Levam o riso aos sítios onde ele se perdeu. São histórias de palhaças
Ainda há três semanas Gabi Winter estava em Brumadinho, no estado brasileiro de Minas Gerais, onde a 25 de janeiro o rebentamento de uma barragem causou devastação, deixando um rasto de 165 mortos e 155 desaparecidos. "Andando naquela lama que virou pedra dura, você fica pensando em todos os desaparecidos, que podem estar ali debaixo dos seus pés", diz ela esfregando o rosto com as mãos, como que a apagar lembranças.
Imagens e emoções ainda frescas na memória, e a lutar com o jet lag teimoso da viagem para Portugal, para estar na terceira edição do Bolina, Festival Internacional de Palhaças, que terminou sábado em Portalegre, depois de uma semana intensa de espetáculos, workshops e intervenções comunitárias, a brasileira Gabi Winter não perde o humor. Nem o riso. Afinal, ela também é Jurubeba, a palhaça que desde há duas décadas encarna na vida artística e nas missões que faz desde 2012 com os Palhaços sem Fronteiras, em países e regiões atingidas por catástrofes. A mais recente foi, em Brumadinho, em abril.
Porquê Jurubeba? Ela ri-se. "É o nome de uma planta amarga que dá uma flor bonita, tem um som de que eu gosto, e há muitos anos nós ficávamos cantando isso, numa canção de Gilberto Gil." Gargalhada.
No espetáculo que trouxe ao Bolina - vai mostrá-lo em Lisboa, no Chapitô, no fim de semana de 25 e 26 de maio -, Jurubeba é "catadora de ilusões", uma palhaça mendiga, que carrega uma mala cheia de objetos dispersos, aparentemente inúteis, mas que lhe servirão para sobreviver à solidão, numa sequência de jogos e equívocos cheios de humor, de riso e de humanidade.
Foi essa Jurubeba, brincalhona e imprevisível, capaz de se rir de si própria, carinhosa e atenta, que Gabi foi em Brumadinho, durante dez dias, levando um pouco de alegria e riso às populações da região que, de um só golpe, os perderam naquele dia trágico de janeiro. "Todo o mundo perdeu alguém: o pai, a mãe, filhos, amigos, a professora. Todo o mundo conta aqueles detalhes da lama que corria engolindo gente, casas, carros, animais", lembra. "Então o que a gente leva àquelas pessoas que estão sem esperança é um pouco de riso, que alivia aquela dor, um abraço, um ouvido para escutar o que elas falam. Elas precisam de falar." E o espetáculo que os Palhaços sem Fronteiras Brasil levaram a Brumadinho "foi bem alegre", garante Gabi Jurubeba.
Muitas vezes, depois de um acontecimento traumático como este, que desfez famílias e redes de amigos, que destruiu casas e modos de vida - "os pescadores não podem mais pescar, os agricultores já não podem plantar nada na região, por causa da contaminação dos metais pesados, as pessoas estão-se reinventando", garante Gabi Winter -, é no encontro com os palhaços que as crianças voltam a rir. "As mães vêm ter connosco para agradecer, porque viram o filho, ou a filha, rir-se pela primeira vez depois da tragédia".
Foi assim em Brumadinho, onde os Palhaços sem Fronteiras Brasil planeiam fazer uma segunda missão ainda neste ano. Mas foi assim também nas outras missões em que Gabi Winter participou. Em 2016, "no bairro mais difícil e perigoso de São Salvador", capital de El Salvador, e no Equador, num campo de abrigo temporário, criado para a população que ficou com as casas destruídas, na sequência de um terramoto; em 2017 num campo de refugiados da ONU, na Turquia, para os sírios que fugiam da guerra, e em San Martín, nas Caraíbas, devastada pelo furacão Irma; em 2018 no México, em centros de acolhimento de migrantes, e, já neste ano, em Brumadinho.
"O riso cura", diz Gabi. E diz Jurubeba também. O riso é vital para a mulher, mantém-lhe viva a alegria, mesmo no trabalho emocionalmente mais duro dos Palhaços sem Fronteiras. Mas também para a palhaça, porque essa, afinal, é a sua essência.
A italiana Claudia Cantone, que se reparte entre Roma, sua cidade natal, e Barcelona, onde é professora, na Nouveau Clown Institute, Escuela Internacional de Clown, e que veio ao Bolina apresentar o seu espetáculo a solo, orientar formações e participar nas intervenções de rua do festival, tem uma história particular. Antes de se dedicar à arte do clown, aos 34 anos, Claudia era polícia. Tornar-se palhaça nunca, até então, lhe tinha passado pela cabeça. "Foi uma mudança radical", concorda a rir-se.
Mas há uma explicação e, olhando para trás, Claudia percebe que "tudo fluiu como um rio. Dou graças à vida por isso", diz, com um sorriso emocionado. "O meu pai era polícia e quando acabei o liceu, aos 18 anos, falou-me de um concurso. Concordei em candidatar-me." Não que a profissão a seduzisse, mas uma coincidência infeliz acabou por decidir por ela. "Fiquei aprovada, e logo a seguir o meu pai morreu. A minha mãe ficou sozinha com três filhas, tive de ir trabalhar."
Chegou a vice-comandante de uma esquadra e lidou com informações sensíveis do crime organizado, mas um dia apeteceu-lhe voltar a estudar. Por mero acaso, visitou uma escola de teatro em Roma - "não estava a pensar ir por ali", garante -, mas a conversa com um professor convenceu-a. Nos três anos seguintes foi polícia durante o dia e estudante de Teatro à noite.
A palhaça chegou depois, com outro acaso, durante uma formação com o clown americano Jango Edwards. E depois Claudia Cantone viu-se numa encruzilhada: ou mantinha o trabalho seguro como polícia, ou dava um passo rumo ao desconhecido e tornava-se palhaça. "O meu marido, que é guionista de televisão, disse-me: 'Apoio-te, se é isso que queres'", recorda.
Hoje, com a sua palhaça Yaya - o seu nome, no dialeto romano -, acredita que ganhou profundidade emocional e espiritual. Fez palhaço de hospital e dá formação nessa área, e durante três anos teve uma companhia de clown com toxicodependentes de uma prisão de Roma, que só terminou quando deixou de haver verba para o projeto.
Claudia Cantone retém boas memórias do tempo de polícia, mas hoje dá "graças a Deus" por já lá não estar. "São maus tempos estes, na Itália, com Salvini, que abandona os refugiados no mar. Quem sabe, teria de andar a bater nas pessoas nas manifestações, na rua." A palhaça Yaya é toda uma outra vida. "É mais insegura, claro, mas sinto-me agradecida."
A portuguesa Eva Ribeiro, 33 anos, começou "a atribuir a designação de palhaça ao seu trabalho em 2006", e então nasceu a sua Muska. Depois de estudar Teatro na Escola Superior Artística do Porto, rumou a Paris para se aperfeiçoar, e fez várias formações em países europeus e no Brasil, onde também trabalhou. Há ano e meio, estabelecida em Matosinhos, criou um projeto de "palhaços visitadores", para percorrer os lares de idosos da região do Grande Porto. "Somos oito, fazemos intervenções junto dos idosos com demência." A ideia, explica, "não é o riso pelo riso". O objetivo "é empoderar os idosos, levá-los a sentir-se melhor e a brincar com as suas próprias fragilidades, usando o afeto".
A diferença do antes e depois da visita dos palhaços vê-se, garante Eva, que no próximo ano quer desafiar alguém da área da psicologia para monitorizar os efeitos destas intervenções do seu grupo de forma mais sistemática, para se poderem tirar conclusões sólidas. Mas na prática ela, que nesta edição do festival Bolina pôs o nariz a descansar por uns dias e é uma das almas da organização, sabe que a visita dos palhaços mudam sempre qualquer coisa - para melhor.
"Há idosos com demência que voltam a falar e a sorrir, memórias neles que regressam". Como diria Jurubeba, "o riso cura". Eva confirma. "Ser palhaço é um trabalho do coração." E não é a única dizê-lo. Pelo Bolina passaram esta semana cerca de seis dezenas de mulheres que se dedicam, com empenho, a fazer rir os outros, mesmo quando isso acontece no meio do sofrimento, ou em contracorrente aos ventos da política, como o "desinvestimento brutal na cultura" do atual governo liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, no Brasil, sublinham as participantes do outro lado do Atlântico.
De tudo isso fala a brasileira Karla Concá, este ano a madrinha do Bolina, que fundou, em 1991, o primeiro grupo de palhaças do Brasil, as Marias da Graça, e com isso tornou visíveis "estas mulheres corajosas". Ou Aneliza Paiva, que em Londrina, a sua cidade, no Paraná, tem estado na linha da frente, até agora com sucesso, para garantir que o governo da sua cidade não corta o financiamento da cultura. Enfim, vidas de mulheres, que também são palhaças.
(Artigo publicado originalmente a 17 de maio de 2019)