A figura franzina, de barba branca, túnica castanha e chapéu azul, ali à beira-mar, chama-se Francisco Matias e diz ser chefe de uma tabanca, um régulo. Fala um pouco de português, que chega para se fazer entender. "Aprendi no tempo dos portugueses", explica, como se fosse preciso, 45 anos depois da partida do colonizador. Tem o filho doente e nunca mais chega uma canoa que os leve a Bubaque, a ilha dos Bijagós onde existe hospital..Pergunta se vamos demorar em Soga, se podemos levá-los no regresso. Prometemos que sim, se nenhum barco tiver entretanto chegado. E oferecemos uma garrafa de água, de marca portuguesa, que são as que se vendem na Guiné. O filho, com t-shirt azul a dizer DDR com o escudo da Alemanha comunista, treme todo, apesar dos quase 40 graus..A lancha em fibra em que viemos pertence ao Ponta Anchaca, um eco-resort na ilha de Rubane. A dona francesa assumiu o compromisso de ajudar as populações vizinhas, que aceitaram que estrangeiros ficassem em terras tidas como sagradas, sem habitantes fixos e onde não se pode sepultar ninguém. Solange Morin enviou dois dos funcionários da pousada, um deles filho de Soga, com algumas ofertas compradas em Bubaque. E a dupla de jornalistas do DN acompanha a visita com o compromisso de não perturbar..Ao fim de uns 200 metros a subir, contados a partir de uma borda de água que tem mais rochas do que areia, surgem as primeiras casas. Uma de pedra destaca-se: é o posto de enfermagem. "Não sou daqui, mas depois do curso em Bissau mandaram-me para cá como enfermeira. É tudo muito difícil. A nossa vida, mas também tratar os doentes. Falta quase tudo. E o salário é baixo", diz a enfermeira Irina Cuade. "O meu caso é diferente. Nasci em Soga e faço parte de uma geração que quis estudar, que não aceitou que se nascia, vivia e morria na ilha. Alguns fomos estudar para Bissau e voltámos para ajudar a desenvolver", acrescenta Martinho Luís, também enfermeiro. À saída da clínica dois jovens pedem para ser fotografados junto a uma parede onde se lê Ronaldo. São Júlio e Isnába, fãs do futebolista..Uma moto passa a acelerar. Aqui não há carros, mas pelos vistos há Lifans, motorizadas made in China. Ou talvez não. Quem conduz chama-se Mohammed e é mauritano. Todos os anos vem a Soga por causa do caju e trouxe a moto de canoa. Tem um patrão que compra a produção da ilha, fonte de dinheiro que chega no início do verão mas que não dura para o ano todo. Vive-se do que dá a terra e o mar e não há gordos em Soga..Converso com Mohammed em francês. E pergunta-me se quero boleia até à tabanca que fica no meio da ilha. Leonardo Negrão, o repórter fotográfico, incentiva-me a aceitar. São depois uns dez minutos a acelerar por uma estreita pista de areia, quase um sulco, e se vamos talvez a 20 ou 30 à hora mais parece a cem. Sou despejado no meio da aldeia e o mauritano faz meia-volta, direto ao cais..Um homem depena galinhas, crianças jogam à bola, mulheres mexem em tachos ao lume. De repente sou o centro das atenções. "Sou do grupo da Solange", digo. Um homem mais velho, outro régulo de certeza, indica-me uma cadeira em plástico. À sombra. Sorrio para as crianças, uma pequena multidão. Alguns estão nus, como Ciro e a bebé Mamae que encontrei com a mãe Joana mesmo antes da boleia, muitos vestem camisas coloridas, até de clubes. Há uma do Real Madrid..Os miúdos tocam-me nos braços, puxam os pelos. Tiro da mochila três canetas. Fazem logo festa. Uma menina sentada numa cadeirinha continua a escrever num caderno. Dizem-me ser a Andi. Fazem nova festa quando mostro no telemóvel fotos do Daniel e da Mariana, os meus filhos. Ela tem 8 anos. Andi deve ser dessa idade e agora já sorri. Dou-lhe a penúltima caneta..Chega o "grupo da Solange". Sem Solange, mas com presentes. Peço ajuda para falar com as pessoas, alguém que traduza para crioulo. E ouço histórias: o pai que queria melhor escola, a mãe que tem saudades do filho que vive fora e não dá sinais, quem sabe mora em Portugal. Apresentam-me Domingas José, "Mindjer Garandi", como quem diz a anciã da tabanca, que fala da falta de poços..Perguntam se queremos fotografar uma dança tradicional. E depressa as jovens da aldeia, engalanadas de propósito, se movem ao som de batuques. Estão seminuas e as cores garridas que usam às vezes são plásticos transformados em joias. Fazemos uma oferta em francos CFA no final, por sugestão de quem conhece bem os soguenses e aquilo que pode melindrar ou não a sua sociedade..É hora de regressar. À saída da tabanca grande alguém prepara óleo de palma. Jaime José Niquéu já viveu fora, mas não se arrepende de ter regressado, só lamenta ser difícil arranjar mulher para casar, mas diz isto a rir, deixando-me a mim e ao Leonardo em dúvida se falaria a sério. Surge uma mulher a vender uma tartaruga marinha do tamanho de uma mão. Agradecemos, mas não..Junto ao cais continua Francisco Matias e o filho. Tem 11, de quatro mulheres. Vem com ele Manuel, outro régulo. Há um segundo rapaz doente, mas esse não está em condições de ser levado, alerta o mestre da lancha. "Pode ter algo contagioso e não traz papéis dos enfermeiros." Oferecemos outra garrafa de água e insistimos que o levem à clínica ali perto. E zarpamos, rumo a Rubane mas com escala em Bubaque, na praia junto ao hospital. Os dois homens carregam o adolescente e duas malas pela areia. Na parte com água pelo joelho tiveram a nossa ajuda..O DN viajou a convite da EuroAtlantic