Covid-19. O pulmão da família Bulas para enfrentar "o monstro"

Primeiro caiu Marco, depois Sofia, por fim Leandro. Nesta reportagem do<a href="https://www.wort.lu/pt" target="_blank"> jornal Contacto</a>, conta-se a história de uma família de quatro portugueses no Luxemburgo, três ficaram infetados com coronavírus. Como os Bulas enfrentaram "o monstro" - e não vieram de férias a Portugal.
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Anatomia do monstro

O monstro chegou a 11 de março a casa dos Bulas. É assim que Sofia lhe chama, foi assim que se habituou a pensar nele à medida que invadia os quotidianos e os corpos da sua família. Houve um dia em que o nome lhe veio à cabeça de repente, foi uma manhã em que parecia que se ia sentir bem, mas depois veio-lhe a dor nas costas, que num instante escalou para o peito e a fez tossir a ponto de não conseguir respirar. Sentiu que havia uma criatura viva capaz de paralisá-la, que a tinha assaltado sem pedir licença e agora se alimentava dos seus pulmões. O coronavírus. O covid-19. "O monstro."

Os Bulas vivem em Feulen, no norte do Luxemburgo. São uma família de quatro. Há Marco, que tem 41 anos, Sofia, 39, Leandro, 12, e Sara, que tem apenas 5. Um a um, todos - exceto a mais pequena - foram caindo na cama com uma infeção que os assustava e sabiam poder ser letal. Durante semanas, fecharam-se em casa, quase sempre longe uns dos outros, à espera de um veredicto final: a cura ou o desgosto. De vez em quando, conseguiam angariar forças para falar por Skype com os avós, fechados em casa em Trás-os-Montes. "Eles tinham planos de vir na Páscoa, havíamos de passá-la em família como é costume", conta Sofia, "mas depois aconteceu isto."

Muitas vezes eram eles, que estavam doentes, quem tentava animar a ascendência. Apesar de católicos não praticantes, os Bulas não deixaram de reparar que o grande desafio a que a família foi sujeita aconteceu precisamente no período em que os cristãos celebram a Quaresma, que é o tempo da morte e do renascimento. "Percebo que é por isso que vamos ter de passar, se tivermos sorte", dizia Sofia numa das primeiras conversas que tivemos ao telefone. Eram chamadas diárias, que em regra duravam entre duas e três horas e que permitem agora o relato pormenorizado do combate que travaram com o seu monstro.

Marco Bulas foi o primeiro a ir-se abaixo. Foi aliás um dos primeiros no Luxemburgo com coronavírus. "Quando liguei aos serviços de saúde ainda as coisas estavam calmas, confirmaram que eram os sintomas da pandemia e perguntavam-me como me sentia." Era 11 de março, em todo o grão-ducado não havia mais de sete infetados e nenhuma morte. Ele sentia-se fraco, umas dores estranhas no corpo, maiores do que as de qualquer gripe. "Tosse não tinha, mas febre sim. Caí à cama e fiquei uns dias tão arrasado que mal me conseguia mexer."

Quatro dias depois Sofia começou a sentir umas dores no peito que a assustaram. "Parecia que tinha o peso do mundo em cima de mim." Depois veio a tosse, e parecia que vinha do lugar mais profundo do seu corpo, pois era tanta e tão forte que às vezes não conseguia mesmo respirar. Na manhã de segunda-feira, dia 16, foi fazer o teste ao Hospital Central do Luxemburgo. Ao final dessa mesma tarde ligaram-lhe. Estava a ver as notícias na televisão quando o telefone tocou, havia já 81 infetados e um morto no país. "Então uma médica disse-me que tinha dado positivo. Eu agradeci, desliguei e, pronto, desatei a chorar."

Leandro acusou sintomas dez dias depois. Uma dor nas costas, que depois se moveu para a barriga, e toda a gente em casa achou que ele tinha comido qualquer coisa estragada. "Levei-o ao médico de família e ele disse-me logo para o levar ao drive-in de Ettelbruck, onde estão a fazer testes ao covid-19", conta Marco. Sofia, que estava por esses dias um farrapo, rezava para que o teste não desse positivo. "Ele tem asma e é pequenino, eu sinto bem o monstro dentro de mim e não sei se o corpo dele vai aguentar uma violência destas", dizia ao telefone. Na tarde do dia 26 os serviços de saúde confirmavam o pior dos prognósticos. O choque fez a mãe do rapaz desfazer-se. Agarrou no telefone, ligou para a progenitora em Portugal e começou a chamada assim: "Ai mãe, que isto é um pesadelo."

Álbum de família

Os pais de Marco sempre lhe tinham motivado a autonomia - e por isso, nas férias, o rapaz arranjava normalmente biscates para ganhar uns trocos. Quando tinha 17 anos, passou o verão a servir cachorros quentes numa barraca de comida em Bissen e Sofia, que morava perto, engraçou com ele. Haveriam de se encontrar nos anos seguintes quase todos os dias, porque ambos estudavam no mesmo liceu em Ettelbruck. Mas tinham dois anos de diferença, e isso no final da adolescência significa um desvio de décadas. Tiveram de passar dez anos para eles começarem a namorar.

Tinham muito em comum. Antes de mais a história: tinham chegado demasiado pequenos ao Luxemburgo para se lembrar de Portugal, mas nutriam-lhe um amor profundo que alimentavam sempre que tornavam a Trás-os-Montes, no verão e na Páscoa. As raízes estavam próximas no mapa: os pais de Marco são de Murça, os de Sofia são de Vila Real. Ele nasceu na Alemanha, que era onde a mãe trabalhava antes de se mudar para o Luxemburgo. Ela chegou com 9 meses, quando a mãe decidiu arrumar as malas, sair da aldeia e vir ter com o marido a Bissen. Faziam parte da segunda leva de emigrantes portugueses que vieram para o grão-ducado, entre o final dos anos setenta e o início dos oitenta. Moravam no norte, onde então a presença portuguesa era ainda escassa.

Fizeram ambos a escola superior técnica e, depois do curso acabado, não foi difícil arranjar emprego. Estabilizaram. Sofia fazia a secretaria e o atendimento de uma clínica médica em Ettelbruck, Marco era despachante de carga na AirLux Cargo, em Findel, e controlava o que entrava e saía dos porões da companhia aérea luxemburguesa. "Uma vez, vi que havia um tigre que ia seguir marcha para a China. Não resisti a ir lá espreitar, porque a caixa de transporte do animal tinha uns buracos de respiração. Quando meti os olhos ao buraco vi o animal a investir para mim de boca aberta. Apanhei tal susto que dei duas cambalhotas para trás. O que os meus colegas se riram de mim."

Tinham o mesmo grupo de amigos, todos portugueses como eles, eram uns dez e ainda continuam a juntar-se nos dias de festa. Um ano depois de começar a namorar com Sofia, Marco percebeu que tinha encontrado a mulher da sua vida. "Então decidi fazer as coisas bem feitas e fui ter com o meu sogro para lhe pedir a mão da filha em casamento. Ele virou-se para mim e respondeu: estava a ver que não te decidias." Marco ri-se, Sofia ri-se, e o som das gargalhadas de ambos ecoa pela linha de telefone. No dia seguinte disse à namorada que iam passar o fim de semana a Mondorf-les-Bains e, ao cair da tarde, depois de passarem um dia extraordinário a passear pelas vinhas na Moselle, levou-a para o quarto, tapou-lhe os olhos, colocou uma aliança em cima da cama e ajoelhou-se. Pediu a Sofia que tirasse a venda. "Queres casar comigo?"

Sofia ainda não sabia, mas quando embarcaram para o cruzeiro de lua-de-mel no Mediterrâneo ia já grávida de Leandro. A vida correu-lhes bem nos anos seguintes. Marco intercalava o trabalho com os treinos de futebol, chegou a jogar na primeira liga e ainda hoje joga na segunda, na equipa do Mersch. Sofia fazia do trabalho uma segunda família e em casa cuidava de um rapaz encantador. Tentavam manter no filho o interesse por Portugal, assim que ele nasceu rumaram a Trás-os-Montes para que o garoto conhecesse o seu chão. Voltavam nas férias, às vezes o miúdo ia sozinho com os avós passar a Páscoa à terra.

Mudaram-se para Feulen e, há cinco anos, duplicaram a alegria com o nascimento de Sara, que é todo um sorriso em meio palmo de gente. Há dois anos Marco arranjou emprego no Ministério dos Transportes, trabalha no gabinete de mobilidade e presta auxílio a condutores de autocarros que possam ter algum problema. É algo que gosta verdadeiramente de fazer, porque sente que ajuda pessoas em apuros. Sofia também mudou de emprego há seis meses, arranjou cargo de secretária no Hospital Central do Luxemburgo. Custou-lhe sair do gabinete de Ettelbruck, afinal foram duas décadas a trabalhar no mesmo sítio. Mas o desafio era maior, o salário também cresceu, e agora ela e Marco podiam começar a avançar para sonhos que há muito andavam a congeminar. A vida estava a correr francamente bem aos Bulas. E depois veio o monstro.

A epidemia em minha casa

Há um hábito que os Bulas têm. Sempre que um elemento da família entra em casa, a primeira coisa que faz é assobiar para anunciar a sua presença. Não é um assobio estridente, daqueles puxados com os dedos, é antes um mi e um lá soprado pelos lábios e a que todos respondem. Quando o coronavírus lhes entrou pela vida adentro, ninguém tinha pulmão para puxar o ar sem se partir em tosse. "Eu sei que é um pormenor pequenino, que isto se calhar não faz sentido nenhum. Mas é uma das coisas de que mais sinto falta agora", dizia Sofia nos dias difíceis.

Marco passou mal, mas recuperou rapidamente. Quando Sofia caiu na cama já ele estava em franca recuperação. "Temos um quintal e foi por aí que avisámos os nossos vizinhos da situação em que nos encontrávamos. Foi bonita a maneira como eles nos trataram das compras, como iam à farmácia buscar-nos medicamentos. Nestas alturas as pessoas tomam uma decisão, que é cuidar de si ou cuidar dos outros com humanidade. E eu nunca esquecerei a forma como fomos tratados", diz o homem emocionado.

Os Bulas fecharam-se em casa por causa dele, mas foi a doença dela que os atirou para o fundo do poço. "Eu acho que por ser desportista me safei disto rapidamente, mas agora estou assustado com a Sofia", dizia Marco na última semana de março. "Não lhe digas que disse isto, mas estou mesmo assustado." É que a mulher não tinha maneira de se livrar da tosse cavernosa, cada dia que passava parecia faltar-lhe mais o ar. "Os médicos ligam-me de dois em dois dias para perceber como as coisas estão a avançar", contava Sofia pelo telefone. "E às vezes o monstro é tão pesado que penso que devia era ir já para a unidade de cuidados intensivos, respirar por um ventilador", dizia nos dias mais difíceis. E não ia porquê? "É que se entro tenho medo de já não voltar. Eu não quero morrer longe dos meus."

Marco tratava da lida da casa, fazia as refeições e ajudava as crianças nos trabalhos da escola. Ela bem tentava, mas faltavam-lhe as forças. O momento mais difícil para eles, no entanto, foi ter de explicar aos garotos o que se estava a passar. "Depois de recebermos a confirmação de que a Sofia estava infetada, chamámos os miúdos e explicámos que a mãe tinha coronavírus", conta o marido. "Tentámos explicar as coisas cientificamente, com os dados que sabíamos e sem grande emoção", conta ela. "Disse-lhes que agora não se podiam aproximar da mamã, não podiam dar beijinhos nem abraços. E depois vi a cara assustada com que ficaram, sobretudo o Leandro, que é mais crescido e já percebe as coisas. Mas não cedi e mandei-os ir brincar. Depois liguei para Portugal e contei à minha mãe. E chorei, chorei, chorei. Chorei como não chorava há anos."

Em Trás-os-Montes, os pais do casal sofriam de cada vez que viam a subida dos números de mortes pela televisão. "Foi então que tomámos todos uma decisão em família: deixar de ver as notícias", conta Marco. "Só muito de vez em quando víamos o Telejornal português." Pelo telemóvel, no entanto, o homem ia acompanhando às escondidas a pandemia que inundava o mundo lá fora. Dentro de paredes, brincava com os filhos, fazia festas à mulher, repetia incessantemente que "vai ficar tudo bem." Só que por dentro Marco corroía.

Quando Leandro se queixou de dores de barriga não pensaram que pudesse ser o monstro. Era sintoma demasiado afastado, e eles tinham mantido as distâncias dentro de casa. O mundo desabou-lhes com um telefonema dos serviços de saúde. Sofia queria abraçar o filho, mas não podia. Em Sara, que tentou logo agarrar-se ao irmão, a mãe viu uma preocupação que nunca tinha vislumbrado na criança. Desde esse dia, aliás, sempre que se porta mal escreve ao irmão um post-it a pedir desculpas, que depois pendura na cadeira onde ele se senta.

O quarto das brincadeiras teve de ser dividido. Ele tem a PlayStation e passa os dias a jogar Fifa. Ela a brincar com as bonecas numa mesa que tem impresso o rosto da Minnie. O miúdo foi melhorando, Sofia nem por isso. Os pulmões da mulher estavam a enfraquecer à medida que os dias passavam, e não eram poucas as vezes em que pensava se ia safar-se disto. Em 2019 os Bulas tinham passado o Natal em Trás-os-Montes, e agora ela só se lembrava dos votos que tinha feito para 2020, como ia ser o ano mais espetacular de sempre. "Se eu sobreviver a isto, faço outra festa de Ano Novo e passamos diretamente para 2021", dizia ao telefone. A paciência começava a esgotar-se. O corpo já não tinha energia para resistir muito mais tempo.

O amor em vez do medo

Abril chegou e as coisas começaram a melhorar. Marco já não tinha quaisquer sintomas e o seu tempo de quarentena terminara, começou a aventurar-se a fazer ele as compras fora de casa, e aquelas idas ao supermercado sabiam a uma liberdade renovada. "Só damos valor às coisas quando as perdemos", contava ele depois das primeiras incursões. Quem haveria de dizer que o ritual das compras de sábado, com que tantas vezes protestara, se tornara agora a alegria da semana inteira.

Sara nunca teve sintomas, por isso o pai começou a convocá-la para assistente de cozinha. Leandro também recuperou, foi mantendo as distâncias mas aos poucos voltou ao normal, e a primeira coisa que os pais notaram foi que o gaiato começou a responder aos assobios. Os irmãos dão-se melhor do que nunca agora, contam os progenitores, mesmo as discussões aprenderam a resolvê-las entre eles. Há dias o rapaz virou-se para os pais e disse-lhes uma coisa que os deixou de coração pendurado: "Acho que tivemos muita sorte, sabem? Eu tive. Se eu morresse não me importava muito, mas se vos perdesse não sei o que ia fazer. Tivemos muita sorte, mesmo."

Com Sofia é que as coisas foram mais difíceis. O monstro teimava em não a largar, e passou duas semanas de suplício em guerra com os seus pulmões, a tentar respirar quando eles se enchiam de tosse. Mas veio Domingo de Ramos e as coisas começaram a compor-se, às tantas já tinha fôlego para ajudar o filho com os trabalhos de casa, o marido com as tarefas domésticas, ainda ajudou Sara a organizar um lanche com as bonecas. As suas netas, vamos.

Na quarta-feira, 9 de abril, a quarentena dos Bulas chegou oficialmente ao fim. Depois de passarem quase um mês trancados em casa, puderam voltar finalmente a uma normalidade que não é normalidade nenhuma. Quando se refugiaram a vida ainda fluía nas cidades, as ruas estavam cheias de gente, as lojas tinham horários de abertura e fecho. Agora eles podiam voltar à vida, mas a vida tinha mudado.

Nesse dia, decidiram pegar nas máscaras e dar um passeio pelo bosque que existe perto da sua casa. Marco pegou em Sara ao colo, Leandro deu a mão a Sofia, e durante meia hora caminharam livres e ao ar livre, sem medo de nada. Era o maior presente que a realidade lhes podia dar. E deu. Nessa noite, quando ligou para a família, Sofia deixou pela primeira vez correr lágrimas de alívio, todas as anteriores tinham sido de inquietação.

"Sinto que estamos mais fortes, mais pacientes uns com os outros, mais carinhosos também", explicava ela. "E sinto que temos agora muito mais consciência daquilo que é fundamental. É a saúde, é termos os nossos por perto. É termos medo mas calarmos o medo com o amor que damos uns aos outros." Nisto fez-se um silêncio que ela estranhou, não está habituada a tanta calmaria quando os filhos estão em casa. Chegou-se à escada e assobiou. Marco, Leandro e Sara assobiaram de volta.

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