Em 1998, o então procurador do MP e hoje juiz conselheiro jubilado Eduardo Maia Costa escreveu um texto intitulado Direito Penal da Droga - Breve História de Um Fracasso. Neste, analisava a lei 15/93, conhecida como "lei da droga", legislação avulsa (por não estar integrada no Código Penal) que determina as penas para os crimes relacionados com estupefacientes; uma das conclusões que tirava era de que a moldura penal do tráfico, de quatro a 12 anos de prisão, se afastava por completo das dos crimes comparáveis, ou seja, de "perigo comum", para se aproximar da de homicídio.."Nos crimes de perigo comum previstos no Código Penal no seu artigo 272.º e seguintes, e especificamente nos crimes de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais (artigo 282.º) e propagação de doença (artigo 283.º), nos quais se protege o mesmo bem jurídico que no crime de tráfico (a vida ou a saúde), a pena é de um a oito anos de prisão e só no caso de se verificar concretamente a morte ou ofensa grave à integridade física de uma pessoa a pena é aí agravada de um terço (artigo 285.º)", escrevia. Para concluir: "A diferença de tratamento entre as condutas previstas no Código Penal e o crime de tráfico de estupefacientes é por demais evidente. Neste último o legislador como que presume de forma iniludível a morte dos consumidores das substâncias ilícitas, presunção de todo ilegítima, não só porque as drogas leves nunca seriam idóneas para pôr em perigo a vida, como ainda porque, mesmo no caso das drogas duras, é mais do que aleatório conjeturar previamente as situações em que a conduta do agente poderá contribuir para causar a morte de alguém.".De facto, explicava Maia Costa, "a pena prevista para o crime de homicídio simples (consumado) é de oito a 16 anos de prisão. Se se tratar de um homicídio tentado a pena será de um ano e oito meses a dez anos e oito meses. Compare-se com a moldura de quatro a 12 anos do tráfico (...)." Mas, sublinhava, se essa é a pena do tráfico "simples", que inclui um vastíssimo leque de atos, desde o cultivo à distribuição, transporte e venda, passando pela simples posse, desde que se prove que o intuito é vender, no tráfico "agravado" - o qual é qualificado por uma série de circunstâncias, desde "a distribuição de substância a menores ou a grande número de pessoas à obtenção de lucros elevados, à condição de funcionário do agente, a adulteração das substâncias aumentando o perigo para a vida dos consumidores, etc." -, a moldura penal passou a ser, pela lei 45/96, de cinco anos e quatro meses a 16 anos de prisão. Ou seja, indigna-se o agora juiz jubilado, "ultrapassando completamente a moldura penal do homicídio tentado, a pena do tráfico agravado quase coincide com a do homicídio consumado, correspondendo equiparação grosseira e demagógica entre traficante e homicida"..Acresce à severidade das penas - que, não se perca de vista, não se fundam na existência de um dano comprovado, apenas no perigo de esse dano existir - o facto de existir uma tendência jurisprudencial para decretar prisão efetiva nos casos de tráfico, mesmo quando as penas são inferiores a cinco anos..Isso mesmo certifica um acórdão de 2012 do Tribunal da Relação de Lisboa de que é relator o muito nosso conhecido juiz Neto de Moura. Este, citando a "orientação firme da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual, nestes casos, é de afastar a suspensão da execução da pena, pois as finalidades da punição, designadamente as exigentes finalidades de prevenção geral, não poderão ser adequadamente realizadas pela simples censura do facto e ameaça da punição", conclui: "A pena de prisão efetiva deve ser a regra para os crimes que se posicionam no segmento da criminalidade mais gravosa, especialmente os crimes contra as pessoas e, em geral, os que integram a designada 'criminalidade violenta' e 'criminalidade altamente organizada', na qual se inclui o tráfico de estupefacientes, que mais consequências nefastas têm para a paz social; as fortes exigências preventivas, sobretudo as de prevenção geral, que o crime de tráfico de estupefacientes suscita não ficam, adequada e suficientemente, satisfeitas com a simples ameaça da pena e isso justifica que, normalmente, as penas de prisão sejam efetivas.".O caso julgado, refira-se, era o de um homem que servira de correio de droga entre o Brasil e a Bélgica, transportando cocaína e visando receber seis mil euros. É pois especialmente interessante constatar que o mesmo magistrado de quem conhecemos decisões que desculpabilizam a verdadeira violência física perpetrada sobre mulheres e crianças - por vezes, como no caso da mulher sequestrada pelo ex-marido e ex-amante e agredida com uma moca de pregos, chegando àquilo que deveria ter sido qualificado como tentativa de homicídio --, e decretam pena suspensa para quem exerceu essa violência, descreve como "criminalidade violenta" o transporte de droga num avião e considera que "seria atentatório da necessidade estratégica de nacional e internacional de combate a este tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral" a suspensão da pena no caso referido..Numa altura em que tanto se tem discutido a aplicação da pena suspensa nos casos de violação e violência doméstica e a moldura penal destes crimes, é útil perceber que os tribunais são sensíveis às expectativas comunitárias (ou ao que julgam ser essas expectativas) e às estratégias de combate a determinados crimes - e não, claramente, a outros. Sendo de relevar que quando no mundo se somam as jurisdições nas quais se legaliza a produção, venda e consumo recreativo de canábis, em Portugal, como se constata no último relatório do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), a canábis foi a substância associada a mais de 50% das condenações por "tráfico" em 2017, constituindo, no mesmo ano, os condenados por esse crime a mais de 17% dos reclusos nas prisões portuguesas..Talvez em vez de celebrarem como triunfo o vigésimo aniversário da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga que "mudou o paradigma" da política das drogas em Portugal e tantos elogios internacionais tem granjeado, os responsáveis devessem olhar para uma legislação anterior a essa "mudança de paradigma" e no qual o paradigma ficou exatamente na mesma. E reparar que por exemplo em Espanha a lei foi alterada há 10 anos e as punições por tráfico são muito mais flexíveis, permitindo penas de um a três anos caso se considere que a substância em causa não provoca grandes danos à saúde..Isto, claro, antes da grande discussão que é necessário ter - a de saber a que ponto faz sentido o Estado proibir as substâncias designadas como drogas, em que fundamentos científicos e ético-jurídicos baseia essa proibição, que custos ela trouxe e traz e que vantagens oferece. Porque, como diz o título de Maia Costa, cujo texto, com 21 anos, mantém absoluta atualidade, é de um fracasso que se trata. E um fracasso incrivelmente dispendioso - em dinheiro, em pessoas, e em termos geoestratégicos.