Como a Nazaré se prepara para o verão mais quente (e atípico) de sempre

Com apenas cinco casos de covid-19, uma das praias mais típicas do país aposta nesse chavão de limpa e segura. Ao fim de tanto investimento na promoção internacional, está preparada para voltar ao princípio: o mercado interno. Mas na Nazaré nem a pandemia afastou a abertura de novos negócios.
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Walter Chicharro pousa a máscara personalizada com a marca Nazaré enquanto responde à questão do momento: Quem é que vai controlar que ali, na praia à nossa frente, a "carga máxima" seja de 17 100 pessoas? "A praia da vila preocupa-me. Os outros dois areais não, por serem tão extensos. A praia do norte nem sequer tem números de carga máxima, por não ser concessionada; na praia do Salgado estão estipuladas 3500 pessoas, para um areal com cinco quilómetros. Mas a questão que eu coloco chega a ser constitucional: o direito de ir à praia existe, está na lei, e não é o presidente da câmara que o vai impedir - não tem competência para isso, mas mesmo que tivesse não iria proibir ninguém de ir à praia. Não posso proibir aquilo que é um direito das pessoas."

Eleito pela primeira vez presidente da Câmara da Nazaré em 2013, o autarca socialista está a preparar-se para o seu sétimo verão em funções. Não fora a pandemia, talvez já fosse (ou não) também presidente da Federação do PS no distrito de Leiria. E está perfeitamente alinhado com o discurso do Governo em matéria de covid-19: "Do ponto de vista do distanciamento, subscrevo as palavras de António Costa: cada cidadão será o polícia de si mesmo". Então, como é que será possível encontrar um equilíbrio entre as normas de segurança recomendadas pela DGS e aquilo que é apontado pelos especialistas como o verão mais quente de sempre, que se avizinha? "Não sei dizer". Walter e a equipa da autarquia trilharam o caminho que estava ao seu alcance: o areal tem entradas e saídas delimitadas. A célebre bola da nívea que há várias gerações serve de ponto de encontro no extenso areal da Nazaré, tem agora por companhia placas informativas com regras de saúde pública. O presidente da Câmara percorre com o DN o caminho até ao mar, num sábado, 6 de junho, primeiro dia da época balnear deste ano. Há pouca gente na praia, está sol mas não muito calor, o comandante da capitania e a polícia marítima vão testando os percursos. Contudo, lá vai ele avisando quem percorre o passadiço de madeira em sentido contrário. "Vamos ter que contar com as pessoas a colaborar", adverte.

As ondas que esbateram a sazonalidade

Os últimos meses foram de uma inesperada acalmia nos números que o turismo escreve, na Nazaré, já que desde que o surfista Garrett McNamara inscreveu a onda gigante da praia do norte no Livro Guinness dos Recordes, em 2011, esbateu-se quase por completo a sazonalidade da vila. Desde então a Nazaré explodiu ao ritmo das ondas gigantes. A pequena vila piscatória - como ficou conhecida na Europa, desde os anos 1960, graças às fotografias de Paul Girol - estava imparável, nos últimos anos. Mas a pandemia veio abanar esse frenesim. Até há poucos dias contavam-se apenas dois casos em todo o concelho, e por isso tão-pouco entrava nas estatísticas. No final de maio apareceram mais três casos, "importados", como lembra o presidente da Câmara. Ainda assim, números que, segundo o autarca, descansam os turistas. E por isso está preparado para voltar a ver a marginal cheia de gente, os restaurantes "a funcionar muito bem", como de resto já aconteceu nos últimos dias de maio, quando o calor apertou.

Os números da Associação Portuguesa do Ambiente, conhecidos nessa altura, preocuparam-no. "Vamos ter o verão mais quente de sempre. É natural que as pessoas queiram estar à beira-mar. Isso vai gerar aglomerados. Eu acredito muito no civismo das pessoas e num certo medo - acho que também tem ajudado a que tenhamos poucos casos", sublinha Walter Chicharro. "O que me preocupa é que esta terra punha aqui facilmente 70/80 mil pessoas no passado, com esta globalização e as 120 nacionalidades que ainda em 2019 aqui passaram na Nazaré, e muitas dessas vão à praia. Ora, se temos uma limitação de 17.100 pessoas, o que me preocupa é a segurança. E quem é que lhes vai dizer que não pode entrar?"

O autarca tem deixado a questão em diversos fóruns, junto do Governo. Acredita que à medida que o verão e a pandemia forem avançando, haverá alterações. Da sua parte, está preparado para uma época balnear atípica, insistindo sempre na comunicação. Nos últimos dias estreou na net um vídeo que mostra isso mesmo: "Continuamos prontos para receber toda a gente e em segurança". Além disso, lembra que o mercado interno "sempre foi o nosso primeiro mercado. Depois o mercado da saudade (os tempos do antigamente já não existem, em que o emigrante passava um mês inteiro na terra. Agora muitos vão uma semana ao Algarve e outra à Nazaré". E embora o mercado francês continue a ser o segundo maior (logo a seguir ao nacional), este ano conta sobretudo "que pelo menos o mercado espanhol abra". Porque o presidente sabe que, sem turistas, a economia local desfalece. E, para já, isso ainda não se notou. Mesmo em tempo de pandemia, a Nazaré preparou-se para receber muita gente nova. No final de maio foi inaugurado um ecoresort com 166 alojamentos - o Ohai Nazaré. Alberto Carvalho, diretor do empreendimento, disse ao DN que a abertura chegou a estar prevista para abril. Foi adiada devido à pandemia, Mas "estávamos constantemente a ser pressionados para abrir, tal era o número de reservas".

Na vila, há restaurantes que aproveitam as novas orientações da DGS para remodelar espaços e conceitos. Mas ainda é cedo para aferir do sucesso que terá este verão numa praia como esta. O espaço público da terra sempre se prestou a grandes aglomerados. "A Nazaré é uma terra confinada por um promontório e uma encosta, feita de ruas estreitinhas. É um espaço de esquininhas, aliás. Mas também é um espaço com um areal muito grande", sublinha o autarca, que fala não apenas da praia da vila (a mais pequena do conjunto concelhio) como das restantes, que considera "enormes, como a praia mais internacional de Portugal - a praia do norte, conhecida pelas ondas gigantes no inverno. Agora veja: a praia do Salgado tem 5 km de areal e cerca de 3100 pessoas de carga máxima..."

Walter Chicharro justifica os números residuais de covid-19 com "um controlo que tem sido muito forte, nomeadamente no que respeita à vigilância das cadeias de transmissão". Mas dali lança um olhar para o país: "Desde que o covid apareceu vivemos numa dicotomia saúde/economia. Para nós essa é a preocupação fundamental, a Saúde. Mas sem economia também não vamos ter saúde. Quando olhamos para os dados do desemprego, ou vemos que que a descida do PIB em março terá chegado aos 25%... isso é impensável para um país pequeno como Portugal. A abertura de fronteiras é crucial. Não vejo isso como um problema. Portugal tem-se sabido posicionar como a Meca do turismo, o melhor destino mundial."

O assistente de praia, a nova figura

Para lá dos nadadores salvadores, as praias da Nazaré passam a contar com outra figura: o assistente de praia, que nas entradas e saídas, e eventualmente no areal, vai sensibilizando as pessoas. A autarquia lembra que a praia da vila e a do norte são vigiadas o ano inteiro, e que por isso não se deparara com dificuldades em contratar nadadores-salvadores.

Mas há mudanças que já foram feitas. As áreas desportivas - dedicadas ao andebol e futebol de praia - por abri, os lava-pés não vão estar colocados, tudo "para não criar aglomeração". O parque infantil também não vai estar a funcionar este ano. Enquanto cafés e restaurantes redimensionam a lotação, há um negócio que cresce: o imobiliário. "Ainda ontem jantei com empresários estrangeiros que estão a fazer grandes investimentos imobiliários, turísticos, e percebe-se que eles fazem a aposta por esta segurança e capacidade de gerar bons negócios", crê Walter Chicharro.

Na marginal continuam os vendedores de peixe seco, junto aos estendais no areal. Uma delas é a carismática Manuela Couto Falacho, 86 anos. Oferece carapau a quem passa, dali não há de arredar pé enquanto for viva. Uns e outros queixam-se (como sempre) do fraco negócio. É um clássico. Do outro lado ainda faltam as chambristas, esse ícone da Nazaré. "Só lá para dia 1 (de julho) é que isto começa a mexer", garante Maria Adelaide.

De chambristas ao alojamento local

Mas Walter Chicharro acredita que há de ser mais cedo. "Nos dois primeiros fins de semana de bom tempo foi a loucura total, com as casas comerciais, principalmente os cafés a trabalharem muito bem, com muita gente a passear, com gente na praia. E muita gente de fora. O que me leva a pensar que o alojamento local também está bem composto". E esse, acredita Walter, tem vindo a adaptar-se ao longo dos tempos. Quem já foi à Nazaré sabe que a marginal e as ruas adjacentes estão repletas de chambristas, ou "as mulheres dos chambres" - como se autodenominavam as nazarenas que exibem placas para aluguer de quartos. Percebe-se, até aí, a influência do mercado francês. "Já não é o alojamento dos tempos da minha mãe, grande chambrista, que no final da década de 90 alugava os seus quartos, e assim me permitiu estudar em Lisboa e fazer o meu curso."

O presidente considera que essa foi uma adaptação bem feita, desaguando no alojamento local. "Hoje o alojamento local está muito preparado, muito digital, com um mercado interessante extra, que são as empresas de prestação de serviços de vária ordem, desde a promoção nas redes sociais, ao check-in e check-out.

De resto, agora é esperar que tudo fique bem, como dizem os desenhos das crianças nas janelas. Walter Chicharro diz que lhe dá "uma vaidade imensa" saber que no ano passado ali estiveram 120 nacionalidades, na Nazaré. "Isso diz de nós que somos uma marca global. Só África não tem aqui grande representação. Todos os outros continentes, mesmo os mais distantes, têm aqui grande representação. Este ano sabe que conta pelo menos com o mercado interno. E foi esse quem mais entrou no forte de São Miguel Arcanjo, no ano passado.

Já o pequeno ascensor da Nazaré, "dá-se ao desplante de dar uma abada ao elevador de Santa Justa, em Lisboa, e a Guindais, no Porto". São "mais de 100 mil passageiros de diferença para Santa justa", atira o autarca. No final de 2013 havia 636 mil passageiros, mas 2019 fechou com um milhão e 23 mil passageiros. "Isso mostra o sucesso que temos tido". Walter sabe que este ano não vão crescer dessa maneira. "Temos logo 3 meses perdidos". Mas na vila e no Sítio "os hotéis recorrem ao selo Clean & Safe. E o município aposta numa mensagem de terra limpa, aprazível, espaço público recuperado". Da sua parte, fez tudo o que podia. Que agora é esperar que a pandemia passe e o turismo regresse, nesse equilíbrio entre Saúde e Economia. "Mas esse não é um problema da Nazaré. É um problema do país", conclui Chicharro.

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