Dia agitado no Brasil depois de um juiz de turno do 4.º Tribunal Federal Regional, em Porto Alegre, ter concedido habeas corpus a Lula da Silva e determinado a sua soltura imediata na manhã de ontem. Na sequência de uma guerra de cinco despachos em sete horas, reações contraditórias, conflitos de competências e caos jurídico, o mesmo magistrado voltou a exigir, a meio da noite, que a polícia libertasse o antigo presidente. Os agentes, porém, já não sabiam o que fazer. A novela, com contornos cada vez mais políticos e as eleições presidenciais de Outubro como pano de fundo, deve continuar nos próximos dias com reclamações para as instâncias superiores, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Às 13 horas, em Lisboa, Rogério Favreto, juiz desembargador de plantão no mesmo tribunal de segunda instância que em Janeiro deste ano condenou Lula a 12 anos e um mês por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, aceitou um pedido de habeas corpus de parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) com base na condição de pré-candidato às presidenciais do detido e determinou a sua libertação imediata. Logo a seguir, Sergio Moro, juiz de primeira instância e, portanto, hierarquicamente abaixo de Favreto, considerou o desembargador de plantão "incompetente" para aceitar "de forma monocrática" aquele habeas corpus e sugeriu, a partir de Portugal, onde passa férias, que fosse Gebran Neto, o relator do processo naquela corte, a pronunciar-se. A procuradoria-geral da República, entretanto, também pediu ao juiz que reconsiderasse. Em novo despacho, desta vez às 16.30 portuguesas, Favreto (que teve ligação de 20 anos ao partido de Lula) manteve o seu entendimento, ordenando à polícia novamente a soltura de Lula. Gebran Neto, interveio então, concordando com Moro e a procuradoria: considerou que o habeas corpus aceite por Favreto não tinha razão de ser. Para Gebran, o seu colega foi induzido em erro, ao acatar o argumento de que Lula é pré-candidato à eleição de outubro porque essa condição não lhe traz nenhuma vantagem em relação aos demais cidadãos nem confere um facto novo ao processo. Passavam quatro minutos das 22 horas quando Favreto, pela terceira vez, mandou a polícia soltar Lula no prazo de uma hora: confusas, as autoridades não agiram no tempo requerido. Especialistas ouvidos pela imprensa afirmaram não ver um caso de desacato policial a uma ordem judicial mas apenas uma indefinição gerada pelo caos jurídico..Em paralelo, a população brasileira mobilizou-se: centenas de populares deslocaram-se à superintendência de Curitiba, onde Lula está detido há 92 dias, a exigir a continuação do político na cadeia. O PT, por sua vez, congratulou-se com a decisão de Favreto e exigiu a liberdade do seu líder histórico nos termos do despacho. Nas redes sociais, por uma vez nas últimas semanas, o Mundial de futebol, Tite e Neymar passaram para segundo plano. Nos próximos dias, a guerra jurídica, que se tornará sobretudo política, deve ter novos episódios..Líder em todos os cenários eleitorais.Lula, presidente brasileiro de 2003 a 2010, foi condenado a 12 anos e um mês de prisão em abril por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pela posse de um apartamento tríplex no Guarujá, cidade balnear a cem quilómetros de São Paulo, no contexto da Operação Lava-Jato. A pena foi dada em janeiro pelo coletivo de juízes do Tribunal Regional Federal de Porto Alegre e posteriormente confirmada pelo Supremo Tribunal Federal ao rejeitar o pedido dehabeas corpus da defesa do antigo metalúrgico..Ao mesmo tempo, Lula é pré-candidato pelo PT à presidência da República nas eleições de outubro, cujas sondagens lidera, em todos os cenários. Com habeas corpus aprovado e solto, não é líquido que possa ser candidato mas teria, pelo menos, liberdade de participar na campanha eleitoral e de defender outro concorrente do PT..A eventual libertação de Lula não é sinónimo da possibilidade de o antigo presidente da República concorrer às eleições presidenciais de outubro. Mas terá influência na campanha e, por consequência, no resultado final do sufrágio.. Condenado em segunda instância, e portanto enquadrado na chamada "lei da ficha limpa", que impede cidadãos naquelas circunstâncias de concorrer a cargos públicos, Lula não poderá ser candidato só pelo facto de estar solto. Entendimento definitivo sobre o caso só será dado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em agosto, quando os candidatos são nomeados pelos seus partidos em definitivo - e há precedentes de um lado e de outro. É a Rosa Weber, presidente do TSE e membro do Supremo Tribunal Federal por tradição hostil aos condenados na Operação Lava-Jato, que caberá o veredicto. Mas, uma vez solto, nada impedirá Lula de fazer campanha pelo candidato alternativo do Partido dos Trabalhadores, que ao que tudo indica será Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo. E a presença do antigo presidente da República do Brasil em comícios país afora é considerada decisiva para o resultado eleitoral: em 2010, impedido pela Constituição de se reeleger ao Palácio do Planalto, conseguiu transferir a sua popularidade e os seus votos para Dilma Rousseff, eleita e depois reeleita. O próprio Haddad chegou à prefeitura de São Paulo muito graças à participação de Lula na campanha. Ao contrário, se estiver preso o antigo sindicalista terá os seus movimentos atados, o que poderá ter efeitos eleitorais terríveis para o PT, cuja popularidade sozinho, é muito inferior à do seu líder histório, de acordo com as sondagens e a opinião da maioria dos observadores.