Durante os últimos dez dias, a Bolívia esteve paralisada e em confrontos quase diários com as forças de segurança que chegaram ao ponto de um vazio de poder na segunda-feira..As acusações de fraude da primeira volta das eleições presidenciais de 20 de outubro foram o detonador de três semanas de manifestações e greves que culminaram com o pedido de demissão do presidente Evo Morales. O presidente concorria a um quarto mandato e, depois de levar uma vantagem de sete pontos percentuais com 84% de votos contabilizados (45,3% para 38,2%) para Carlos Mesa, o candidato conservador, o órgão eleitoral anunciou quatro dias depois que o dirigente ganhava à primeira com 47% contra 36,5% do adversário..A lei eleitoral boliviana estipula que uma segunda volta só se realiza com menos de dez pontos de diferença entre o primeiro e o segundo classificados.."Renuncio ao cargo de presidente", disse o cada vez mais isolado líder indígena de 60 anos, no poder desde 2006. "O meu pecado é ser indígena, ser produtor de coca.".A declaração de domingo à noite encerrou um dia marcado por nova violência nas ruas, um apelo da Organização dos Estados Americanos (OEA) para novas eleições e a demissão de ministros e deputados, incluindo o presidente da Assembleia Nacional, vítimas de ataques ou ameaçados. A estocada final foi dada pelo exército e pela polícia, que pediram a sua saída. O chefe do exército boliviano, general Williams Kaliman, pediu o afastamento de Morales "para o bem da Bolívia"..Evo Morales anunciou ainda no domingo à noite que um mandado de prisão "ilegal" foi emitido contra ele, o que foi negado pela polícia. No entanto, as autoridades prenderam a presidente do Supremo Tribunal Eleitoral (TSE), María Eugenia Choque, e o seu vice-presidente, por ordem do Ministério Público, que está a investigar irregularidades nas eleições de outubro..Na segunda-feira de manhã, o antigo presidente chamou "racistas e golpistas" a Carlos Mesa e a Luis Fernando Camacho, e instou-os a restaurarem a paz e a ordem no país. "Que assumam a responsabilidade de pacificar o país e garantir a estabilidade política", escreveu no Twitter..Horas depois agradeceu às manifestações a favor do seu governo "derrubado por um golpe cívico-político-policial que instaurou na Bolívia um regime de facto apoiado na violência e na repressão"..Morales também agradeceu aos principais dirigentes políticos que em lealdade o acompanharam na sua demissão. Na segunda-feira a Bolívia acordou sem líderes. Os sucessores previstos pela Constituição em caso de saída do presidente renunciaram todos, do vice-presidente Álvaro García ao presidente e vice-presidente do Senado e até ao presidente da Câmara dos Deputados..Na noite de domingo, Jeanine Añez a segunda vice-presidente do Senado, da oposição, reivindicou o direito de se tornar chefe de Estado de forma interina "com o único objetivo de convocar novas eleições". Mas a nomeação vai ser decidida pelo Parlamento, onde os apoiantes de Morales estão em maioria..No domingo à noite, milhares de pessoas invadiram as ruas do país para celebrar a partida de Morales, no que pensavam ser um novo capítulo depois da violenta onda de protestos em que três pessoas morreram e 383 ficaram feridas. Mas na segunda-feira a violência continuou em La Paz e em El Alto, cidade próxima à capital boliviana onde Morales é popular..Se a casa de Evo Morale e a da sua irmã foram invadidas e vítimas de saque, também as residências de personalidades opositoras a Morales foram incendiadas..Defensor da plurinacionalidade.O primeiro chefe de Estado indígena na Bolívia marcou uma mudança de paradigma num país no qual até 1952 os indígenas não tinham qualquer reconhecimento. Foi com Evo Morales que, em paralelo com uma política de esquerda alinhada com a Venezuela de Hugo Chávez ou a Cuba dos irmãos Castro, se levou a referendo uma nova Constituição..Em fevereiro de 2009, mais de 61% dos eleitores aprovaram o estatuto de Estado plurinacional da Bolívia, reconhecendo 36 populações do país. Ao mesmo tempo, a lei fundamental estabelece que os recursos energéticos não podem ser privatizados e as novas propriedades rurais ficam limitadas a cinco mil hectares..Entre a ajuda financeira da Venezuela no início de mandato e a abertura à exploração de matérias-primas, a Bolívia assistiu a um consistente crescimento económico e a uma melhoria dos indicadores sociais e de desenvolvimento humano. Por exemplo, a UNESCO declarou em 2014 que o país andino tinha erradicado a iliteracia. Nesse mesmo ano, o governo investiu 7,2% do PIB em educação (Portugal, nesse mesmo ano, gastou 4%)..Um contraste imenso com Isallavi, a aldeia sem luz nem água canalizada de Orinoca, na região de Oruro, no centro do país, que foi o local de nascimento de Morales, em 1959. Os seus pais, Dionisio Morales Choque e María Mamani, índios aimarás, viviam da plantação de batatas. Evo foi um dos três sobreviventes dos sete filhos do casal..Pastor de lamas.O pequeno Evo, que foi pastor de lamas, não teve uma infância fácil e conta que chegou a comer cascas de laranja atiradas pelas janelas dos autocarros. As secas e as geadas constantes, porém, obrigaram a sua família a mudar-se para a região do Chapare, em Cochabamba, tornando-se plantadora de coca..Em Oruro, onde estudou, trabalhou como padeiro e servente da construção civil. Foi em Cochabamba e com a plantação de coca que a sua vida mudou. Sindicalizou-se e, em 1981, foi designado secretário do Desporto do sindicato local, onde a paixão pelo futebol e a capacidade para organizar concentrações desportivas fez que fosse promovido a secretário-geral. Em 1988, esteve na linha da frente na Federação dos Cocaleiros, que esteve por trás de manifestações que interromperam estradas e bloquearam cidades em defesa dos direitos dos camponeses e dos mineiros. Foi ascendendo nos cargos relacionados com a defesa dos produtores da folha de coca, que eram reprimidos pelo governo..Em 1997 acabou por ser eleito deputado por Cochabamba através do Movimento para o Socialismo (MAS), o braço político do sindicato dos cocaleiros..Em 2005 quando foi eleito presidente, não representava apenas os produtores de coca, mas também os movimentos indígenas e a esquerda latino-americana. "A chegada de um indígena ao Palácio do Governo é um avanço histórico", reconheceu Carlos Mesa, o homem que o antecedeu e que agora disputou as eleições..A sua presidência foi também um marco de estabilidade, por muito controversa que seja a figura: até então a Bolívia teve uma média de um presidente em cada dois anos e conheceu 23 golpes militares..O governo de Evo Morales, também com a inclusão de indígenas, conseguiu um crescimento económico contínuo aliado a uma assinalável redução da pobreza e níveis recorde de reservas cambiais. Mais recentemente multiplicou acordos de investimento para a exploração de gás natural e de lítio, do qual espera tornar-se o quarto maior produtor até 2021.."Com a queda dos preços das matérias-primas, o governo foi forçado a pedir mais dinheiro emprestado e a recorrer a reservas. O modelo económico boliviano (baseado na exploração de matérias-primas), que funciona há anos, já não é sustentável", disse à AFP Michael Shifter, o presidente do think tank baseado em Washington Diálogo Interamericano..Colado à cadeira do poder.Reeleito em 2009, Evo Morales obteve um terceiro mandato em 2014, graças a uma interpretação contestada da Constituição, que permitia apenas dois mandatos consecutivos. O Tribunal Constitucional considerou então que esta era a sua primeira reeleição, tendo em conta que a Constituição foi alterada em 2009..Masa recandidatura ao quarto mandato foi a gota de água para muitos bolivianos. Em plebiscito em 2016, os eleitores votaram contra a hipótese, mas Morales ignorou o voto graças a uma contestada decisão do Tribunal Constitucional, que alegou o "direito humano" de Evo Morales a concorrer..Os seus críticos acusam-no de ter estabelecido um governo antidemocrático e que abandonou os valores defendidos, incluindo a defesa do ambiente e dos povos indígenas..Controverso entre indígenas e cocaleiros.Essa cisão já vem de 2011, quando os indígenas do parque Isiboro Sécure (conhecido também por Tipnis) foram reprimidos pela polícia por protestarem contra a construção de uma estrada no parque natural que se situa na Amazónia.."Nós, com muito respeito, vimos o seu rosto, porque o seu rosto também é o nosso rosto, o seu nariz é ligeiramente curvado por causa da nossa raça aimará, mas infelizmente estávamos errados, ele foi o nosso carrasco", disse de Morales Felipe Quispe, um antigo guerrilheiro que foi companheiro do vice-presidente Álvaro García Linera, à France 24..Nos últimos seis anos, o governo de Evo Morales aprovou quatro leis favoráveis à desflorestação, às queimadas e aos interesses da agropecuária..Também parte dos produtores de coca viraram as costas a Morales. Este acumulava a presidência do país com a liderança dos cultivadores de coca do Chapare, em Cochabamba. Os produtores da região dos Yungas reivindicam o direito e a tradição da produção de coca e acusam-no de favorecer os seus interesses..A maior parte da coca dos Yungas era legal e destinada a usos tradicionais, ao contrário da cultivada em Chapare, onde 90% não ia para os mercados tradicionais. Em 2017, os cocaleiros dos Yungas viram o governo aprovar a Lei da Coca que legaliza o cultivo na região de Evo Morales..Segundo o Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, uma percentagem estimada entre 28% e 42% da produção de coca na Bolívia comercializa-se de forma ilegal. .Em meados de outubro, em Santa Cruz, na região agrícola do país, uma manifestação indígena gritou a revolta contra a política ambiental de Morales. Os enormes incêndios de agosto e setembro causaram indignação entre os povos indígenas, que acusaram Evo Morales de sacrificar a Pachamama, a terra-mãe na língua quechua, para expandir a terra arável e produzir mais carne para exportar para a China. Morales mostrou-se contrário a declarar desastre nacional, apesar de uma área de 500 mil hectares - mais de cinco vezes a área de Portugal - ter sido afetada..É golpe.No domingo à noite, Evo Morales recebeu o apoio imediato dos presidentes cubano e venezuelano Miguel Díaz-Canel e Nicolás Maduro, assim como do presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, e dos ex-presidentes Lula da Silva (Brasil), Pepe Mujica (Uruguai) e Cristina Kirchner (Argentina). Na segunda-feira, o apoio veio de Moscovo, mas também da congressista norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez, da ex-presidente brasileira Dilma Rousseff ou do ex-primeiro-ministro grego Alexis Tsipras. Todos condenam o "golpe de Estado"..Na segunda-feira, o governo espanhol criticou o papel do exército e da polícia boliviana na renúncia do presidente Morales. E o México, presidido por Andrés Manuel Obrador, concedeu asilo político a Evo Morales.