14 JUN 2021
14 junho 2021 às 05h00

Sete sinais de que Bolsonaro 'quer uma ditadura' no Brasil

Políticos, académicos e jornalistas acreditam que o objetivo do presidente é precipitar uma guerra civil ou um golpe militar que derive num regime autoritário, caso não se reeleja em 2022. Todos, no entanto, acham que ele não será bem-sucedido

João Almeida Moreira, São Paulo

Jair Bolsonaro tem como objetivo impor uma ditadura no Brasil, acreditam cada vez mais setores da política, da universidade e da imprensa. O homem que ao longo da carreira de deputado defendeu sem pudores o regime militar autoritário de 1964 a 1985 no país não terá, no entanto, apoio suficiente para cumprir o desígnio, concordam os observadores.

"A meta a alcançar é uma ditadura. Abertamente admitida pelos filhos do presidente. Tal projeto político pessoal e subversivo tem o fim imediato de interromper a alternância de poder caso Bolsonaro perca a disputa de 2022", escreveu a colunista Rosângela Bittar, no jornal O Estado de S. Paulo. Segundo entrevista do filósofo Marcos Nobre ao site Marco Zero, perdidas as eleições, "ele vai tentar um golpe com parte das Forças Armadas e parte das forças de segurança e quem mais ele conseguir armar". "Se ele vai ter força para o conseguir, é outra coisa", concede.

Nas linhas seguintes, o DN lista os sete sintomas mais citados de que esse pode ser o caminho traçado por Bolsonaro.

Em fevereiro de 2020, o número de homicídios no Ceará cresceu 471% face ao mesmo mês do ano anterior durante uma greve da polícia militar local por questões salariais. Cid Gomes, irmão do presidenciável Ciro Gomes, chegou a ser alvejado com dois tiros por grevistas ao tentar entrar à força no quartel.

Para o governo cearense, o movimento foi "influenciado por lideranças políticas da categoria próximas a Bolsonaro".

"Ele estimula a indisciplina dos escalões mais baixos da Polícia Militar", disse, a propósito, Vinícius Vieira, politólogo e especialista em relações internacionais, ao DN.

Para Marcos Nobre, "via-se ali o que aconteceu na Bolívia, em que o golpe de estado não foi dado pelas Forças Armadas, mas pelas forças de segurança em geral".

Com o aumento dos casos de polícia em redor de Jair Bolsonaro, como a investigação por corrupção ao senador Flávio Bolsonaro ou o inquérito parlamentar às fake news da campanha de 2018, apoiantes do governo foram às ruas 12 vezes, entre abril e julho do ano passado, exigir os fechos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, representantes máximos dos outros poderes.

A agenda das manifestações, que contaram sempre com o aval do presidente, chegou a incluir pedidos de "intervenção militar com Bolsonaro no poder" e "o regresso do AI-5", o ato institucional da ditadura militar que oficializou censura e tortura.

Sergio Moro, superministro da Justiça e da Segurança, saiu do governo, em abril de 2020, a acusar Bolsonaro de "interferência política na polícia federal" para defender a família, nomeadamente o primogénito.

Outra vítima dessas interferências é o COAF, o órgão de controlo de atividades financeiras que descobriu o caso de corrupção de Flávio, ao perder, no orçamento de 2021, os sete milhões de reais previstos para a modernização dos seus sistemas de controlo.

O governo investiu, no entanto, meio milhão de reais a rastrear os movimentos feitos pela Receita Federal (o fisco brasileiro) nas contas não só de Flávio como de toda a família presidencial.

E a ABIN, agência brasileira de inteligência, ocupou parte do seu tempo e meios a produzir documentos para defender o filho do presidente.

"O povo armado jamais será escravizado", disse Bolsonaro em janeiro deste ano, a propósito da votação na Câmara dos Deputados de políticas armamentistas.

Para Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa do governo de Michel Temer [ver entrevista], "a política armamentista de Bolsonaro pode gerar uma guerra civil no Brasil" e fazer com que o país "repita cenas como a da invasão do Capitólio norte-americano na eleição de 2022".

"É inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para "a defesa da liberdade" evoca o terrível flagelo da guerra civil e do massacre de brasileiros por brasileiros", sublinhou.

Dois meses depois, Bolsonaro tentou transferir o colapso no combate à pandemia para os governadores estaduais, partilhando dados falsos ou distorcidos nas suas redes sociais.

Para Fernando Abrucio, autor de "Os Barões da Federação", obra sobre a relação entre o governo central e os governos estaduais, o objetivo do presidente é levar o país "para o modelo de guerra civil federativa".

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, lembrou que "na cabeça do Bolsonaro, o modelo sempre foi o da polarização e não o do compartilhamento"

No final de março, Bolsonaro demitiu o ministro da defesa, general Azevedo e Silva, por este se ter mostrado mais fiel à neutralidade das Forças Armadas do que às ideias radicais do governo. Na sequência, os chefes dos três ramos - exército, marinha e força aérea - demitiram-se em solidariedade com o ministro, um facto inédito na história do Brasil.

A queda conjunta do comando militar foi descrita pela oposição como "preocupante" e "risco para a democracia".

O historiador Marco Antonio Villa, comentador da TV Cultura, foi mais longe: "Ele é um golpista, um nazi-fascista, que conspira contra a Constituição há 30 anos: ou a sociedade civil responde rapidamente ou ele vai tentar impor uma ditadura; vai perder, tenho a certeza, mas vai tentar impor. E pior: uma guerra civil. Ele quer jogar brasileiros contra brasileiros".

A catastrófica condução do ministério da Saúde pelo general no ativo Eduardo Pazuello, que recusou a compra de vacinas e outras matérias-primas essenciais no combate à pandemia mas investiu em medicamentos sem eficácia para a covid-19, levou à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Nela, Pazuello recusou-se a apontar Bolsonaro como responsável pelos erros fatais. Em troca da lealdade, o ex-ministro recebeu, além de um cargo no governo, convite para discursar num ato político, dia 23, no Rio de Janeiro, algo expressamente proibido pelo regulamento interno das Forças Armadas.

Dez dias depois, no entanto, o comando do exército inocentou Pazuello - "uma das páginas mais horrendas da história da instituição", escreveu no portal UOL o académico Vinícius Vieira.

"Abriu as portas em definitivo para que o atual mandatário do país transforme a força terrestre numa extensão de seu poder pessoal (...) a sigla EB não faz mais jus ao significado original - Exército Brasileiro. A partir de 3 de junho de 2021, deve ser entendida como Exército Bolsonarista, tal e qual uma milícia privada...".

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ENTREVISTA a RAUL JUNGMANN

Ministro da Defesa e da Segurança Pública de Michel Temer e ministro do Desenvolvimento Agrário de Fernando Henrique Cardoso

Foi um dos primeiros a alertar para o estímulo a uma "guerra civil" a propósito da política de armamento da população - por quais razões acha essa política perigosa?

Alertei para os riscos do armamento da população numa carta aberta ao STF porque o presidente da República tinha feito a passagem do tema, sempre muito candente no Brasil, para o terreno da ideologia. Ele disse que seria para a população defender a sua liberdade. Ora, se não existe nenhuma ameaça à democracia e tampouco uma ameaça externa, qual a justificação para se armar a população? Isso é muito grave, em primeiro lugar, porque significa a quebra do monopólio da violência legal do estado nacional e a certidão de nascimento de um estado nacional é exatamente ele deter esse monopólio. Em segundo, essa quebra de monopólio representa uma ameaça às nossas forças armadas. Em terceiro, a questão da guerra civil: embora não esteja no horizonte, o armamento da população sempre resultou em massacres, golpes, genocídios.

Bolsonaro tem ligações às milícias e histórico de declarações autoritárias. Por outro lado, tem havido manifestações com cartazes "intervenção militar com Bolsonaro presidente". Isso aumenta a sua preocupação?

Convivi com o presidente Bolsonaro por 12 anos na Câmara dos Deputados. Ele tem visão autoritária da sociedade e do estado. Antes e durante a campanha, ele sempre enfatizou medidas que feriam a constituição e a democracia. Quando chega ao poder, inicia ataques aos demais poderes, STF, Congresso e órgãos de controle. Faz-se necessário por isso a unidade de todas as forças democráticas do país, incluindo as armadas, para resistir a isso. O ministro da defesa e os comandantes dos três ramos foram afastados por não se disporem a endossar aqueles atos do presidente, um facto inédito no país.

O caso da não punição ao general Pazuello foi o sinal mais grave?

Sim. A não punição de um general no ativo por usar da palavra num ato político transgrediu o regimento disciplinar do exército. A sua punição era imperativa em defesa da hierarquia e da disciplina, os fundamentos de uma força armada em qualquer lugar do mundo e em qualquer momento da história. A não punição do general é um incentivo à anarquia nos quartéis. Eu não creio nela, porque mesmo apesar deste facto acarretar sequelas, não se pode concluir que as forças armadas não estejam alinhadas à Constituição e à democracia.

O que diria a quem considera "histerismo" esses gritos de alerta?

A presença, muito maior no governo de Bolsonaro do que em outros, de militares leva à confusão do governo com as Forças Armadas e tomam-se ministros, generais na reserva, como porta-vozes dessas forças, ora isso é excessivo. Porém, cabe o alerta: para começar, o Congresso devia votar para que se impedisse que generais no ativo participassem de qualquer governo, e depois partidos, associações, os media deviam fazer a defesa intransigente de ordem e hierarquia nas Forças Armadas, sem as quais ela não existe.