Como vão as nossas memórias cinéfilas? Relanço esta pergunta a propósito da estreia do filme Judy, realizado por Rupert Goold, evocando Judy Garland (1922-1969), não apenas uma atriz de raro e luminoso talento mas também um nome mítico da história e do imaginário de Hollywood que, com o passar das décadas, adquiriu o estatuto de símbolo universal do próprio Cinema (com maiúscula, porque não?)..Pois bem, mesmo não duvidando da perspicácia e inteligência dos espectadores (em particular das gerações mais jovens), a pergunta não pode deixar de envolver uma dúvida cultural. Porquê cultural? Precisamente porque a vitalidade de uma cultura (cinematográfica, neste caso) passa sempre pela agilidade das suas memórias, ou melhor, pela capacidade de nos fazer sentir que a configuração do nosso presente envolve, entre muitos outros fatores, a maior ou menor riqueza da nossa relação com o passado..A pergunta pode ser reformulada de modo muito cru, porventura cruel: quem se lembra de Judy Garland?.Protagonizado pela admirável Renée Zellweger, o filme lança-se (e lança-nos) nessa aventura de lidar com uma personagem (e um ícone) que, afinal, quase desapareceu dos circuitos de difusão do cinema, mesmo se é verdade que o espectador interessado tem à sua disposição, através do DVD ou do Blu-ray, o essencial da filmografia de Judy Garland. Estranhamente ou não, o culto da mãe de Liza Minnelli tornou-se minoritário. Mas quem sabe que Liza Minnelli é filha de Judy Garland? Dirá o leitor mais sarcástico: quem é Liza Minnelli?....Estranhamente ou não, o filme realizado pelo inglês Rupert Goold coloca-se fora de tais dramas, apontando para uma abordagem tão atípica quanto arriscada da pessoa chamada Judy Garland. E escrevo "pessoa" precisamente para sublinhar a serenidade (e, de algum modo, a coragem) de um filme que trata a sua personagem central para além das descrições pitorescas e anedóticas de Hollywood, típicas do populismo mediático, deslocando mesmo o essencial da sua ação para os tempos finais de Judy Garland quando, em Londres, deu uma série de concertos que ficaram como agitado capítulo final da sua biografia (morreu a 22 de junho de 1969, contava 47 anos, devido a uma dose excessiva de barbitúricos)..Mesmo quando Judy evoca os primeiros tempos da carreira de Judy Garland - em particular na cena de abertura, dialogando com o produtor Louis B. Mayer (1884-1957) no estúdio de rodagem de O Feiticeiros de Oz (1939) -, perpassa no filme a amargura de um destino de ambíguo dramatismo. Descobrimos Judy Garland como alguém que, para além dos belíssimos clássicos que protagonizou (recordo apenas o musical Não Há como a Nossa Casa, de 1944, realizado por Vincente Minnelli, pai de Liza), viveu numa crescente luta com a sua identidade "alternativa", gerada pela indústria do entertainment..Mesmo considerando que a competência do filme nunca ultrapassa o quadro tradicional de uma evocação biográfica, torna-se inevitável sublinhar o excecional contributo de Renée Zellweger. Até porque, embora em contextos totalmente diferentes, ela tem sido também uma atriz condicionada pela banalidade de um rótulo (associado à mediocridade dos filmes baseados em O Diário de Bridget Jones) que está longe de fazer justiça ao seu talento e versatilidade..Zellweger consegue, em particular, expor a luta interior de uma mulher que, afinal, nunca pôde sair de uma contradição visceral: assim, é verdade que Hollywood a "normalizou" na sua condição de estrela, afetando toda a sua vida privada; ao mesmo tempo, foi graças a Hollywood (e dentro do sistema de Hollywood) que Judy Garland existiu como uma atriz fora de série..A memória cinéfila leva-nos também a recordar que Judy Garland nunca ganhou um Óscar competitivo (recebeu um "prémio juvenil" pela globalidade do seu trabalho na produção de 1939). Talvez que um prémio de melhor atriz para Renée Zellweger possa funcionar também como uma reparação simbólica do esquecimento a que foi votada. Em qualquer caso, se Zellweger não surgir, pelo menos, entre as cinco nomeadas para o Óscar de Melhor Atriz, os caçadores de escândalos terão, ao menos por uma vez, razão para se indignarem..* * * Bom