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10 MAR 2019
10 março 2019 às 06h20

Guiné-Bissau: uma campanha de luxo num país sem dinheiro

761 676 guineenses estão registados para votar nas legislativas de dia 10, já adiadas duas vezes por dificuldades financeiras. Apesar disso, os 21 partidos na corrida parecem não ter falta de dinheiro. Jovens estão fartos de golpes e querem riqueza natural e cultural da Guiné-Bissau usada para o desenvolvimento do país.

António Nhaga, Bissau

É uma campanha eleitoral de luxo num dos dez países mais pobres do mundo. Esta é a frase que se ouve diariamente em Bissau e nas outras grandes cidades guineenses antes das legislativas deste domingo, dia 10. Jovens académicos e intelectuais mais críticos dizem não conseguir compreender como é possível os partidos políticos (há 21 na corrida eleitoral) inundarem o país com carros de luxo e ostentarem um volume de dinheiro que ninguém poderia pensar que existia na Guiné-Bissau. Num abrir e fechar de olhos. E querem saber a proveniência deste dinheiro que agora circula facilmente nas mãos dos líderes partidários. Por tudo isso dizem que o que há no país é "uma campanha de luxo num país de lixo".

Não obstante as críticas e o facto de o país ter adiado já duas vezes o processo eleitoral, o governo guineense conseguiu reunir todas as condições necessárias para que 761 676 eleitores guineenses possam ir às urnas para eleger os 102 deputados. Foi com apoio internacional que o governo de Aristides Gomes conseguiu ultrapassar as enormes dificuldades materiais e financeiras que tinha e que poderiam, pela terceira vez consecutiva, pôr em causa a data de 10 de março marcada pelo presidente da República José Mário Vaz para a ida às urnas naquele país lusófono membro da Comunidade Económica dos Estados de África Ocidental (CEDEAO).

Para o comerciante ambulante da capital guineense Sadjo Turé, "com o início da campanha eleitoral não tem havido movimento nas compras na cidade de Bissau. Todos foram fazer campanha eleitoral". Em seu entender, "a atual campanha eleitoral reflete-se negativamente no negócio dos comerciantes ambulantes". Sadjo Turé lamentou a falta de seriedade dos dirigentes políticos, que conduziram o país a uma fragilidade económica sem precedentes na sub-região. "Hoje, em virtude da instabilidade política governativa, nem todas pessoas têm poder de compra na Guiné-Bissau", explicou ao DN, esperando que haja na próxima legislatura um desenvolvimento positivo em todo setor do comércio, em particular no comércio ambulante, nas grandes cidades. Porque acredita nas promessas eleitorais que alguns políticos apresentaram no seu tempo de antena na rádio e na TV.

Também a proprietária do restaurante Padeira Africana de Bissau, Lurdes Guerra, considera que a situação económica do país é agora tão difícil que pretende abandonar a restauração, deixando um número significativo de famílias guineenses desempregadas e sem sustento. "Se a situação da restauração continuar assim, irei abandonar o setor", advertiu Lurdes Guerra, desabafando em seguida: "Trabalho há 15 anos na restauração na Guiné-Bissau, mas nunca tive uma crise como esta. Uma casa muito conhecida em Bissau e há dias em que não tenho nenhum cliente."

Nos grandes mercados de Bissau, a preocupação dos comerciantes é a mesma. Todos lamentam a falta de poder de compra, a precariedade económica e social a que o país ficou votado com a constante instabilidade política e governativa e as sucessivas lutas fratricidas pela captura dos recursos do Estado por parte da classe política e dos militares. "O poder económico de um feirante hoje na Guiné-Bissau é péssimo e bastante frágil comparando com os outros países da nossa sub-região", explicou ao DN a feirante do Mercado de Quirintim Fatumata Sisse. E acrescenta: "Dantes havia um grupo de barqueiros e compradores grossistas que nos compravam os produtos. Mas tudo mudou, e para pior. Ficamos com os nossos legumes até apodrecerem, sem vendermos nada para, pelo menos, podermos recuperar o nosso dinheiro."

Também a peixeira do Mercado de Bandim Mimosa Lopes diz que a situação não é nada encorajadora para as mulheres. "Tudo está fraco em termos da procura de peixe. Já não consigo vender o mesmo volume de peixe que vendia há anos, porque os clientes já não aparecem, por dificuldades financeiras." Sustenta ainda que "o peixe custava 250 francos CFA, agora é 500 francos CFA". E lamenta a forma como instabilidade política governativa "fragilizou o poder de compra das famílias guineenses, fazendo que poucas estejam em condições económicas de adquirir peixe de primeira qualidade no Mercado de Bandim".

A Guiné-Bissau é um país lusófono em contingência económica porque precisa da ajuda pública para o seu desenvolvimento. É ainda um país de precariedade na saúde e na educação. Por exemplo, 30% das crianças estão fora do sistema educativo, 20% dos agregados familiares das zonas rurais vivem em situação de insegurança alimentar. Nalgumas zonas rurais, como a de Quinara, a insegurança alimentar atinge 27%. No meio urbano de Bissau esse valor é de 3% dos agregados familiares. Globalmente, 65% dos agregados familiares guineenses recorrem a estratégias de sobrevivência para fazer face à escassez de alimentos. Há, por outro lado, ausência de uma política social que permita às famílias mais vulneráveis e de baixos rendimentos usufruir de um mecanismo que possibilite um acesso aos alimentos de forma equitativa.

Em contrapartida, os guineenses orgulham-se também de viver num país com um dos maiores patrimónios naturais e culturais do mundo. Que tem a maior concentração de biodiversidade, com 26% de áreas protegidas e uma plataforma marítima impressionante. É a segunda maior potência de pesca na África Ocidental. Possui, por outro lado, na sub-região, uma baixa densidade populacional com 33 grupos étnicos, cada um com a sua cultura e tradição, constituindo um rico mosaico social e cultural para o desenvolvimento do país.

A forma que os guineenses têm de transformar estas duas imagens contraditórias de um país, como se de duas Guinés se tratasse, é ir votar neste domingo. Os jovens académicos e intelectuais que neste ano abraçaram pela primeira vez a política dizem não ter dúvidas de que qualquer líder que consiga a proeza de transformar as duas imagens contraditórias da Guiné-Bissau em ativos para o seu desenvolvimento terá, sem dúvida, a aceitação dos jovens eleitores. Estes querem tirar a Guiné-Bissau da instabilidade política governativa e colocar o país na agenda mundial do desenvolvimento económico e social.

Quando se olha para o novo cenário político que os jovens académicos e intelectuais guineenses estão a arquitetar para a Guiné-Bissau vê-se que nunca, desde as primeiras legislativas de abertura democrática, em 1994, as eleições foram tão mobilizadoras como agora. Muitos jovens com qualificações técnicas e profissionais aderiram, o que obrigou os líderes dos 21 partidos políticos concorrentes a apresentar todos os seus candidatos a deputado e a debater em público os seus programas eleitorais. O que nunca dantes acontecera.

Outro fator novo nestas legislativas é o afastamento por completo dos militares. No entender do sociólogo guineense Miguel de Barros, "a ausência de um papel dos militares nestas legislativas não significa que eles não têm a sua vontade de sempre em coagir os líderes dos partidos políticos". Mas desta vez não o podem fazer porque ainda estão estacionadas no país as forças de intervenção rápida da CEDEAO - uma espécie de tampão. Ainda na visão de Miguel de Barros, "eles estão agora a braços com as sanções do golpe de Estado de 12 de abril de 2012".

Miguel de Barros defende ainda que "a emergência na Guiné-Bissau de uma comunicação social mais atuante", quer na imprensa escrita, quer na radiofónica, quer na produção do conteúdo audiovisual, articulada com as redes sociais, elevou também bastante a exposição e a participação dos jovens na vida política. O que a seu ver "permitirá uma profunda renovação interna de tecidos sociais dos partidos políticos com recursos humanos qualificados". Estas são também as primeiras eleições em que os partidos políticos foram obrigados a ter mulheres como cabeças-de-lista. As mulheres podem nesta legislatura duplicar a sua representação parlamentar.

O politólogo guineense Rui Jorge diz não acreditar que "depois da publicação dos resultados finais e definitivos das eleições as forças políticas que agora lutam aceitem os resultados". Por outro lado, o politólogo afirma que " os investimentos avultados que os partidos políticos fizeram agora na campanha eleitoral para adquirir viaturas e cartazes de luxo são de proveniência duvidosa". Defende igualmente que a guerra interna no PAIGC, que levou a expulsão de 15 dos seus ex-deputados, poderá criar ainda mais tensão no pós-eleições.

Por seu turno, o jovem sociólogo Certório Tambá, professor na Universidade Lusófona da Guiné e do Instituto de Formação Bimantex, considera que "a saída para a instabilidade política governativa controlada em que o país vive agora é dar nas urnas destas legislativas a oportunidade a um político experiente, que possa estabilizar o país". E de uma vez por todas.

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