da Defesa..Para Israel, o único obstáculo é não parecer que está a negociar diretamente com o principal inimigo: o Hezbollah (que faz parte da coligação de governo no Líbano).