Desafiada por um colega republicano que lhe disse na cara não a suportar e querer tirar-lhe o lugar no Senado estadual da Pensilvânia nas eleições seguintes, Lisa Boscola conta como lhe pegou no queixo e disse: "Atreve-te, tenta!" Depois disso, nunca mais a incomodou - "talvez porque lhe fiz frente". A história da senadora arranca gargalhadas a Susan Donovan e a Tami Gouveia. As congressistas de Rhode Island e do Massachusetts olham para a colega como um exemplo: uma mulher que entrou na política há 25 anos e nunca hesitou em enfrentar os colegas homens para impor as suas ideias. Reunidas numa sala com vista para o Tejo na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), que as convidou para participar em Lisboa no V Legislators' Dialogue com outros eleitos luso-americanos, as três eleitas, todas elas democratas, falam sobre a onda azul que varreu Washington e toda a América nas eleições intercalares de 2018, a importância de mulheres fortes como Nancy Pelosi ou Alexandria Ocasio-Cortez e, claro, de como o presidente Donald Trump acabou por ser o gatilho que levou muitas mulheres a entrar na política em protesto contra as suas políticas.."Espero que Trump continue assim", lança Lisa em tom desafiador. "Porque eu quero tirá-lo da presidência e ver mais mulheres eleitas para a Câmara dos Representantes e para o Senado federal, bem como a nível estadual." Susan interrompe para recordar como em Rhode Island a Comissão Democrata era tradicionalmente dominada por homens - "acho que eram quatro mulheres e 30 e tal homens" -, mas, quando Trump foi eleito, as mulheres começaram a bater à porta do partido. "E os homens não as queriam deixar entrar!", conta, antes de garantir que "as coisas vão mudar. Já começaram a mudar. Mesmo a nível local. As mulheres querem que as suas vozes sejam ouvidas"..Onda azul e as estrelas democratas.Com uma onda azul a tomar de assalto o Congresso federal em 2018, com os democratas a recuperarem a Câmara dos Representantes e a eleição de um número recorde de mulheres (127 em ambas as câmaras), algumas ganharam estatuto de estrela. Da veterana Nancy Pelosi, a presidente da Câmara que não hesita em enfrentar Trump, até à mais jovem, Alexandria Ocasio-Cortez, que aos 29 anos provou não ter medo de dizer o que lhe passa pela cabeça.."Já não era sem tempo!", exclama Susan Donovan. Para a congressista do Massachusetts, ainda é notório que "muitas mulheres acham que a política é uma área desagradável e por isso sempre tiveram medo de avançar". Professora na reforma, Susan explica como ela própria chegou tarde à política. Hoje, aos 65 anos, admite que "nem sempre lhe agrada o trabalho", mas sabe o quanto é importante. O incentivo, diz, partiu das próprias filhas, que sabiam que a mãe era suficientemente conhecida para conseguir ser eleita para o Congresso estadual. Hesitou, mas acabou por avançar. Passados dois anos e meio desde que chegou à Câmara dos Representantes daquele estado de forte comunidade portuguesa, sente que ainda tem de trabalhar mais do que os homens para conseguir os mesmos resultados.."Para que nos respeitem, temos mesmo de saber do que estamos a falar", interrompe Lisa. A veterana do grupo garante que as mulheres na política americana têm de centrar o discurso em factos, caso contrário arriscam "tornar-se irrelevantes". Orgulhosa das colegas que "fazem o trabalho de casa", a senadora lembra como há 25 anos era bem mais difícil convencer as mulheres a candidatarem-se a um cargo político. Hoje, são "uma força", garante em inglês..É nesta língua que decorre a conversa. Afinal, para todas elas as raízes portuguesas, apesar de presentes, já são algo longínquo. Susan recorda como a mãe e a avó "falavam português entre elas quando não queriam que eu percebesse". A filha é fluente em português e em espanhol, mas ela nunca aprendeu. "Nunca me ensinaram", lamenta a neta de açorianos. Foram também os avós de Lisa que emigraram para os EUA. Mas, no caso do avô, acabou por regressar aos Açores e deixar a mulher na América. Tami, apesar do apelido bem português, é a que tem a ligação aos familiares portugueses mais longínqua, com o bisavô a ter emigrado para a América..Eleita para o Congresso federal nas últimas intercalares, Tami garante que "desde pequena sempre soube que queria entrar na política". Para ela, não só está mais do que na hora de haver mais mulheres na política como "ainda não chega". Afinal, se os estados querem que o seu Congresso reflita a sociedade, tem de ter mais mulheres. Só assim os assuntos que preocupam as mulheres e as famílias terão o mesmo nível de atenção por parte dos políticos. "Até aqui [no encontro na FLAD] temos estado a discutir questões militares, o comércio. Não falámos de questões sociais, de educação, de saúde mental."."Devias sorrir mais".Apesar de ter tomado posse há apenas seis meses, Tami está convencida de que a presença de mais mulheres nos governos dos estados e no governo federal vai forçar os homens a trabalhar mais. E admite que quando uma mulher se impõe, muitas vezes a reação que consegue é um condescendente "oh, sua rapariga tonta!".Burburinho geral na sala! Percebe-se que todas elas já tiveram o mesmo tipo de experiência. "Devias sorrir mais!, é o que me costumam dizer", conta Susan. A representante de Rhode Island lamenta que os homens achem que os assuntos que preocupam as mulheres, como as questões de justiça social, são maus para os negócios. "Eles acham que vamos subir os impostos, que somos más para a economia local", explica, enquanto lembra como a calaram quando tentou levantar estas questões na Câmara..Lisa partilha dessa experiência. E lembra o dia em que estava no Senado da Pensilvânia a apresentar uma lei para apoiar as políticas reprodutivas e ajudar famílias que não conseguiam ter filhos: "Estava a dar o meu testemunho pessoal, o de alguém que teve cinco abortos espontâneos, mas, quando chegou à votação, um dos cavalheiros presentes diz: 'Não devíamos pagar por nada disto. Não temos culpa que as mulheres esperem demasiado para ter filhos.'" Isto ficou gravado! Eu só disse: esperem! Estudar, arranjar emprego, casar-se e só depois ter filhos não é a forma como devíamos pensar nisto?" Na altura, Lisa tinha 32 anos, mas passados 25 a senadora garante que esta mentalidade ainda prevalece em muitas pessoas..Esta forma de controlo masculino por intimidação também chocou Susan quando chegou à Câmara de Rhode Island. "Cheguei com a intenção de ser uma voz independente a favor das mulheres. Mas quando discordava da liderança do partido fui castigada: tiraram-me a presidência de uma comissão, disseram-me que as minhas leis nem chegariam a ser votadas", conta..Lisa conhece bem demais estas ameaças. "Eu era essa pessoa! Tinha as minhas ideias, não ouvia a liderança, tiraram-me de comissões, tiraram-me o pessoal, mas ao longo dos anos eles perceberam que eu não ia mudar e deixaram-me em paz", garante. Por isso, se tem algum conselho para as mulheres que estão agora a começar na política, é: "Mantenham-se fiéis aos vossos ideais. Vão acabar por conquistar a credibilidade. Se não de todos os colegas homens, pelo menos de muitos.".Cultura de governo criada por homens.Para Tami, um dos problemas é que "a cultura de governo, de liderança, foi criada por homens. Por isso, muitas mulheres mantêm-se afastadas da política. A ideia que passa é que este é um mundo que não é muito transparente, não é muito acolhedor. Mas, à medida que mais mulheres entram na política, podemos mudar a forma como as pessoas olham para ela. Abrir a porta a mais pessoas". E recorda que, para ser representante, muita gente aceita ganhar menos do que se trabalhasse no setor privado: "São muitas horas de trabalho, é muito tempo longe da família." Ter mais mulheres em posições de liderança, garante, vai ajudar a mudar a falta de confiança que as pessoas têm nos políticos..Essa imagem de que as mulheres são mais de confiança já ajudou Susan e Lisa a conseguir votos. "As pessoas chegavam ao pé de mim e diziam que iam votar numa mulher porque confiavam mais", explica a senadora da Pensilvânia. Já a congressista de Rhode Island afirma que "alguns republicanos votaram em mim porque me conheciam. Sabiam que faria sempre a coisa certa para eles. Uma mulher republicana disse-me mesmo: 'É a primeira democrata em quem voto. É uma mulher, sei quais os seus objetivos'"..Rodeada pelas duas colegas, Lisa lembra os seus primeiros tempos na política. Estávamos em 1994 quando se candidatou ao Congresso estadual. "Diziam: "Honey, porque queres fazer isto?" Até mulheres!" Passadas mais de duas décadas, Susan ouviu o mesmo quando avançou para a Câmara dos Representantes em Rhode Island. "Eles diziam-me: 'Ainda não é a tua vez? Estão a brincar? Então é a vez de quem?'".Hoje não faltam exemplos de mulheres fortes na política americana. Mas mais do que destacar a influência de Pelosi ou de Ocasio-Cortez, Tami Gouveia lembra as meninas que conheceu quando estava em campanha no Massachusetts. "Elas estavam tão entusiasmadas por haver uma mulher na corrida! Claro que precisamos das Pelosi e das Ocasio-Cortez, mas precisamos de mulheres na política local para dar o exemplo.".Talvez por ser também uma veterana da política, Lisa Boscola é por vezes comparada a Pelosi. "As pessoas dizem-me: 'Não é como a Nancy Pelosi, pois não?'" Ela ri-se e exclama: "Sou totalmente diferente, é um papel completamente diferente!" Mas, enquanto primeira mulher eleita para um cargo de liderança na Pensilvânia, não esconde a admiração pela democrata que conseguiu ser eleita presidente da Câmara dos Representantes dos EUA. "Uau! Que feito incrível! Se concordo com ela sempre? Não. Mas também não concordo sempre com o meu marido!" Quanto a Alexandria Ocasio-Cortez, Lisa lembra que, apesar de ser jovem, tem de respeitar os mais velhos..Susan é mais branda com a congressista de Nova Iorque. Talvez por as filhas serem pouco mais velhas do que Ocasio-Cortez. "As minhas filhas estão zangadas com a nossa geração", explica. Antes de acrescentar: "A Alexandria personifica essa fúria. Ela estar ali e dizer o que lhe passa pela cabeça, elas admiram isso. Estão frustradas com o rumo da América, especialmente com as políticas de Trump para as mulheres, a família e sobretudo o ambiente.".De uma geração intermédia, Tami não concorda totalmente com as filhas de Susan. "Tenho muito apreço pelas coisas que vocês tiveram de enfrentar", afirma. E diz esperar que as novas gerações acabem por perceber o quanto foi importante a luta das mulheres de 50, 60 anos para as conquistas que hoje damos como adquiridas, apesar de ainda faltar muito para se chegar à igualdade.."Passei dias sem comer quando tive de enfrentar os homens na liderança do meu próprio partido. Estava calada em casa e a minha família ficava preocupada mas eu não queria falar daquilo. Eu é que tinha de lidar com aquilo! Fiquei tão doente!", recorda Susan. Para ela a reação a toda a pressão que teve de enfrentar foi física. "Por isso, espero que tenham algum reconhecimento! E que a sua raiva seja contra o sistema e não contra as mulheres da vossa geração", reage Tami do outro lado da mesa..Calada há um bocado, Lisa não resiste a contar mais uma das suas histórias, que exemplificam bem a realidade da política americana naqueles meados dos anos 90. "Quando a liderança me tirou o pessoal e uma Comissão, um jornal local publicou uma imagem em que os líderes eram o Darth Vader e eu era a princesa Leia. Eles ainda me odiaram mais. Mas eu nem gostei do artigo. Era a perceção do jornal, não a minha. Voltaram a castigar-me. Como é que se lida com esta situação? Um dia decidi entrar no Congresso com um blazer e por baixo uma T-shirt que mandei fazer onde se lia 'Não sou de todo uma princesa'. Quando abri o casaco na sala do Senado, todos se riram. E com o tempo acabaram por me devolver a presidência da Comissão. Porque não me queixei, não chorei. Reagi com sentido de humor.".Uma mulher na presidência?."Não me parece que a América esteja pronta." Esta é a primeira resposta de Susan quando questionada se, perante este cenário e todas as desigualdades que as mulheres ainda enfrentam, estamos perto de ver uma mulher na Casa Branca. Em 2016, a democrata Hillary Clinton até pode ter conquistado mais três milhões de votos populares do que o rival, mas o sistema de Colégio Eleitoral acabou por dar a vitória a Trump. Para 2020, há várias mulheres na corrida à nomeação democrata - da senadora do Massachusetts Elizabeth Warren à também senadora, mas da Califórnia, Kamala Harris, passando por Amy Klobuchar ou por Kirsten Gillibrand.."Não acho que estejam preparados e muitas vezes as mulheres são os seus piores inimigos", continua Susan. "Julgam as mulheres de forma diferente do que os homens", acrescenta antes de ser interrompida por Lisa. "Há alguma inveja. Mas eu só digo: avancem! Se acham que conseguem fazer isto, avancem!"."Vamos chegar lá", garante Tami. E a congressista do Massachusetts recorda que os estudos mostram que para haver uma mudança não é preciso chegar a 50% de mulheres nas estruturas, basta 35%. "Vamos chegar lá", repete..E, tal como a vitória de Trump em 2016 levou à tal onda azul e mobilizou as democratas, Lisa espera que as novas leis para limitar o aborto aprovadas em vários estados americanos, do Louisiana ao Ohio, passando pelo Utah ou pelo Missouri, acabem por ter o mesmo efeito e levem as mulheres não só às urnas mas a avançar como candidatas em 2020. "Vai ser um ano incrível!"