Faz sentido perguntar sobre orientação sexual a alunos do 5.º ano? Especialistas estão contra

Os alunos de uma turma do 5.º ano da Escola Básica Francisco Torrinha, no Porto, responderam a um inquérito sobre orientação sexual. O DN ouviu especialistas, que estão contra.
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A publicação nas redes sociais da imagem de um inquérito com perguntas sobre a orientação sexual, feito a alunos do 5.º ano da Escola Básica Francisco Torrinha, no Porto, tornou-se alvo de inúmeras críticas. "Namoras atualmente? Já namoraste anteriormente" e "Sinto-me atraído por homens / mulheres ou ambos?" São algumas das perguntas da "ficha sociodemográfica" que geraram contestação nesta quarta-feira, 10 de outubro. Contactado pelo DN, o Ministério da Educação refere que "não conhecia o inquérito em questão". "Sabe-se para já que é um caso isolado e está a apurar informação junto do estabelecimento escolar em causa", revelou o gabinete de comunicação do ministério.

Perante o questionário e o teor das perguntas, a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos é perentória. "É um atentado à dignidade humana. Não se faz, porque as pessoas têm de ser respeitadas na sua intimidade", afirma ao DN. Defende que este tipo de perguntas de orientação sexual não deve ser feito a alunos desta faixa etária, 9, 10 anos, porque aborda a intimidade das crianças. "Os pais têm de autorizar o inquérito, têm de ver o teor do inquérito. Os pais como primeiros educadores da criança têm de ver e dar autorização ao inquérito, e saber o objetivo da escola", considera a especialista.

Rita Terroso, da Associação de Pais da Escola Francisco Torrinha, refere ao DN que "foi pedida autorização prévia para os alunos assistirem a estas aulas de Educação Sexual". Em resposta a outra tentativa de contacto, através do Facebook, a Associação de Pais admite que o inquérito "é desadequado" à idade. "Mas o tema educação para a igualdade de género está previsto no programa, no âmbito da estratégia nacional para a cidadania".

Ana Vasconcelos defende uma escola inclusiva e reconhece a necessidade de conhecer o aluno, não através destas iniciativas. "Têm de ser através dos pais no que respeita a assuntos íntimos, como a saúde, a orientação sexual e a consciência de género", defende. Mas aos 9, 10 anos já se pode falar em orientação sexual? "A partir dos 3, 4 anos pensa-se que a criança já tem consciência do seu género. E antes do 5º ano, com 10 anos, as crianças já podem verbalizar que não se sentem no género que têm e que lhes foi atribuído. Pode acontecer", explica.

A Associação de Pais fez saber ainda, em comunicado enviado à Lusa, que "os pais estão calmos e a maior parte dos alunos não percebeu bem a questão que lhes foi colocada". "O Ministério da Educação está a par e vai agora tentar esclarecer a situação", adianta a associação.

O facto de as crianças não terem percebido a questão reforça a opinião de Ana Vasconcelos. "Sempre que eu faço uma pergunta a uma criança, há várias hipóteses. E se eu sei que a pergunta não vai ser compreendida não a faço", explica a pedopsiquiatra, que considera ser importante saber o objetivo da escola com esta "ficha sociodemográfica". "A intenção pode ser boa, mas saiu torto."

O facto de poder ser um inquérito anónimo não altera a opinião da pedopsiquiatra. E explica porquê? "Mesmo que não seja atribuída a identidade, os miúdos ficam a pensar naquilo. As perguntas que não percebem, que não sabem responder, causam impacto no seu pensamento."

O psiquiatra e sexólogo Júlio Machado Vaz foi uma das pessoas que partilhou a fotografia do inquérito com a legenda: "Aguardo com espantada - e talvez ignorante, claro... - curiosidade uma explicação." Ao DN justifica o porquê? "Não vejo qual é o interesse em perguntar a uma criança de 9 anos por quem se sente atraído, pode ser que haja uma explicação científica em que eu não tenha pensado."

Nesse sentido, Júlio Machado Vaz questiona o teor do inquérito a crianças do 5.º ano de escolaridade. "Significa isto que não possa haver uma indicação em termos de orientação sexual com as idades de 9/10 e 11 anos? Pode haver indicação de orientação sexual, mas não é em todas. Para muitas destas crianças, a pergunta não faz sentido porque não sabem o que é uma atração erótica. Embora existam casos de bullying nessas idades com crianças que manifestam uma orientação homossexual, não é de perto nem de longe a regra", considera o especialista.

"Em segundo lugar, não sei do que é que estamos em presença. É um inquérito, uma equipa de investigação que está a trabalhar na escola? Só sei que faz parte do programa escolar na área da Cidadania, qual é o objetivo? Tudo isso é que tem de ser explicado", afirma.

Mas há ou não uma idade certa para se saber qual é a orientação sexual? "Vou fazer 69 anos e, em toda a minha aprendizagem científica, sempre me ensinaram que não há uma idade definida para se saber qual é a orientação sexual. Há quem chegue aos 15/17 anos sem o saber. Não se pode dizer que uma criança aos 9 anos tem uma orientação sexual e, muito menos, espera que lhe perguntem se sente atraído por uma mulher, um homem ou ambos", responde.

Júlio Machado Vaz tem mesmo dúvidas se a pergunta pode ser feita mais tarde, mesmo sob anonimato. "Tem que ver com a privacidade, é tudo muito anónimo mas as pessoas têm o direito a não responder."

Sobre o inquérito, que terá sido fotografado por um aluno, tendo sido depois divulgado nas redes sociais, fonte do estabelecimento de ensino diz que "a escola não presta declarações". O DN tentou ainda entrar em contacto com a direção do Agrupamento Garcia de Orta, do qual faz parte a Escola Básica Francisco Torrinha, mas não obteve resposta.

O inquérito inclui ainda perguntas sobre se já têm ou já tiveram namorado ou namorada, com quem vive, a nacionalidade e dados sobre o encarregado de educação. No documento, as crianças eram ainda questionadas sobre qual era o seu sexo/identidade de género: homem, mulher ou outro.

Esta "ficha sociodemográfica" distribuída a uma turma do quinto da escola do Porto terá sido uma colaboração do professor com uma associação local. Segundo a Associação de Pais, em resposta dada ao DN através do Facebook, o professor que entregou o inquérito aos alunos "tomou conhecimento do mesmo no momento" e que o documento "foi realizado por uma associação externa à escola".

Um caso recente de um questionário feito na escola em que era perguntado a pais se são ciganos ou brasileiros alertou para o facto de este género de inquéritos terem de ser aprovados previamente pelo Ministério da Educação e receberem uma autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados e da Direção-Geral da Educação.

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