"Europa e EUA estão a apostar em sanções à Rússia que constituem uma espécie de "guerra nuclear económica""

Professora de Filosofia, Política e Economia na Universidade Católica de Lisboa, Ana Maria Evans analisa a atual guerra da Rússia contra a Ucrânia, o choque entre a NATO e Moscovo e as consequências do conflito no plano global, tendo em conta a rivalidade também entre EUA e China.
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A invasão da Ucrânia só pode terminar com uma rendição ucraniana ou acredita que é possível uma mediação que salve a face a Vladimir Putin e permita a Volodymyr Zelensky manter a soberania do país?
Sim, acredito que é possível uma mediação que salve a face a Putin e permita a Zelensky manter a soberania do país. Infelizmente, essa solução - que poderá ocorrer quando a Rússia capturar pontos vitais na Ucrânia - implicará a perda de integridade territorial neste país. A definição da partição e a garantia da neutralidade da Ucrânia constituirão o epicentro das negociações de mediação.

É só o risco de uma guerra nuclear que impede a NATO de intervir em favor da Ucrânia?
Acima de tudo é o risco de escalada nuclear que impede a NATO de intervir no terreno. Mesmo que não existisse este risco, uma intervenção direta num país com a dimensão da Ucrânia (que não é membro da NATO) exigiria recursos humanos, operacionais e equipamento a uma escala muito maior do que qualquer anterior intervenção pela NATO em situações de conflito. A Europa e os EUA estão a apostar na aplicação de sanções à Rússia que constituem uma espécie de "guerra nuclear económica", segundo a convicção que "a ambição militar de um país é limitada pela sua capacidade de resistência económica".

Acredita que a unidade atual na NATO e na UE são para manter depois de esta guerra terminar?
A invasão da Rússia pela Ucrânia obriga a UE e os seus Estados membros a repensar a política de defesa comum e as responsabilidades nacionais neste domínio. São expectáveis divergências, quer dentro da UE, cuja geografia alargada acarreta prioridades nacionais diferentes, quer na articulação da missão e responsabilidade das forças comuns de defesa NATO e europeias. Recorrendo ao pensamento de um dos grandes analistas da integração europeia, Ernst Haas, as "contradições apenas poderão ser sanadas através da intensificação de cooperação".

Alguma hipótese de sanções económicas e resultados militares insuficientes levarem a uma mudança de liderança em Moscovo?
Esse é o desejo da Europa, EUA e seus aliados. Mais do que mudança de liderança, a solução jaz na democratização do regime político russo que, neste momento, assenta num modelo de capitalismo de Estado patrocinado por oligarquias autocráticas, sustentado em forças militares e de segurança, e reforçado pela capacidade nuclear do país. Até à data, não temos informações que sugiram a abertura de fendas no regime.

Como avalia o desempenho de Joe Biden nesta crise?
Não seria possível fazer muito mais, sem avançar para uma intervenção militar direta na Ucrânia, com o risco de escalada nuclear. O presidente Biden tem deixado claro, nos seus discursos, que não irá colocar tropas em solo ucraniano. A administração norte-americana tem apoiado a NATO no envio de armas e equipamentos à Ucrânia, e também as forças de defesa ucranianas através de informações ("intelligence"). Todavia, a estratégia de Biden está centrada na imposição de sanções draconianas com o objetivo de isolar a Rússia e decapitar os pilares financeiros do regime, assim como a sua capacidade bélica. Mais ainda, os EUA estão a assegurar uma válvula de escape à Europa face à dependência energética perante a Rússia, quer fornecendo diretamente gás em forma líquida, quer através de intensas negociações com países produtores de petróleo e gás. Estão a cooperar também com a UE, através da task force transatlântica de investigação que visa identificar as elites que apoiam o regime de Putin e congelar os seus ativos financeiros internacionais.

A China tira vantagens deste choque Ocidente-Rússia ou uma eventual crise económica global anulará quaisquer vantagens que possa colher?
A China tem demonstrado a capacidade de desenvolver uma estratégia económica e financeira global sustida com o fim de destronar a hegemonia dos modelos de capitalismo e ideologia democrática ocidentais. A estratégia chinesa assenta em investimentos externos infraestruturais, através do programa One Belt One Road, no qual a Rússia é parceira, na criação do Asian Infrastructure Investment Bank, em 2016, no qual a China detém a maior participação, e no desenvolvimento (e integração de bancos russos em) sistemas de pagamentos que constituem alternativas de integração financeira (competindo, por exemplo, com a rede SWIFT). Alguns analistas sugerem que a violência das atuais sanções contra a Rússia contribuirá para a integração de regimes autocráticos no sistema financeiro chinês, tentando reduzir a sua própria vulnerabilidade a potenciais sanções ocidentais. A China tem apostado também na autossuficiência alimentar e tecnológica, como elemento vital de segurança. Apesar disso, esperam-se fortes pressões inflacionárias como consequência da Guerra.

A ONU pode fazer mais nesta crise ou o sistema de veto no Conselho de Segurança a paralisa completamente?
A Rússia já tinha usado o seu poder de veto para impedir que o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotasse uma resolução condenando a anexação da Crimeia em 2014 e voltou a fazê-lo no dia 25 de fevereiro último para vetar a resolução que determinava a retirada imediata de todas as tropas russas do território ucraniano. Não conseguiu impedir que fosse convocada pelo Conselho de Segurança a reunião de emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas, na qual foi adotada a Resolução "Agressão contra a Ucrânia" que condena a invasão e apela a um cessar fogo efetivo e imediato. Embora as Resoluções da Assembleia-Geral não sejam vinculativas, o peso político do voto foi avassalador, uma vez que reúne 141 Estados na condenação à invasão pela Rússia, colocando Putin numa posição de isolamento alargado a nível internacional.

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