Marcelo e Costa, um casamento de convergência
Primeiro o silêncio, uma longa pausa e depois um ligeiro sorriso e a palavra "romance" seguida de uma segunda versão, "romance adolescente". Aqui, o sorriso de Marina Costa Lobo abriu. A investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS-UL) respondeu desta forma a uma provocação inicial, para resumir numa palavra a relação entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.
Os dois coabitam desde 9 de março de 2016, quando Marcelo assumiu funções. Costa era primeiro-ministro há pouco mais de três meses. Apesar de alguns sobressaltos - nomeação da nova administração da Caixa, incêndios de 2017, Tancos e a recente declaração do estado de emergência -, o país tem como adquirido que a relação está saudável, estável, algo que os meses de pandemia vieram comprovar e reforçar.
Marina Costa Lobo explica o que quis dizer ao certo com "romance adolescente" e fala da "sensação que temos quando estamos de tal maneira entusiasmados com o outro que queremos estar sempre juntos. Falam um pelo outro, é um sentimento de grande proximidade". A investigadora do ICS-UL não tem dúvidas de que a pandemia veio fortalecer essa "unidade". "Estão numa fase ainda de maior proximidade. Embora Marcelo Rebelo de Sousa tenha andado a fazer almoços à direita, a verdade é que do ponto de vista do comportamento tem havido total alinhamento com o primeiro-ministro."
Desse almoço no início desta semana saiu um novo aviso presidencial para a direita e o centro-direita. Sem uma alternativa programática, política e eleitoralmente viável ao governo do PS, o Presidente estará de pés e mãos atados na sua relação com o primeiro-ministro e com o governo socialista.
De Belém, o DN ouviu a mesma explicação para o caminho feito até agora pelo Presidente na relação com o primeiro-ministro. "Há fatores e condições políticas objetivas. Desde 2016 que há uma ausência constante de alternativa à direita."
Há dois anos, com o PSD em efervescência, com Santana de saída e desafios renovados à liderança de Rio, Marcelo fez um aviso público, confessando uma preocupação: "O que me preocupa é que a oposição se fragmente, que deixe de ser uma alternativa de poder."
Já não era na altura e o cenário que preocupava o Presidente confirmou-se. De pouco valeu o aviso. A partir da presidência, hoje, olha-se para a oposição à direita como um campo político "pulverizado" e num estado que acaba por condicionar o comportamento do Presidente. "O facto de a direita estar pulverizada, sem conseguir afirmar-se nesse espaço uma alternativa política ao governo, molda em termos objetivos o relacionamento entre Presidente e primeiro-ministro."
Será mesmo assim? Paulo Rangel não concorda com essa leitura. O eurodeputado, que confessa uma paixão de quase 30 anos pelo estudo da função presidencial em Portugal, tem uma visão oposta. "Se as oposições estão mais limitadas, por razões endógenas ou pelas circunstâncias do momento que o país está a viver, só há uma pessoa que está em condições de exercer esse escrutínio de forma ainda mais efetiva, que é o Presidente."
Um escrutínio, argumenta Paulo Rangel, que não tem de passar pelo uso de armamento pesado, mas antes por ir pondo regularmente "o governo em sentido". E há a pandemia como exemplo recente, diz o eurodeputado. "Quando vemos que os números em Lisboa, na última semana de maio, foram 300 novos casos por dia e na semana seguinte, de novo 300, o Presidente, em vez de pôr água na fervura, devia ter dito que era preciso tomar algumas medidas." Rangel considera que, neste caso da gestão da pandemia, "bastava o Presidente ter feito uma declaração dessas que, na segunda ou na terceira semana de junho, o primeiro-ministro estava a tomar medidas diferentes".
É por esta e por outras situações que Paulo Rangel escolhe a palavra "ambíguo" para classificar o relacionamento entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Num mar de tranquilidade, de quase total alinhamento com o governo, o Presidente teve ações e momentos que surpreenderam o antigo candidato à liderança do PSD. "Teve vários momentos em que deu sinais, que normalmente os presidentes não dão num primeiro mandato, de ser bastante exigente com o governo." Nos incêndios de 2017, quando "chegou mesmo a demitir uma ministra em direto", no caso de Tancos, em que "foi sempre muito insistente" e, por último, na declaração do estado de emergência, um "momento definidor, até em termos históricos", considera Paulo Rangel, porque "o Presidente forçou o primeiro-ministro" e utilizou aquele que é, a par da dissolução do Parlamento, "o poder mais grave que o Presidente da República tem, tão grave que nenhum Presidente o tinha exercido até agora".
Marina Costa Lobo não valoriza esses desentendimentos e foca-se no romance. "Houve momentos de alguma divergência, mas mesmo no caso dos incêndios, a postura inicial do Presidente foi a de imediatamente dar cobertura a tudo o que o governo fazia. Foi o primeiro a chegar e a dizer que o governo tinha feito tudo e que aquele não era o momento de fazer uma avaliação. Imediatamente calou qualquer tipo de crítica." Mais recente, a reação à pandemia é outro momento de "total solidariedade". Entendimentos e convergências que são valorizados pela opinião pública. "As pessoas estão satisfeitas por não haver enormes discrepâncias políticas entre PR e PM, ou seja, as pessoas apreciam esta cooperação institucional."
Passando do ICS-UL para o ISCTE, Pedro Adão e Silva, que cunhou há anos a expressão "bloco central de palácios" quando se referia a alinhamentos entre a presidência e o governo, fala agora de "mútuo acordo" quando lhe peço a tal palavra ou expressão para qualificar a relação entre os dois protagonistas. É uma "relação por mútuo acordo", em que o professor universitário e comentador residente do programa Bloco Central da TSF vê uma clara "convergência de interesses".
Os benefícios mútuos são óbvios, afirma Pedro Adão e Silva. "Essa ligação entre presidência e primeiro-ministro foi uma forma de o governo, por um lado, criar uma coligação mais ampla, compensando a coligação ancorada à esquerda no Parlamento e mantendo com isso o vínculo europeu, e, por outro lado, foi uma forma de o Presidente da República alargar a sua plataforma social de apoio indo para além do eleitorado que votou nele nas presidenciais."
Marina Costa Lobo olha para a relação entre Presidente e primeiro-ministro, do ponto de vista do palacete de São Bento e afirma que "o apoio de Marcelo Rebelo de Sousa foi muito decisivo para dar credibilidade a um governo que, à partida, parecia bastante frágil. Esse apoio nunca falhou e foi muito útil para a reeleição de Costa, para a vitória do PS, mais folgada". Na atual legislatura, reforçou-se a ideia de romance, numa relação que tem vantagens para os dois. "Eles agora precisam um do outro. Costa precisa de Marcelo porque estamos a falar de um governo minoritário - numa posição bastante confortável, mas minoritário - e Marcelo Rebelo de Sousa está a preparar uma eleição em que não lhe basta vencer, porque quer um resultado único - bater os valores da reeleição de Mário Soares."
Ganham ambos, mas perde o país? Paulo Rangel não tem dúvidas de que há uma perda. "Prefiro alguma distância, uma distância crítica melhora o sistema." O eurodeputado lembra que "Mário Soares, apesar de tudo, no segundo mandato e com alguns exageros, acabou por beneficiar o sistema. Tínhamos dois bons líderes políticos e o facto de eles competirem fazia que os dois fossem ainda melhores. Uma espécie de concorrência ou competição virtuosa, no sentido da exigência mútua. Não é o que está a acontecer agora".
Rangel insiste que "o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, nas condições que atravessamos hoje", num cenário de pandemia e com a oposição condicionada, "é a única pessoa que pode puxar as orelhas ao governo. Tenho toda a certeza de que António Costa seria um melhor primeiro-ministro se tivesse um Presidente mais controlador. Com alguém que o apoia em tudo, há uma tendência para um certo relaxamento".
Elaborando nessa ideia, Paulo Rangel defende que "um Presidente deve ser capaz de pôr a cenoura, mas também de ter um castigo ou uma sanção e aqui, por vezes, falha um pouco isso". Marcelo e Costa têm competido por espaço mediático, por palco, mas o eurodeputado social-democrata defende um outro tipo de competição. No fundo, uma marcação política mais atenta, mais intensa e que possa até evitar soluções mais radicais. "O Presidente deve ser um escrutinador e um controlador. É preferível puxar as orelhas do que dar uma coça. Aconteceu isso com Cavaco Silva. No fundo, não quis puxar as orelhas a Sócrates ou ser um pouco mais duro em determinadas fases e o que é que aconteceu? Assim que foi reeleito, fez um discurso em que praticamente desfez o governo." Esse escrutínio permanente, argumenta, "faz parte do nosso sistema e a legitimidade direta do Presidente faz que ele não possa demitir-se das suas funções".
Voltando a olhar este jogo de equilíbrios e de interesses quase sempre convergentes, Pedro Adão e Silva espreita a relação entre Costa e Marcelo do ponto de vista de um primeiro-ministro e de um paradoxo. "O resultado das últimas legislativas, se torna a liderança do PS mais robusta, naquilo que é um paradoxo, torna as condições de governação também mais exigentes. O que António Costa tem feito é uma espécie de navegação à vista e o Presidente da República tem sido uma espécie de farol, que vai estando em cada porto a ajudar o primeiro-ministro a navegar. O ponto é saber se, a certa altura, esse farol não vai tornar-se crescentemente instável."
Deixando a estabilidade futura do farol mais para diante, foquemo-nos agora nas condições políticas pós-presidenciais. O comentador do Bloco Central da TSF considera que é "fundamental saber se Marcelo Rebelo de Sousa vai ter ou não rivais políticos à sua direita, quer no centro-direita quer na extrema-direita, e de que forma é que o resultado desses rivais políticos pode reconfigurar a paisagem partidária pós-presidenciais à direita". No fundo, saber se a tal "pulverização da direita", identificada em Belém, vai ou não aprofundar-se.
Marina Costa Lobo avisa que "é realmente difícil fazer cenários no meio da pandemia. Estamos num período altamente volátil do ponto de vista da nossa situação socioeconómica e muita coisa pode ainda acontecer". Ainda assim, a investigadora do ICS olha para um Presidente a navegar ao centro e para um líder que também reposicionou o PSD mais ao centro e vê um risco acrescido de um défice de representação para eleitores da direita e do centro-direita. "Há esse risco e a direita está em reestruturação. Há um declínio sustentado do CDS/PP e o posicionamento do PSD com Rui Rio, ao contrário do que poderíamos esperar, não está a favorecer o CDS, mas antes a potenciar o surgimento de novos partidos."
Pedro Adão e Silva acredita que as presidenciais podem trazer sinais importantes sobre o quadro político-partidário. "Se houver um candidato da direita liberal que tenha algum resultado expressivo acima daquilo que foi a votação na Iniciativa Liberal, é possível que no quadro parlamentar, em eleições futuras, esse espaço político cresça, eventualmente até à custa do CDS e do PSD, ao mesmo tempo que, se André Ventura tiver uma votação muito acima do resultado que teve o Chega, isso condicione a margem de manobra que o Presidente possa ter para provocar uma crise política, porque a alternativa será sempre difícil de compaginar com um PSD mais ancorado ao centro."
"vamos ter um Presidente muito mais interventivo"
O romance é tão envolvente que Marina Costa Lobo sente que deve fazer um nota: "As presidenciais, a serem ganhas por Marcelo Rebelo de Sousa, serão uma vitória da direita e do PSD. Costa quer cooptar Marcelo, mas ele não é um candidato socialista. Há que pôr as coisas no seu devido lugar." Paulo Rangel alinha pelo mesmo aviso, mas dirigido a Marcelo Rebelo de Sousa: "Ele esquece-se deque tem de representar todos os portugueses, mas isso incluiu também os que estão no centro-direita e que são o seu eleitorado base. Ele que não tenha ilusões sobre isso."
Voltando à estabilidade do farol, parece haver um dado adquirido. Marcelo Rebelo de Sousa vai ter, como todos os presidentes, uma atuação bastante diferente num segundo mandato e isso afetará, inevitavelmente, a relação com António Costa. É dos livros, diz Marina Costa Lobo, que antecipa o fim do romance. "Nos segundos mandatos o Presidente não busca a reeleição e torna-se muito mais livre para agir dentro das baias constitucionais, segundo as suas preferências políticas, não tendo de estar sempre a apoiar o governo."
Paulo Rangel garante não ter dúvida alguma de que "vamos ter um Presidente muito mais interventivo". As tradições são para cumprir, sobretudo, diz o eurodeputado, quando estamos a falar de um Presidente com um sentido "lúdico" da política. "Nos sistemas semipresidenciais, a personalidade do Presidente conta muito. Não é o hábito que faz o monge, mas o monge que faz o hábito e nós conhecemos bem o lado lúdico do Presidente da República. Teremos mais um estratego e um conhecedor do sistema em ação, um Marcelo Rebelo de Sousa muito diferente, mais solto, até com a preocupação de deixar uma marca, um legado político."
Pedro Adão e Silva mantém a linha de análise e afirma que essa mudança no perfil de Marcelo enquanto Presidente está dependente do resultado das eleições. "Se a maioria de Marcelo Rebelo de Sousa for mesmo muito expressiva, o Presidente fica com um capital político que pode utilizar a partir de Belém, condicionando a governação ou até alterando o quadro político." Mas nem só de força eleitoral vivem os poderes presidenciais. Há que ter em conta o quadro partidário. No fundo, as condições objetivas que Belém tem insistido em usar como justificação para a convergência entre Marcelo e Costa ao longo dos últimos quase cinco anos. É preciso saber, diz o comentador, "se, por um lado, o PSD já foi capaz de formalizar uma alternativa programática, coisa que está muito longe de ter acontecido, e, por outro, se há indícios de que é possível construir uma maioria política a partir do PSD, algo que todos os indicadores demonstram que está longe de acontecer".
Por outras palavras, continua Pedro Adão e Silva, "o que é determinante e foi determinante na forma como as relações entre Soares e Cavaco, Sampaio e Barroso ou Cavaco e Sócrates se deterioraram, é saber, por um lado, se já há uma alternativa programática e política e, por outro, se essa alternativa é eleitoralmente viável. Enquanto isso não acontece, nenhum presidente provoca uma crise ou entra em confronto com o governo. O problema é que me parece que as presidenciais podem vir a diminuir as condições para que isso aconteça".
Mas, se uma das condicionantes da ação de Marcelo Rebelo de Sousa num segundo mandato passa pelo seu resultado eleitoral, não seria do interesse do PS ter um candidato próprio? Na opinião de Pedro Adão e Silva, tudo isso é verdade, mas há um nó com cinco anos e muito difícil de desatar. "É do interesse do PS que a votação de Marcelo Rebelo de Sousa não seja demasiadamente expressiva, mas é também do interesse do PS não ter alguém a competir diretamente com Marcelo Rebelo de Sousa, emanando da direção do PS, porque essa convergência de Marcelo e Costa corresponde aos interesses objetivos e subjetivos de uma fatia muito significativa do eleitorado, que suporta a atual governação. Ou seja, seria difícil que esta governação tivesse um candidato diferente de Marcelo Rebelo de Sousa."
Até porque, sublinha o comentador, o que está em jogo nas presidenciais é algo muito mais importante do que uma simples percentagem. "De um ponto de vista mais do médio prazo ou até mesmo estratégico, as presidenciais vão ser marcadas por uma clivagem entre aqueles que se reveem no essencial do regime e que estão empenhados em torná-lo mais robusto e defendê-lo, e aqueles que têm uma visão mais crítica do regime e, por isso, têm uma abordagem mais populista. Isto é verdade à esquerda e à direita. O grande desafio para Marcelo é se ele consegue fazer uma campanha popular, defendendo o regime face aos ataques populistas. Aí os interesses do Presidente e do governo são de novo convergentes."
Regressamos ao palácio de Belém para terminar com uma garantia. A convergência de interesses e aquilo que muitos classificam como colagem do Presidente ao governo, justifica-se por condições políticas objetivas e não pela qualidade do entendimento pessoal ou da amizade entre dois protagonistas com um longo historial político de encontros e desencontros. "O que determinou a evolução da relação entre Presidente e primeiro-ministro foi a situação do país e as condições políticas objetivas, mais do que o relacionamento pessoal entre os dois."