Thurston Moore, fundador dos Sonic Youth, figura lendária da história do rock, símbolo de um som alternativo e experimental, está em Portugal. Este sábado (dia 13, às 21.00), numa iniciativa da Galeria Zé dos Bois, dará um concerto a solo (voz e guitarra acústica) na Igreja de Saint George, em Lisboa..Moore passou pelo CURTAS Vila do Conde, onde foi protagonista solitário de um "filme-concerto" ou, mais concretamente, de uma performance em que criou uma banda sonora para algumas das curtas-metragens de Maya Deren (1917-1961), personalidade emblemática na história das vanguardas americanas e, em particular, do cinema experimental das décadas de 1940-1950..O mínimo que se pode dizer do evento queeletrificou, literalmente, o Teatro Municipal de Vila do Conde (esgotadíssimo!) é que Thurston Moore veio celebrar o mais simples, mas também mais essencial, princípio de relação com a herança estética do passado. Ou, se quiserem, com as estéticas que já se cristalizaram em forma de herança: não "ilustrar" essas heranças, mas experimentar o que é possível criar, ou recriar, através das suas componentes..Não se tratou, de facto, de "musicar" os filmes de Maya Deren, eventualmente criando melodias e ritmos que, de alguma maneira, sublinhassem as linhas temáticas e as estruturas narrativas de filmes tão fascinantes como Meshes of the Afternoon, At Land [ver vídeo] ou A Study in Choreography for Camera, realizados em 1943, 1944 e 1945, respetivamente. Como poderia ser de outra maneira? Na verdade, Maya Deren, por vezes assumindo-se como protagonista das suas próprias ficções, coloca em cena o mundo, não como uma coleção de coisas visíveis, antes como uma paisagem instável de significados e significações que baralham todas as convenções de espaço e tempo - e anseiam por contemplar o invisível..Se é verdade que o cinema nasceu da coabitação do realismo dos irmãos Lumière com a fantasia de Georges Méliès, então Maya Deren é uma herdeira direta de Méliès (ilusionista de profissão, convém lembrar) e do seu gosto por desafiar as fronteiras sensoriais da experiência humana. Aliás, o conceito de humano é vital para acedermos aos seus filmes, quanto mais não seja porque o seu onirismo não exclui as experiências imediatas e rotineiras do quotidiano..Foi assim, pelo menos, que Thurston Moore nos deu a ver (e ouvir) os filmes de Maya Deren, incluindo o incrível e fascinante Ritual in Transfigured Time (à letra: "Ritual no Tempo Transfigurado"), produção de 1946 que parece antecipar, ponto por ponto, a vertigem narrativa que, em 1962, Luis Buñuel iria explorar em O Anjo Exterminador. Usando a sua guitarra como um genuíno instrumento de escrita, Moore colocou-se na posição de quem assume a matéria musical, não como um mero eco sonoro do que estamos a ver, antes como um pensamento cúmplice daquilo que as imagens mostram, escondem ou sugerem..E não se pense que tudo isto pode ser reduzido a um jogo vanguardista em que a noção de experimentação se satisfaz com um ritual mais ou menos abstrato, desligado do próprio presente em que tudo está a acontecer. Nada disso. Basta pensarmos que vivemos num tempo em que, através do uso da expressão fake news, alguém como Donald Trump conseguiu, perversamente, favorecer a ideia simplista segundo a qual a experiência humana se esgota na "verificação" de elementos informativos..Enfim, não nos precipitemos. Claro que Maya Deren e Thurston Moore não são inimigos de uma informação séria e responsável, nomeadamente no domínio jornalístico. Não é isso que está em causa. Acontece que a dimensão humana envolve a experiência, simultânea e indissociável, de elementos a que chamamos objetivos e também de outros que pertencem a domínios mais ou menos ocultos, porventura fantasmáticos. É a vibração de tudo isso que está nas imagens que nos chegam de meados da década de 1940, tal como esteve nos sons que se escutaram na noite de quarta-feira, em Vila do Conde. À falta de melhor, podemos chamar-lhe "poesia". Em todo o caso, por mim, ficaria pela mais básica descrição técnica: eletricidade.