Em três meses, vendidas mais de 5 milhões de embalagens de ansiolíticos e antidepressivos
Portugal é o quinto país da OCDE que mais consome ansiolíticos e antidepressivos, atingindo já uma taxa que duplica a de países como Holanda, Itália e Eslováquia. Não se sabe se a pandemia veio agravar esta situação, mas nos primeiros três meses do ano foram vendidas mais 400 mil embalagens do que no mesmo período em 2019.

Portugueses são dos povos da OCDE que mais consomem ansiolíticos e antidepressivos.
"Um povo de brandos costumes." É assim que os portugueses costumam autodefinir-se, mas não só. Lá fora, a imagem de um povo brando nos costumes, tolerante, resiliente, com grande capacidade para se adaptar às situações difíceis, também vence. Mas o que explica então que sejamos o quinto povo dos 29 que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) que mais consome medicamentos ansiolíticos e antidepressivos? Será o medo de sentir a dor psicológica, será o cansaço pelas condições de vida precárias? Será a própria prática médica de prescrição fácil? O que explica que os portugueses consumam este tipo de medicamentos de forma exagerada?
A resposta não chega com certezas. Aliás, Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa Medicina Geral e Familiar (APMGF), diz mesmo, em tom de brincadeira: "A resposta vale um milhão. Não a tenho. Nem eu e provavelmente nenhum dos meus colegas. Há um conjunto de circunstâncias, desde a prescrição à automedicação, e este é um dos grandes problemas", defende.
O psiquiatra António Leuschner, presidente do Conselho Nacional para a Saúde Mental, concorda que a resposta para esta situação "é multifatorial" e defende mesmo que o sofrimento psicológico dos portugueses deveria ser objeto de estudo, até para se procurar e planear respostas mais adequadas.
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O médico diz ser difícil lutar contra "hábitos que estão enraizados na sociedade," um deles o da automedicação. "Há doentes que começam a tomar ansiolíticos porque têm amigos que tiveram os mesmos sintomas que eles - como ansiedade ou perturbação do sono - e tomaram estes medicamentos, porque foram prescritos pelo médico, e que se deram bem. Este tipo de automedicação é um problema, tomo porque o meu pai ou meu amigo tomou e correu bem. Muitos não têm sequer prescrição e se fossem avaliados por um médico ou não tomariam medicamentos ou então teriam de tomar outros."
Acrescentando: "Estamos a falar de substâncias que dão mais tolerância à pessoa para suportar determinada situação, mas que causam habituação, e pode dar-se o caso de a pessoa continuar a tomar sem necessitar. E hoje há outras formas de tratamento e de apoio a alguns doentes que poderiam ver a sua situação ou os sintomas resolvidos sem medicamentos."
De acordo com os dados fornecidos ao DN pelo Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed), de janeiro a março deste ano foram vendidas 2 664 414 embalagens de medicamentos da categoria dos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, e 2 262 530 embalagens da categoria dos antidepressivos, num total de 5 277 144 embalagens.
Ao todo, mais 433 214 embalagens do que no mesmo período homólogo de 2019. Mas durante o ano passado todo foram vendidas quase 20 milhões de embalagens destes dois tipos de medicamentos.
Segundo os mesmos dados da autoridade do medicamento durante o ano passado foram vendidas 10 329 106 milhões de embalagens de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos e 9 368 778 de embalagens de antidepressivos, com um encargo para o SNS da ordem dos mais de cem milhões de euros, uma subida da ordem dos 5% em relação ao ano anterior.
No universo da OCDE, o último relatório, publicado em dezembro de 2019, pode ler-se que a tendência de consumo deste tipo de medicamentos em Portugal mantém-se estável desde 2014, sendo preocupante, sobretudo no que toca ao consumo de benzodiazepinas.
A preocupação sobre o consumo dos medicamentos ansiolíticos e antidepressivos, refere a OCDE, é generalizada, já que entre 2000 e 2017 alguns países, como Portugal, atingiram taxas que são mais de metade de países como a Holanda, a Itália e a Eslováquia.
A explicação para este aumento pode estar no facto de algumas doenças, como a depressão, serem mais sinalizadas e diagnosticadas, mas a organização alerta para a necessidade de se conter ou inverter esta tendência. À frente de Portugal, neste tipo de consumo está a Islândia, o Canadá, a Austrália e o Reino Unido.

A automedicação é um problema.
Para Rui Nogueira, uma boa parte da explicação para o consumo exagerado destes medicamentos tem que ver com a automedicação. "A automedicação não tem mal se for orientada, o problema é quando não é." Ou seja, sublinha, "uma coisa é quando a automedicação surge já depois de o doente estar a tomar um medicamento prescrito pelo seu médico. Por exemplo, o médico diz-lhe que deve tomar durante dez dias, o doente sente-se bem e continua a tomar, mas regressa ao médico e a situação é reavaliada. Esta é uma automedicação orientada. Outra coisa é quando o doente, por sua iniciativa, começa a tomar medicamentos para a ansiedade ou para perturbações do sono sem qualquer avaliação técnica. Isto pode dar mau resultado."
O médico refere também outro facto como alerta para as consequências desta automedicação: "A dor física pode ser avaliada pela pessoa, sente uma dor de cabeça, uma dor no corpo, consegue medir essa intensidade e como a tratar sem ir ao médico, A dor psicológica não consegue avaliá-la, esta carece de uma avaliação médica, "porque estamos a falar de medicamentos que causam habituação e que, muitas vezes, depois os doentes não conseguem deixar de tomar".
Rui Nogueira é médico de família há muitos anos e hoje assume mesmo não saber o que explica o comportamento dos portugueses. "Com a pandemia sentimos medo e metemo-nos em casa. Fizemos o correto. Com os ansiolíticos e antidepressivos, não sei se será também o medo de sentir a angústia, a ansiedade, o medo de não dormir, que nos faz, muitas vezes por iniciativa própria, tomar estes medicamentos", sublinha.
E desabafa: "Se olharmos para os relatórios internacionais, os portugueses são dos povos com melhores indicadores de saúde, são saudáveis, mas queixam-se muito e consomem muitos medicamentos."
O psiquiatra António Leuschner diz ter poucas certezas, mas, hoje, com 70 anos, e com quase 50 de medicina e exercício de psiquiatria, tem uma: "O ato de prescrever é fácil e rápido, mais do que ter tempo para se falar com o doente para perceber a causa da sua ansiedade ou a perturbação do sono."
O médico diz que apenas compreende a situação porque, "entre o ter de ver entre cinco doentes ou dez ou 15 num só dia, entre outras tarefas, o médico pode não ter tempo para ouvir um doente durante o tempo necessário para perceber a causa dos sintomas e propor-lhe outro tipo de tratamento, como a psicoterapia, que resulta muito bem em situações mais ligeiras, e sem termos de se avançar logo para a medicação".
Mas como não há tempo, admite, prescrever logo medicamentos para situações mais ligeiras "é uma prática que está enraizada na nossa medicina. Têm vindo a ser feitos muitos esforços para a reverter, até do ponto de vista legislativo - as receitas dos medicamentos ansiolíticos não são renováveis, o doente tem de voltar ao médico".
Mas a verdade é que esta prática mantém-se. O psiquiatra defende que a mudança na abordagem deste tipo de situação deveria começar logo nos cuidados primários, ou melhor, de proximidade, como prefere designá-los, porque "são o primeiro contacto com o doente. É ao médico de família que o doente fala em primeiro lugar sobre os sintomas que sente e é nestas unidades que se deveria começar por ter técnicos, como psicólogos, que pudessem acompanhar estes doentes. Se fosse possível, não tenhamos dúvidas de que o consumo destes medicamentos cairia logo".
O psiquiatra defende que cada vez mais a medicina, como a psiquiatria, é feita em equipa, com a interação de vários técnicos. "Sobre isto não posso estar mais de acordo", e que as mudanças em termos de saúde mental deveriam ir por aqui.
Sobre o cenário da pandemia, António Leuschner diz que não ficaria surpreendido que o tempo de confinamento trouxesse um aumento de consumo destes fármacos, assim como mais consumo de álcool, mas é prematuro fazer tal avaliação. "É muito prematuro, teria de ter dados para os avaliar", refere.
A tendência do consumo de medicamentos ansiolíticos e antidepressivos mantém-se há anos. Os especialistas temem que se agrave com a pandemia, se os efeitos desta, como a crise económica, perdurarem muito no tempo. Por isso, e como defendeu recentemente em entrevista ao DN o diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, Miguel Xavier, "a resposta para a saúde mental não passa só pela oferta de cuidados de saúde, mas de políticas fortes a nível económico e social".
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