Cristina Alves: "Desembarquei para engravidar quando senti o chamamento do útero"

Foi pioneira na Escola Náutica e na Marinha Mercante, onde chegou ao posto de comandante. Ao fim de 11 anos no mar prosseguiu uma carreira em terra, e hoje é a administradora executiva da Portline. <em>(Publicado originalmente a 8 de agosto de 2018</em>)
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Cristina Alves descreve-se como uma pessoa não convencional. O género só foi barreira quando não a deixaram ser piloto de aviões. No mar tanto se pendurava onde poucos queriam ir como pintava ou lia no camarote; nos portos tanto ia para a farra com a tripulação como visitava os museus. Aos 63 anos, a comandante não tem saudades de estar no mar, mas continua a falar com paixão de todo o negócio relacionado. E lamenta que o governo português não incentive a Marinha Mercante. Quando pode troca as emoções do trabalho pela equitação e pelas motos.

Como é que uma pessoa formada em Arquitetura acaba como oficial num navio?
Dá-me a sensação de que a minha vida está dividida em compartimentos. Em compartimentos tão estanques que parecem tupperwares. Era o protótipo da criança que vai para Belas-Artes. Cantava, dançava, pintava, tinha tudo o que era relacionado com artes. Tinha piano em casa, mas não consegui aprender porque era aquilo que se chamava a criança selvagem com bicho-carpinteiro, atualmente chamadas crianças hiperativas. Na altura não se sabia o que era.

E não as drogavam.
Ainda bem. Naquela altura apanhava-se uma palmada no rabo e está a andar. A minha vida toda foi conduzida para as Belas-Artes. Fiz ballet muitos anos, cheguei a fazer parte de um pequeno estágio no São Carlos, no Verde Gaio. Mas odiei aquele ambiente de gineceu perverso. Saí e fui para Belas-Artes fazer pintura. Quando me apercebi de que as minhas hipóteses eram ser professora de Desenho ou de Geometria, passei para Arquitetura. Todo o percurso foi feito aos saltinhos, mas sempre ligado às artes. Tenho outra característica talvez ligada à minha educação. Nunca, desde que me conheço, me pensei como menina, mulher ou rapariga. Ou seja, desde miúda que tanto brincava às bonecas com meninas, como fazia brincadeiras de rapazes.

Que brincadeiras?
Tinha um revólver de fulminantes, uma espingarda de pressão de ar, um arco e flecha, brincávamos aos índios e cowboys e eu era sempre o apache. Andava de bicicleta, de patins, carrinhos de rolamentos, jogava ao guelas... Nunca houve na minha cabeça qualquer limitação ou condicionamento pelo facto de eu ser fêmea. Vem o 25 de Abril e passo de uma altura em que fazia ballet, vela e estava na faculdade e, apesar de ter sido uma revolução benigna, tudo para. Estava a ficar ansiosa, levava os dias a olhar para aviões, por exemplo. Aquela necessidade de sair do país. Portugal, mesmo com a revolução, continuava a ser um país cinzento, chato, pouco aberto de espírito. E eu queria imenso sair de Portugal, mas também não queria emigrar. Falei para a TAP, a saber se podia ser piloto de avião, ao que me responderam que não. Mulher, só hospedeira. Ainda assim inscrevi-me para hospedeira. Chamaram-me, mas não cheguei a pôr lá os pés.

Porquê?
Lembro-me perfeitamente disto: num domingo à noite vejo um anúncio na televisão sobre a Escola Náutica. Na segunda-feira de manhã telefono para a Escola Náutica. "Vocês aceitam mulheres?", ao que responderam: "De facto começámos a abrir a hipótese de entrarem." O exame, para aí na semana seguinte, era de Física e Matemática de 6.º e 7.º anos, as minhas disciplinas nucleares de Arquitetura. Entrei e os três anos subsequentes são espantosos. Frequento a Escola Náutica das 08.00 às 17.00, em Paço de Arcos, e depois vou para o curso de Arquitetura, no Chiado. Tinha uma vida superpreenchida, o que era absolutamente adequado para mim. Quando acabei os dois cursos rigorosamente na mesma altura não tinha um milímetro de dúvidas no meu espírito de que era para o mar que eu queria ir.

O que a levou a não ter dúvidas?
Tinha feito a chamada due diligence, tinha estudado o assunto, a mim própria a bordo de um navio. Estava no primeiro ano quando decidi embarcar. Já tinha a linguagem do mar porque fazia vela e tinha sido instrutora, no Clube Naval de Lisboa, masquis saber como é o modo de vida a bordo de um navio mercante. Fiz uma viagem para os Açores terrível, com vacas a morrer, mau tempo, uma coisa horrorosa. Adorei! No ano seguinte faço outro embarque no Serpa Pinto em que a viagem durou para aí dois meses. Fomos a Cuba buscar açúcar. Foi fabuloso, aprendi tudo aquilo que não se aprende numa escola.

A única mulher no navio?
A única. Depois, do segundo para o terceiro ano, embarco no Rio Zambeze e vamos para Nova Orleães. Uma viagem também de uns dois meses, e percebi que era exatamente o que eu queria na vida. Estar de passagem, estar a ir para algum lado e não permanecer. Como sou filha única estava habituada a estar sozinha, com os meus livros, com as minhas pinturas. Estava sempre bem comigo, não tinha medo de estar sozinha no camarote ou de ser a única mulher.

Sentia-se integrada apesar de ser a única mulher?
Eu não me sentia mulher, esquecia-me, dizia "um gajo como nós". É estranho, não é? Desembarquei para engravidar quando tive o chamamento do útero, não queria casar nem ter filhos, mas a dada altura de repente há uma chamada ao cérebro em que me apetece ter filhos. Foi na altura em que conheci o meu futuro marido, um músico. Disse aos meus colegas que ia desembarcar e que queria fazer uma criança. Eles fizeram troça. Desembarquei, casei e dois meses depois, quando voltei ao mar, estava grávida. Nunca tinha pegado num bebé, nunca tinha tido atração especial por criancinhas. Então os meus conselheiros eram os gajos da tripulação. Desembarquei quase à força ao fim de sete meses. Estive sempre embarcada.

Como é que a família viu a decisão de ir para o mar?
O meu pai achou piada, a única coisa que pediu foi acabar também o curso de Arquitetura. Era engenheiro florestal, na altura chamavam-se engenheiros silvicultores, e levava-me desde pequenina no Land Rover para o Alentejo e para a Beira, sabia que eu era aventureira.

E a mãe, também trabalhava?
Sim, foi hospedeira na TAP e mais tarde secretária do ministro da Economia e de outros. O meu ex-marido dizia que tinha casado com a aldeia gaulesa. Ou estavam a discutir uma coisa muito estúpida ou estavam a rir à gargalhada. Lembro-me de a minha mãe cair para o chão a rir. Isto molda um bocado o carácter das pessoas. A bordo é muito importante ter sentido de humor. Às vezes as situações são tão críticas e sensíveis e isso ajuda. Por exemplo, nos primeiros tempos em que embarquei estava a fazer serviços a bordo num navio que estava no mar da Palha, e estava uma tripulação muito reduzida. Eu convivia com eles naturalmente, como gajo que era. Quando o navio saiu para viagem lembro-me de estar a fazer um café na copa e aparecer um dos marinheiros que tinham feito serviço comigo, de panamá na cabeça, um rolo de tinta na mão, dente de ouro, sotaque de Viana de Castelo, mete a cabeça pela vigia e diz: "Então, menina Cristina, quando é que vamos fazer amor?" Foi de tal maneira ridículo que levei aquilo para a brincadeira, mandei-o embora e tive um ataque de riso que o café me ia saindo pelo nariz. Mas apesar de tudo existe uma diferença entre embarcar como oficial e a classe de marinhagem.

Como assim?
Fui mais assediada pelos meus colegas - e nem posso dizer que era esse o termo. A relação era tão clara entre nós que não havia assédio. Quando houve era ridículo. Na altura eu era piloto e o imediato tinha uma paixoneta por mim. Deixava bilhetinhos de amor na máquina de escrever, e em vez de levar a mal, eu agarrava nos ditos e afixava-os num placard ao pé da messe, no qual se escrevia a posição do navio ao meio-dia. Até que um dia percebeu que era motivo de gozo e deixou-se disso, mas eu nunca disse quem era. Não era preciso fazer dramas.

Nas viagens em que participou enquanto estudante ninguém faltou ao respeito?
Nada. Eu era a única mulher a bordo e a primeira na Escola Náutica. Era ainda um projeto. Não sabiam muito bem como me encarar. Mas eu era muito ágil e ia a todas. Se era preciso ser pendurada lá fora para ver o calado do navio, ou pintar qualquer coisa, ou pendurada nos porões para tirar ferrugem das braçolas, eu estava sempre disposta a ir, tinha imensa curiosidade. Achavam piada, eu era one of the guys.

Escondia o lado feminino?
Nada. Pintava-me a bordo, andava de brincos.

Usava cabelo comprido?
Houve uma altura em que usei o cabelo curto porque era mais fácil para lavar, mas ao fim de 15 dias chateei-me. Cheguei aos EUA e comprei uma cabeleira. Ganhei esse hábito e a cada ponto em que parávamos nos EUA comprava uma diferente. Era o gozo da malta. Houve uma altura em que embarquei num navio, no qual as pessoas não me conheciam, e levei duas ou três cabeleiras. Ao fim de uma semana, um marinheiro vira-se para o comandante: "Afinal quantas gajas há a bordo?"

Porque é que decidiu deixar o mar?
Depois de ter a minha primeira filha percebi que não era boa ideia continuar embarcada, a responsabilidade de se ter uma criança implica também a minha presença.

Foi quando?
Estamos a falar de 1988. Enquanto estava de licença de parto vim à Portline saber se havia alguma coisa em que pudesse ajudar. Fiz as férias de um colega com quem tinha andado embarcada. Coincidentemente, quando voltou, mudou para chefe de departamento e a posição dele ficou vaga. Para mim foi ouro sobre azul, não tive de mudar de profissão radicalmente. Estava na parte operacional, tem tudo que ver com navios e comunicações, e podia estar presente para a minha filha, a Bárbara, e para o meu marido. Deixei de ser do mar e passei a ser terráquea. Um ano e tal depois engravidei outra vez e tive a minha segunda filha, a Carolina. E decidi enveredar pela carreira dentro dos escritórios da Portline, fiz operações de short sea, afretamentos. Fui duas vezes a Cambridge fazer cursos: um de chartering e outro, já grávida da segunda filha, de shipping em geral. Larguei o entusiasmo do mar e passei a ter a curiosidade do mar em terra. Ou seja, deixei de ser atriz e passei para o lado da câmara, em todos os bastidores da vida do mar. Fui mudando e subindo na hierarquia. Em 2010 fui convidada por um armador grego que vinha instalar-se em Portugal. Fiz afretamentos, operações e compra e venda, algo que nunca tinha feito. Fez-me crescer imenso. Voltei à Portline, já cheia de saudades, como diretora-geral.

E hoje é administradora executiva.
Toca-se todos os instrumentos. Estou a fazer exatamente o que quero. Sinto o pulso da empresa, é-me fácil tomar decisões. Quando a empresa é formada, em 1986, resultante da fusão da CNN e do CTM, eu estava embarcada no Cassinga. O navio, no meio do mar, passou a chamar-se João de Barros e eu passei para os quadros da Portline. Deixámos de ter os navios com as cores azul, preto e branco e passámos a ter branco com a onda em vermelho e verde. Estivemos a pintar a chaminé do navio e o novo nome.

Quando ascendeu a comandante?
Já foi depois de ter as minhas filhas. Tinha tudo para ser comandante e pedi à Portline para ir numa viagem para não ser apenas comandante de plástico. Fiz a doca de um navio e a viagem para Lisboa, foi curto mas giro.

De todas as viagens qual foi a de que guardou recordações mais fortes?
Tenho tantas. Situações específicas, como sair de Baltimore e estar uma névoa sobre o mar, a dois metros da linha de água, e a imagem que tenho é a de navegar em cima de uma nuvem. Outra foi sair pelo Grande Canal de Veneza, com o navio vazio, portanto alto, e passar pela Praça de São Marcos, com o coração nas mãos, pensar que se há uma falha mecânica damos cabo do património mundial, e por outro lado fascinada com o que via. Lembro-me de uma tempestade entre Nova Iorque e São Lourenço, no Canadá. Devia demorar três dias, mas o navio andava para trás. O que se chama singradura, o que o navio navega de meio-dia a meio-dia, andava para trás. E não há posição vertical, a pessoa perde a noção estática, estamos a tentar manter o equilíbrio, porque o navio balança de bombordo a estibordo e da proa à popa. E o barulho da tempestade é ensurdecedor, o mar, o vento, o aço a gemer, o vento a bater nas superestruturas, nos mastros.

As máquinas também.
Mas essas ouvem-se sempre. A tempestade e o mar são poderosíssimos. A própria alimentação muda, ninguém consegue cozinhar, vive-se de conservas e sandes. Há um cansaço físico e espiritual, a sensação de que nunca mais acaba.

E a relação com os outros?
Ficamos mais irritáveis e nota-se imenso as culturas a bordo, há uma pequena sociedade com algarvios, lisboetas, nazarenos, de Alfeizerão, do Porto, de Espinho, da Figueira da Foz e nota-se imenso as diferenças de cultura. Por exemplo, os nazarenos são muito mais dramáticos, gritavam e rezavam muito mais.

Como acabou essa viagem?
Levávamos para aí uma semana de tempestade e acordo com o silêncio e a falta de movimento. Fiquei em pânico, pensava que tínhamos encalhado. Saio da cama, vou à vigia e estamos rodeados de neve, presos no gelo, à espera do quebra-gelo. Parecia que estava num sonho.

Presenciou algum salvamento?
Quando estava embarcada fizemos três salvamentos. Uma vez foi um avião ao pé dos Açores, de um norte-americano que estava na Base das Lajes. Fizeram um estendal na enfermaria do navio e puseram a secar notas de dólar. Lembro-me de termos salvo pessoas em iates na zona das Antilhas e das Caraíbas. No verão já se sabe que há furacões e há a ideia de pegar na família e ir tudo na embarcação à vela. Resgatámos com baleeira e meios nossos famílias inteiras.

Alguma vez foi vítima de pirataria?
Já fui várias vezes confrontada com pirataria nos meus navios, sobretudo quando na Somália estava mais quente. Tivemos navios atacados. O INA que, vazio, tem cinco andares de altura, levou com um obus. Estranhíssimo. Dizia-se que os piratas estavam drogados e isto só o comprova. Como é que alguém numa canoa vai atacar um navio de cinco andares? Tinham umas escadinhas.

E contrataram segurança?
Exatamente. Com segurança a bordo atacam muito menos. Havia umas almas que defendiam armas a bordo, uma ideia peregrina. É como o Trump dizer que as crianças também devem ter armas nas escolas. Têm de ser profissionais a fazer a segurança, não pode ser a tripulação, que tem as suas funções a bordo e que tem de se sentir segura.

Não tem saudades do mar?
Não. Faço equitação. Nos últimos 14 anos apaixonei-me pelos cavalos, tenho um cavalo, o Pim, e ninguém me apanha num barco à vela. É passado. As minhas paixões agora são os cavalos e as motos. Comecei a fazer equitação em 2004 porque pus a minha filha mais nova na equitação. Depois foi a filha mais velha e passado um mês estava a mãe a fazer. Adoro - e condiciona toda a minha vida. Antigamente adorava viajar. Hoje, nem morta. Aeroportos, que chatice. E os turistas? Uma pessoa quer ver uma cidade e não pode.

Como é o seu cavalo?
É anglo-árabe e tem um espírito inerente ao cavalo árabe, é completamente passado. Tem 22 anos e só faz disparates, continua completamente parvo.

Não é perigoso?
Claro! Dou quedas monumentais. E como está a ficar velhote tropeça ou na abordagem ao salto ou depois do salto. Quando não dou quedas no cavalo dou na moto. Estou a tentar matar-me devagarinho.

Só faz obstáculos?
Sim, porque o meu cavalo desvaira, se fôssemos passear só parava em Trás-os-Montes. Não consigo pensar em fazer outra coisa. Não sei o que daqui a dez anos me vai dar, vou fazer kitesurf, sei lá.

E as motos?
Eu era tão desembestada que os meus pais nunca quiseram dar-me uma bicicleta. A primeira bicicleta que tive comprei-a na Guiné quando tinha 23 anos. Partia-me toda nas bicicletas dos amigos. Também não queriam que tirasse a carta de moto. Mas andei sempre que podia. Tirei a carta relativamente tarde. Comprei uma moto feia e transformei-a em cafe racer, lindíssima. É de tal modo gira que as pessoas perguntam-me onde a comprei, se a quero alugar para filmes, etc. Nem pensar! Depois comprei uma Honda Rebel e também a modifiquei.

Repete-se que Portugal tem enormes potencialidades ao nível da economia do mar mas nada se vê avançar.
Acontecia-me imenso ir a conferências sobre o mar e só se falava de portos. Portos, portos, portos. E os armadores e a marinha mercante portuguesa? E legislação? O governo chinês ou o governo grego protegem a marinha mercante. O governo sul-coreano salva empresas da bancarrota. Cá não há incentivos à construção naval. Somos um país marítimo de uma maneira muito estranha. Até em pequeninas coisas. Na Dinamarca não há bicho-careta que não tenha um iate, nem que seja a remos. Cá há muito menos e entre os que há muitos são de estrangeiros. Há de facto uma relação com o mar muito grande, somos de facto um povo atlântico. Há pessoas que julgam que somos mediterrânicos, mas não, temos toda a melancolia e romantismo do povo atlântico e não existe a mesma relação com o mar do que noutros sítios. Eu atribuo eventualmente ao facto de sermos um país sujeito ao oceano. O nosso mar é batido e perigoso, a nossa costa é dura e difícil de navegar. Todo o drama que liga os portugueses ao mar tem muito que ver com isso. Tem de se ser aficionado para estar nalgumas das nossas praias, vai para a praia levar porrada. É por isso que quando chega julho há uma migração para o Algarve.

Nenhum dos navios da Portline foi construído em Portugal, certo?
Obviamente. A Portline já teve cinco mini bulkers construídos nos estaleiros de Viana do Castelo. Muito bons, de construção muito boa. Estes navios [aponta para as fotos] foram construídos no Japão e na China, em estaleiros com supervisão e tecnologia japonesa. Em Portugal não há estaleiros para fazer isto. Mas temos grandes profissionais para fazê-los, não há sítio nenhum onde não haja um português ao nível do shipping. O [Instituto Superior] Técnico é considerado uma das melhores escolas de engenharia naval do mundo.

Mas não criamos riqueza. O que pode Portugal lucrar com a zona económica exclusiva?
Penso que tem muito mais que ver com as políticas de pesca. Aqui estamos no mercado internacional, em competição pura e dura. Os nossos navios têm bandeiras da Libéria, do Panamá, de Malta, porque os impostos que os armadores de cada navio pagam são taxados naqueles países. Andamos a competir com países como a China, a Grécia ou a Coreia. Se tivéssemos outra taxação podíamos fazer como os gregos que andam com a bandeira grega. Nos últimos anos tem sido muito duro. 2007 e 2008 foram anos de boom, toda a gente quis investir e financiar. Houve muita construção de navios. Há demasiados navios para as cargas que existem, não há equilíbrio. Exemplo: dados os custos operacionais de um navio cape size [pelo seu tamanho só pode fazer as rotas do cabo da Boa Esperança e do cabo Horn] precisa de fazer uns dez mil dólares por dia e estavam a receber dois mil, quatro mil por dia. Nós ainda não recuperámos completamente e há cada vez mais regulamentos a cumprir, a bem do ambiente: tratamento de água de lastro, emissões de CO2 e de enxofre.

Os navios têm uma segunda vida? Conseguem vendê-los?
Dantes os navios mais antigos vendiam-se para o mercado asiático. A China impôs novas regras que obrigam armadores chineses a ter um tipo de máquinas cumprindo o Tier II, o que significa que não podem comprar navios anteriores a 2011. Acabam por ser vendidos navios relativamente novos para sucata.

Já é mais comum haver mulheres portuguesas no mar?
Comigo trabalham duas comandantes. Mas não, há muito poucas. Poucas mulheres e poucos homens, diga-se de passagem.

Porquê?
Não há muita vontade. É uma doença do mundo ocidental. Nos meus navios ainda há oficiais portugueses, poucos, há uma mulher praticante, o grosso da coluna são oficiais romenos e ucranianos e a marinhagem é filipina. Quando andei embarcada só havia portugueses.

É mal pago?
É uma vida dura, de sacrifício. E é preciso grandes compensações. Um ucraniano embarca e quando volta tem dinheiro para mandar construir uma casa e comprar um carro. Então sacrificam-se durante oito meses para ter uma vida melhor. Aqui já não é tanto assim. E há outra diferença. Quando andei embarcada a tecnologia jogava a meu favor. Ou seja, navegava durante uma semana, duas ou mais, mas a maneira como o navio carregava ou descarregava obrigava-me a estar naquele porto cinco dias, dez dias. Íamos a terra, convivíamos, ligávamos das cabinas telefónicas à família. Começou com os petroleiros e é cada vez mais extensivo a todos os navios. Há cada vez menos portos no centro da cidade. Os navios ficam afastadíssimos. Permanecem uns dois dias em terminais cerealíferos, terminais de carvão, ou de minério, o que não incentiva as saídas. As tripulações chegam a andar seis ou oito meses embarcadas e vão três vezes a terra.

Entre porto e porto qual foi a viagem maior que fez?
Uns 21 dias. E depois quando cheguei ficava umas duas semanas. Maravilha! Visitava as cidades, ia aos museus, via as vistas, enfiava-me num autocarro até ao fim da linha.

E não saía para os copos com o resto da tripulação?
Quando era possível irmos todos, claro. Não sou diabética. Às vezes ficavam é mais tempo do que eu. Voltava sozinha para bordo e eles iam visitar as primas. Aconteceu-me em várias ocasiões virem ter comigo dizer que estava numa zona muito perigosa e acompanhavam-me até ao porto. Do ponto de vista humano tenho histórias desmistificadoras fantásticas. Ou tenho um anjo da guarda com asas do tamanho de um Boeing ou não sei se terá que ver com a nossa energia. Outro preconceito é o de que os homens não são quadrilheiros. Só quem nunca esteve a bordo de um navio cheio de homens. Nós somos muito parecidos, homens e mulheres. Somos humanos, faz parte. No outro dia li um livro muito engraçado, no qual o autor dizia que foi a má-língua que fez que nos tenhamos desenvolvido. É a troca de informação que permite a associação.

Teve mais amigas ou amigos?
Ao longo da vida tive muito mais amigos. Não sei porquê. A bordo nunca fiz grandes amizades, é como fazer amizades de escritório. Não me identifiquei com muita gente. Dava-me bem com as pessoas, sou um ser sociável e tenho empatia, mas ao nível da amizade não fiz muitas. Mesmo os namorados foram sempre terráqueos e mais criativos.

As suas filhas tiveram algum interesse em seguir o seu caminho?
Não. Não falo muito das coisas que faço. Às vezes são confrontadas com pessoas que lhes contam histórias e ficam espantadas.

(Publicado originalmente a 8 de agosto de 2018)

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