"A matemática está em toda a parte" é o tema do Dia Internacional da Matemática, que se celebra hoje pela primeira vez. 14 de março escreve-se na nomenclatura anglo-saxónica 3/14, os primeiros algarismos da expansão decimal do número pi, um número especial para os matemáticos. Onde encontramos a matemática, disciplina temida por tantos alunos portugueses, mas que faz parte da nossa vida mesmo quando não damos por isso, foi o ponto de partida para a conversa com Fabio Chalub. O brasileiro português, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, presidente do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, onde leciona desde 2005, foi o único matemático português a fazer parte da comissão que criou com a UNESCO o Dia Internacional da Matemática.."A matemática está em toda a parte" é o tema do primeiro Dia Internacional da Matemática. Está em toda a parte como? Haverá um tema em cada ano e o tema definido para este primeiro ano, até pela carga simbólica, foi esse, para mostrar que a matemática está em todos os lugares, até nos menos óbvios e mais inesperados. Alguns dos eventos que tínhamos preparado e que foram cancelados por causa do covid-19 eram sobre música, que tem uma relação muito forte com a matemática, sobre história e os calendários, sobre as calçadas de Lisboa e os seus padrões de simetria, havia concursos de piemas - poemas que ajudam a memorizar o decimal do pi..A criatividade é uma característica raramente associada à matemática. O cientista em geral e o matemático em particular tem uma tendência para limpar muito o discurso. Erramos 99 por cento do tempo e quando acertamos é só isso que divulgamos, tudo muito bem encadeado para uma conclusão. Mas a essência do resultado está nos 99 por cento de erros até chegar a uma ideia certa e isso pressupõe muita criatividade..O novo coronavírus domina neste momento a nossa vida e está a condicionar tudo, até o Dia Internacional da Matemática. Que papel pode a matemática desempenhar no controlo da epidemia? A epidemiologia é uma área clássica da matemática. Tem saído em muitos jornais o tal do R0, que, grosso modo, é o número de infetados secundários que um infetado primário gera, supondo que ninguém tem imunidade na população. Este conceito foi inventado por um médico matemático que estava a tentar criar um modelo para o estudo da malária na Índia. Este é um estudo clássico de epidemiologia e teve uma conclusão que é importante para qualquer epidemia: não era preciso acabar com todos os mosquitos, que era o que as pessoas pensavam naquela época, para interromper a transmissão da malária bastava descer de um número crítico para que cada pessoa passasse a infetar menos do que uma e a doença acabava por desaparecer sozinha. Esta é a ideia central da vacinação, não é necessário vacinar cem por cento da população, basta um valor crítico para que o número de pessoas imunes à doença faça que cada um infete menos do que um. No momento em que existir uma vacina para o covid-19, a estratégia de vacinação vai ser essencialmente uma questão matemática: quantas pessoas temos de vacinar e onde temos de o fazer..E enquanto não chega uma vacina? Na primeira linha de defesa estão os médicos. Os matemáticos podem ajudar nas estratégias de contenção e nos estudos epidemiológicos. Mas há algumas questões matemáticas que já são mais ou menos óbvias. Por exemplo, no início falava-se num índice de mortalidade de um por cento, agora já se fala em quatro por cento. Não é preciso ser matemático para se perceber que estes cálculos não podem fazer-se no início de uma epidemia. Isso só pode ser calculado quando a epidemia está estabilizada..Em que momentos da história a matemática já nos salvou a vida? Do ponto de vista coletivo? A primeira coisa que me vem à cabeça são as guerras, mas nas guerras ela salva uns e mata outros. Mas estou a lembrar-me de um bom exemplo. Há uma área na matemática que é a teoria de jogos, que tem que ver com o pensamento estratégico e foi muito desenvolvida durante a Guerra Fria, no conflito entre Estados Unidos e União Soviética, e o facto é que este foi um conflito que acabou sem mortos, pelo menos diretos, em combate..Ninguém carregou no botão vermelho. Exatamente. E para isso foi preciso muita matemática. Outras situações em que os matemáticos atuaram e salvaram vidas foi na questão das vacinas, de que já falámos. O planeamento de vacinação para erradicar a varíola levou em consideração muitos modelos matemáticos, assim como o combate à tuberculose resistente. A medicina tem muita matemática..Na questão das alterações climáticas, a matemática também tem tido um papel importante para alertar que estamos a chegar ao limite. A questão central nesse caso tem que ver sobretudo com reconversão energética mais do que com modelos matemáticos. A matemática pode ajudar, mas não é a questão central. Aquilo em que a matemática ajuda é a fazer que essas fontes alternativas de energia sejam economicamente viáveis e numa melhor distribuição. Mas sim, como fonte de alerta tem sido importante e todos os modelos matemáticos dizem a mesma coisa: como está, vai muito mal, no nível atual de poluição, vamos atingir um ponto de não retorno em 30 anos..Uma das áreas em que a matemática é fundamental é na inteligência artificial. Não teme que os matemáticos sejam substituídos por máquinas? O meu objetivo central na vida é ser substituído por uma máquina [ri-se]. Falando sério, não, não temo que os matemáticos venham a ser substituídos por máquinas, não tenho nenhum medo da inteligência artificial. Assim como a revolução industrial não gerou o desemprego que as pessoas pensam, isso não acontecerá com as novas tecnologias. Há trabalhos que desaparecem e outros são criados. O que é importante é que exista uma adaptação à tecnologia digital e que o computador e a inteligência artificial sejam encarados como nossos aliados. Se os olharmos como inimigos e lutarmos contra eles, vamos perder, por isso o melhor que as novas gerações têm a fazer, em relação à inteligência artificial especificamente, é entender como trabalhar com ela. Os computadores foram inventados por matemáticos, por isso não temos medo deles..Há uma certa "matematicofobia" em Portugal e talvez no mundo inteiro. Para a maioria dos alunos portugueses ainda é uma dor de cabeça. Porquê? Eu acho que isso já está a ser contrariado. Dou aulas aqui desde 2005 e é incomparável o nível matemático dos miúdos agora e quando comecei: é muito melhor hoje. Sou vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática e tenho orgulho na forma como esta se posicionou nas discussões em relação à importância do conteúdo matemático na formação dos professores, que é fundamental nesta mudança. Portugal fez uma trajetória muito positiva nos últimos dez, 15 anos, e não me parece que esteja associado a um governo específico, embora tenha as minhas dúvidas sobre as últimas reformas do atual ministro da Educação, que diminuem um pouco o conteúdo matemático em sala de aula. A questão central, no entanto, é sempre a formação dos professores e a verificação do que os alunos aprenderam e nesse sentido acho importante que estejam habituados a ter avaliações, exames e tenham noção de que é uma área de conhecimento em que é preciso perceber bem o que é o certo e o errado e não se tudo vale a pena quando a alma não é pequena, apesar de o mesmo poeta ter escrito sobre a beleza do binómio de Newton, que é um dos poemas de que eu mais gosto. Voltando da divagação, pelos alunos que tenho tido nos últimos anos, acho que o ensino da matemática tem melhorado incomparavelmente..Números, estatísticas, cálculo de probabilidades. Como é que ser matemático influencia a forma como vê o mundo e se relaciona com ele? Essa pergunta lembra-me um estudo americano que é publicado todos os anos sobre as melhores profissões. Em geral, os matemáticos e as profissões relacionadas com a matemática estão muito bem cotados e não é só pela questão salarial. Associado a isso, muitas empresas têm matemáticos em funções de aconselhamento e geralmente é porque estes têm um tipo de raciocínio diferente - colocam os problemas num certo nível de abstração, abrindo o leque de soluções e respondendo de forma mais adaptável a situações novas. É o que falávamos no início sobre o novo coronavírus. Não sou especialista em epidemiologia, mas os matemáticos têm a capacidade de olhar as epidemias do passado e perceber o padrão, perceber a essência, criar o modelo e aplicar o modelo numa situação nova..E do ponto de vista pessoal? Uma das consequências da matemática do ponto de vista pessoal foi que me tornei muito mais rigoroso na leitura de informações em geral. Como matemáticos, estamos muito habituados a colocar as hipóteses e fazer a dedução com cuidado e não simplesmente ceder à primeira impressão. As duas coisas que a matemática ensina de um ponto de vista não técnico são o rigor e a capacidade de abstração..Seria útil que os políticos tivessem sempre um matemático por perto? Seria muito útil. A Comissão Europeia tinha um matemático entre os seus conselheiros, que acabou por se tornar também ele um político e é candidato à presidência da Câmara de Paris, que é o Cédric Villani. É uma coisa que beneficiaria o país, sim, mas também é preciso ter matemáticos com mais disposição para falar de problemas concretos, porque os matemáticos têm muita tendência a fechar-se nos seus próprios problemas. Não é só o mundo que tem de se abrir aos matemáticos, os matemáticos também têm de se abrir ao mundo e o Dia Internacional da Matemática é também um momento para fazer isso, para os matemáticos ouvirem, além de falarem. Mais, quando falamos, que não seja apenas sobre o nosso mundinho e as nossas questões, mas também sobre o mundo lá fora e as soluções para o tornar melhor..Foi o único matemático português a fazer parte da Comissão de Gestão do Dia Internacional da Matemática. Como foi o processo de criação deste dia? Foi uma iniciativa da União Internacional de Matemática, que representa os matemáticos a nível mundial, e contactou os representantes nacionais dos vários países - em Portugal é a Comissão Nacional de Matemática -, e eu era vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática e, como na altura Portugal tinha recebido a vice-presidência da Comissão de Ciências da UNESCO, ficou muito interessado no projeto e tomou uma liderança muito rápida no processo. Eu participei na redação de uma primeira proposta de como seria o Dia Internacional da Matemática, quais os pontos importantes, o que deveria ser lembrado nesse dia e quando foi oficializada e formada a comissão de gestão, e acabei por ser convidado para integrá-la..O dia 14 de março não foi escolhido por acaso. Qual a razão? Um critério importante era ser bom para ambos os hemisférios, que é sempre uma questão central para os dias internacionais, outro era que fosse um dia culturalmente neutro, e houve um consenso em torno de um dia que já existia, que é o Dia do Pi, 3/14 (14 de março), que já era celebrado em vários países, inclusive Portugal..Qual a importância deste número? O pi é o primeiro número não óbvio com que uma criança entra em contacto. Uma vez mostrei à minha filha o livro O Homem Que Sabia Fazer Contas e ela olhou para o índice e perguntou: a história do número o quê? De todos os títulos foi o que chamou mais a atenção dela e faz sentido o Dia do Pi passar a ser também o Dia Internacional da Matemática e ser um dia de reflexão sobre esta ciência. Foi feito levantamento pela comissão de gestão dos eventos a nível mundial e Portugal estava em primeiro lugar. Agora, por causa do covid-19 muitos vão ser cancelados, mas continuará certamente a estar em primeiro lugar porque vão cancelar em todo o mundo mesmo. Será um dia em que os matemáticos falam para o grande público, mas também é importante que o oiçam, que é uma coisa que os académicos fazem pouco.