Muito antes de o chocolate se fazer moda e vício de gula nas cortes europeias dos séculos XVI e XVII, há que lhe encontrar a origem distante e tropical, ainda como semente de cacau. Na corrente cronológica que nos leva até ao berço do "alimento dos deuses", o Theobroma cacao, assim classificado para a botânica pelo taxinomista Lineu, há que atravessar o oceano. Um salto com a largura do Atlântico, do velho para o novo mundo, da Europa para o seio da floresta amazónica. Ali, temperatura, humidade, solo e luz solar congeminaram as condições ideais para que tenha vingado o cacaueiro. A escala de tempo desta origem supera a história. Há dez milhões de anos, o cacau "lutava por uma identidade própria, emancipando-se das outras plantas da sua família, as Malvaceae". Palavras que vertem do livro que Fátima Moura, investigadora da história da alimentação, deu aos escaparates em 2019. Do Cacau ao Chocolate, edição bilingue dos CTT, mereceu à autora uma viagem documental para nos traçar os primórdios, a disseminação e o consumo do cacau, a matéria-prima do chocolate. Alimento que é história, religião, rito, medicina, saudade, mas também puro deleite. Bem alimentar que há mais de 20 séculos inebria civilizações..Da sua origem no continente sul-americano, "o chocolate liga-se à civilização e a todo um novo mundo a partir do século XVI", ressalva Fátima Moura e recorda que Portugal não é alheio a este percurso: "O cacau é indissociável da nossa história. Jesuítas portugueses lançaram a sua produção no Brasil, na Bahia. Mais tarde, a decisão do monarca D. João VI, antecipando a Independência do Brasil [1822], determinou o envio de sementes de cacau para plantio nas ilhas de São Tomé e Príncipe." Momento inaugural do cacau no continente africano.."Ao iniciar a investigação para o livro, deparei-me com muita informação sobre os processos de transformação do chocolate. No entanto, o estudo sobre o papel português na produção e na expansão mundial do cacau merecera pouca atenção", adianta a investigadora..Mote para o périplo que levou Fátima Moura e o fotógrafo Mário Cerdeira numa viagem às latitudes equatoriais, nomeadamente ao pequeno território atlântico, ao largo da costa africana. Em São Tomé e Príncipe, a gastrónoma consultou o Arquivo Histórico local e deteve-se num dos traços do território, as gigantescas roças de cacau, ou "roças-mundo". Dois exemplos: as roças de Água Izé e de Porto Alegre "Quis perceber o que fez daquele território motor para tornar Portugal o maior exportador mundial de cacau no início do século XX", refere a também autora do livro Conversas de Café (2015)..O grande fruto ovoide de casca luxuriante, doce polpa esbranquiçada, "casulo" para as sementes - ou favas -, é de sabor complexo, como sublinha Fátima Moura: "Resulta da combinação de um total de mais de 600 compostos voláteis presentes na semente de cacau." O cacaueiro é, também, espécie caprichosa no que respeita às condições ideais para se desenvolver: "Cresce na cintura tropical compreendida entre os 10º e 20º a norte e a sul do equador e exige temperaturas médias anuais nunca inferiores a 21º C, humidade do solo e precipitações abundantes.".Fátima Moura olha para o chocolate a partir do seu terroir: "Atualmente, alguns fabricantes tiraram do rótulo a percentagem de cacau por desviar a atenção do ponto essencial, o sabor." Uma abordagem ao cacau que, defendem os chocolatiers, deve remeter para a importância da sua origem..Se a natureza congeminou para a complexidade do cacau, o homem tratou de o carregar para o patamar da cultura e da civilização. "As favas do cacau mereciam cultivo e utilização na Mesoamérica pré-colombiana. Isto pelo menos 1400 anos antes do nascimento de Cristo", sublinha a autora..Antes, porém, "os deuses tiveram de se esforçar para levar o cacau para norte, para o oferecerem aos povos da atual América Central. A descoberta de vestígios de uma antiga civilização, a cultura maia-chinchipe, entre o Equador e o Peru, pode indicar-nos o elo perdido entre o berço amazónico do cacau e o seu aparecimento na Mesoamérica", refere Fátima Moura..Milenarmente, nos territórios que hoje correspondem ao sul do México, Guatemala, El Salvador, Belize, parte das Honduras, Nicarágua e Costa Rica, as civilizações pré-maias, maias e astecas prestaram o seu culto ao cacau. A esta matéria-prima deram-lhe utilização culinária com engenho e criatividade, ao torrarem as sementes amargas do fruto do cacau, moendo-o para obter um pó. Adicionaram-lhe outros ingredientes, como a água, o milho, o mel, as malaguetas e a baunilha. A apetência humana por bebidas fermentadas terá mesmo levado os povos mesoamericanos na procura de um néctar alcoólico a partir do cacau..Em novembro de 1519, dois mundos apresentavam-se em Tenochtitlán, capital do império asteca, localizada a sul da atual Cidade do México. Frente ao imperador Moctezuma II postava-se Hernán Cortés, conquistador espanhol. O momento foi brindado com cacau. A Cortés não terá agradado a beberagem. Como também, 17 anos antes, ao navegador genovês Cristóvão Colombo, cuja frota fundeara no atual golfo das Honduras, não terá merecido particular impressão as sementes de cacau oferecidas por uma embaixada maia..Os europeus que farejavam o ouro das Américas não percebiam o valor presente e futuro do "ouro castanho", o cacau. Os astecas, contudo, veneravam uma matéria-prima que não cultivavam. O cacau chegava ao quotidiano daquele povo após longas e duras viagens. "Um comércio que era comandado pelos pochtecas, classe de mercadores astecas endinheirados. Em Tenochtitlán, as sementes de cacau eram armazenadas, depois vendidas em separado, de acordo com a sua qualidade. As melhores eram usadas como dinheiro. Um ovo de peru custaria três sementes de cacau", salienta a autora a obra Do Cacau ao Chocolate, título que em 2019 foi considerado "livro do ano", na área da gastronomia, na Portugal Cookbook Fair.."Já para os maias, o cacau era um alimento comum no quotidiano, não apenas das classes dominantes. Entre a população, entrava nas cerimónias de casamento, altura em que os noivos ingeriam a bebida de cacau. Como também era elemento simbólico - por exemplo, a espuma da bebida de cacau simbolizava a vida - e divino, com Quetzalcoàtl como entidade que enviou ao homem a cultura do cacau", sublinha a autora..Em cem anos, o cacau e o chocolate viam-se arrastados para a vertigem mundial do consumo e dos mercados. A globalização da história do cacau, com a sua entrada na Europa, faz-se no século XVI, com o estabelecimento de rotas comerciais entre as Américas e o Velho Continente. "Torna-se um produto mundial, tirando-o das regiões a que estava confinado, nomeadamente as civilizações maia e asteca. A Europa vai fazer do cacau, e depois do chocolate, um alimento de culto", finaliza Fátima Moura..De acordo com Fátima Moura, "se quer conhecer melhor o chocolate, comece por comprar tabletes pela sua origem, o chamado terroir. É costume considerar os melhores chocolates como sendo os Criollo, provenientes desta variedade de cacaueiro que se dá bem em altitude, sobretudo na América do Sul. Mas há que correr o mundo à procura de novos sabores. Esse mundo onde o cacau pode ser cultivado está limitado a uma região entre o equador e os 20º para sul e para norte"..Estabelecendo um paralelismo com o vinho, reforça a investigadora da história da alimentação, "há chocolates que são blends de cacaus de várias regiões e de diversas variedades de cacau, mas também há o equivalente aos grands crus: chocolates provenientes de uma única origem, que pode ser um país, uma região ou até uma fazenda". A joia da coroa destes, o Chuao, é proveniente de uma região situada entre o mar e a montanha no norte da Venezuela.."Mais uma vez, não se preocupe tanto com a percentagem de cacau, a menos que queira aventurar-se com os 100%, chocolates sem um grama de açúcar. Nem todos os cacaus podem ser usados para esta finalidade, alguns tornam-se difíceis de saborear", alerta a autora.."Já se quiser escolher um chocolate para fazer uma boa mousse, ou para o seu bolo de chocolate preferido, há que ter atenção ao que compra", aconselha Fátima Moura e acrescenta: "O essencial é comprar chocolate e não um sucedâneo. O primeiro tem manteiga de cacau, o segundo, outras gorduras, por exemplo margarinas. O sucedâneo é o que dá o mau sabor e a horrível textura àquelas mousses de chocolate que por aí proliferam nas tacinhas de inox.".Para "separar o trigo do joio" há que olhar para o rótulo, "onde só devem constar manteiga de cacau, pastas ou massas de cacau, eventualmente baunilha e um emulsificante. Se encontrou um chocolate de culinária que cumpra estes requisitos, não se preocupe muito com a percentagem de cacau", salienta a gastrónoma. "Se o chocolate tem 45% de cacau (o conjunto das pastas e da manteiga de cacau) significa que tem 55% de açúcar. Nada mais. Pode comprar um chocolate com 70% de cacau sem qualquer qualidade, e um de 50% com um sabor incrível", conclui.