A invasão turca contra os curdos no norte da Síria é apenas a última fase de uma guerra que começou com a repressão dos protestos contra o presidente sírio, Bashar al-Assad, na Primavera Árabe de 2011, e que desde então já envolveu atores internacionais como os EUA ou a Rússia e o grupo terrorista do Estado Islâmico..Desde o início do conflito já morreram mais de meio milhão de pessoas e pelo menos cinco milhões cruzaram a fronteira para fugir da guerra. Destes, 3,6 milhões estão na Turquia e o presidente Recep Tayyip Erdogan ameaça não os travar na sua tentativa de chegar à União Europeia, caso os 27 critiquem as suas últimas ações no norte da Síria..A Turquia alega que, com a sua incursão no norte da Síria, quer criar uma "zona segura" para o regresso dos refugiados sírios, mas a comunidade internacional teme o reacender do conflito e a libertação dos milhares de ex-combatentes do Estado Islâmico que estão em campos de detenção curdos. Erdogan garantiu que o grupo terrorista não será capaz de recuperar terreno na região..Mas a sua invasão já está a provocar nova crise de deslocados, com as organizações de direitos humanos a falar de 60 mil que deixaram as suas casas desde o início da ofensiva..Estas foram as várias fases da guerra que já dura há mais de sete anos..Primavera Árabe.A queda do regime de Zine El Abidine Ben Ali após um mês de protestos na Tunísia desencadeou uma onda de manifestações no mundo árabe, que ficou conhecida como Primavera Árabe. Esta onda rebentou a 15 de março de 2011 na Síria, governada pela família Assad com uma mão de ferro desde há 40 anos - Bashar al-Assad sucedeu ao pai, Hafez, em 2000..As manifestações começaram em Damasco e em Aleppo, exigindo reformas democráticas e a libertação de prisioneiros políticos, depois de as forças de segurança terem reprimido com violência um protesto em Deraa, no sul do país..O movimento ganhou então amplitude, apesar das tentativas de Assad para travar os protestos, chegando a oferecer reformas políticas e a levantar o estado de emergência que vigorava há 50 anos. O governo, dominado pelos alauitas (ramo do xiismo), chegou a fazer concessões à maioria sunita, mas sem sucesso..Ao mesmo tempo, enviava o exército para travar os protestos, nomeadamente em Deraa..Guerra civil com apoio de atores internacionais.A 15 de julho de 2012, o Comité Internacional da Cruz Vermelha avisou que os combates eram tão generalizados que a situação devia ser vista como uma guerra civil, com o exército a responder aos ataques dos rebeldes, que o governo apelidava de terroristas..Um ano antes, um grupo de sete desertores tinha criado o Exército Sírio Livre (com o apoio da Turquia), com o objetivo de derrubar Assad. Em agosto de 2011, nasceu o Conselho Nacional Sírio, uma coligação de grupos antigovernamentais que, desde a Turquia, procuravam organizar (sem sucesso) a oposição..Os protestos ficam para segundo plano face aos combates, que levaram à destruição de cidades e obrigaram milhares de sírios a fugir de casa. Ao mesmo tempo, há tentativas de negociar um cessar-fogo com o apoio das Nações Unidas, mas sem sucesso..A guerra podia ser civil, mas havia já vários atores estrangeiros de olho na Síria. As brigadas rebeldes organizaram-se e são armadas por atores internacionais, conquistando cidades importantes a norte, incluindo Aleppo (a maior cidade da Síria). Já o regime de Assad, contava com o apoio do Irão e do Hezbollah libanês, que enviou os seus combatentes para o terreno a partir de maio de 2013..A 21 de agosto de 2013, a comunidade internacional condenou em uníssono o massacre de Ghuta, um ataque aéreo químico das forças leais ao presidente sírio contra um bairro da periferia de Damasco. Terão morrido mais de 1400 pessoas, atingidas por gás sarin..O então presidente norte-americano Barack Obama, que desde agosto de 2011 pedia para Assad ceder o poder, avisara que o uso de armas químicas seria uma "linha vermelha", que poderia levar os EUA a reagir militarmente, mas acabaria por recuar, pedindo autorização ao Congresso para um ataque que não foi aprovado. Obama apostou então nas negociações com Damasco, com o apoio da Rússia, para o desmantelar do arsenal de armas químicas..Irrupção do Estado Islâmico e entrada em cena dos EUA.À medida que Assad combatia os rebeldes e a oposição, o Estado Islâmico ganhava força no Iraque e na Síria, declarando o seu califado em junho de 2014..No meio da guerra civil síria, surgia assim um terceiro ator que atacava tanto as forças governamentais como as forças da oposição, conquistando território onde aplicava a sua interpretação da sharia (a lei islâmica). No total, chegou a controlar um terço da Síria, com a capital em Raqqa..A irrupção do Estado Islâmico na guerra da Síria desencadeia a intervenção militar direta dos EUA..A 23 de setembro de 2014, uma coligação internacional liderada pelos EUA (mas com o apoio de mais de 60 países, entre os quais França e Reino Unido) lançou a sua ofensiva contra o Estado Islâmico na Síria, com ataques aéreos, treino e armas para as forças que os combatiam no terreno. Desde maio de 2012, que os norte-americanos enviavam ajuda "não letal" para os rebeldes sírios, enviando armas desde julho de 2013..O apoio de Washington chegava às mãos das Forças Democráticas Sírias, que nasceram oficialmente em outubro de 2015 e que eram uma aliança de vários atores presentes no nordeste da Síria, liderados pela milícia curda das Unidades de Proteção do Povo (YPG)..Em dezembro de 2015, o Pentágono envia tropas especiais para combater na Síria e no Iraque..Assad pede ajuda à Rússia.Depois de durante anos fornecer armas e equipamento ao exército sírio, Moscovo lança a partir de setembro de 2015 ataques aéreos para apoiar o regime de Assad, marcando o princípio da reviravolta a favor do presidente sírio. Os alvos não são apenas o Estado Islâmico, mas também os rebeldes - à medida que a guerra avançava, os grupos mais moderados iam sendo eclipsados pelos mais extremistas..O presidente russo, Vladimir Putin, disse que o objetivo da ação russa era "estabilizar o poder legítimo na Síria e criar condições para um compromisso político"..Com o apoio russo, o regime de Assad recupera o controlo do território. Em dezembro de 2016, reconquista Aleppo, que tinha sido um dos bastiões da oposição. Em 2017, consegue restaurar o poder do governo, indo aos poucos recuperando o terreno perdido. Deraa, que tinha sido o berço dos protestos, foi reconquistada junto com a maioria do sudoeste da Síria no verão de 2018..Trump e a retirada dos EUA da Síria.Com a pressão dos bombardeamentos internacionais, o Estado Islâmico perdeu em outubro de 2017 a sua capital, Raqqa, e o último território do seu califado na Síria já em março deste ano, após a batalha de Baghuz, sendo que muitos ex-combatentes foram enviados para centros de detenção em território curdo..Já em março de 2017, a embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, avisava que a prioridade da administração do presidente Donald Trump era expulsar Assad. E, ao contrário do seu antecessor, Trump responde aos ataques químicos do regime sírio com ataques aéreos..A primeira vez que Trump fala diretamente da retirada das tropas sírias é em dezembro de 2018, numa decisão que levou então à demissão do secretário da Defesa, James Mattis. Mas diante da pressão internacional e dos pedidos do Congresso para que mantenha tropas no país, Trump acaba por ceder..Este mês, contudo, o presidente norte-americano anunciou que os soldados iam afastar-se do norte da Síria, deixando o caminho aberto para a invasão da Turquia, abandonando os aliados curdos..A invasão turca.A Turquia esteve desde o primeiro momento do lado do Exército Livre da Síria, contra o regime de Assad, tendo a sua relação com a Síria passado por momentos de alta tensão, como quando os sírios abateram um caça turco em junho de 2012..Em pelo menos duas ocasiões os turcos já fizeram incursões diretas em território sírio. O primeiro depois desse incidente com o caça em 2012, o segundo em agosto de 2016, contra o Estado Islâmico, mas também as YPG curdas. Ancara enfrenta um problema com os curdos no seu próprio território, com o PKK (que defende a criação de um estado autónomo) a ser considerado um grupo terrorista..Erdogan tinha vindo a defender a criação de uma "zona segura" junto à fronteira com a Turquia, na esperança de afastar os curdos do seu território e alegadamente permitir a reentrada dos refugiados sírios que estão no país. Estima-se que sejam 3,6 milhões, com o presidente turco a esperar que dois milhões possam voltar à Síria..Uma intervenção turca contra os curdos era travada até aqui pela presença dos seus aliados norte-americanos. A decisão de Trump retirou o entrave, com Ancara a lançar a ofensiva na quarta-feira.."A Turquia tem estado a planear atacar os curdos há muito tempo. Têm estado a lutar há séculos. Não temos soldados ou militares junto da área de ataque. Estou a tentar acabar com as guerras sem fim. A falar com ambos os lados. Alguns querem que enviemos dezenas de milhares de soldados para a área e recomecemos novamente a guerra. A Turquia é membro da NATO. Outros que fiquem de fora, deixem os curdos lutar as suas próprias batalhas (mesmo com a nossa ajuda financeira). Eu digo para atingirmos a Turquia fortemente financeiramente e com sanções se eles não jogarem de acordo com as regras. Estou a seguir de perto", escreveu Trump no Twitter..A comunidade internacional teme que a ação da Turquia volte a abrir a porta ao Estado Islâmico e permita que este reconstrua o califado. Milhares de ex-combatentes do grupo terrorista, incluindo ocidentais, estão em centros de detenção curdos e podem aproveitar para fugir.