Qualquer um sabe assobiar

Menos eu e a grande maioria dos leitores. E é pena, porque uma pessoa que domina essa arte leva vantagem sobre o resto da humanidade.

Escrevi noutro dia num jornal brasileiro que estava sendo acordado todas as manhãs por um passarinho cujo assobio me entrava pelo quarto e fazia fiu-firiu fiu-firiu, fiu-fiu, fiu-fiu, fiu-fiu. Grato a ele por me fazer saltar da cama e encarar o dia com disposição e otimismo, fui várias vezes à janela tentando localizá-lo entre as árvores. Em vão. Podia ser um passarinho vadio, daqueles que reinam nos ares, pousam em fios elétricos sem levar choques e nos brindam com a sua música, que já nasce com eles, sem aulas de teoria ou solfejo. Mas podia ser também um passarinho típico das cidades brasileiras, que os porteiros dos edifícios mantêm em cativeiro nos seus aposentos e, de manhã, penduram as gaiolas nas árvores da rua, levando-os de volta para dentro no fim da tarde. Consultei João, porteiro do meu prédio, e ele me confirmou. Tratava-se do curió do seu colega do prédio ao lado.

Não creio que existam curiós em Portugal. É uma espécie de canário silvestre, preto e de peito castanho. Nasce quase sempre na mata - alguns fazem os seus ninhos e reproduzem-se nas coberturas dos edifícios -, mas, se capturado, dá-se bem em gaiola. Continua a cantar com grande sentimento, desde que o seu dono lhe dê suficiente amor, alpista e água fresca.

Mas eu estava a falar do assobio do bichinho. O curió do meu vizinho não parecia ter um repertório musical muito variado. Achei até que só sabia assobiar aquela frase. Mesmo assim, ganhava de mim por 1-0, que nunca soube sequer fazer fiu-fiu para uma rapariga - o que hoje, por sinal, está fora de questão.

Entre nós, humanos, o mundo divide-se entre os que sabem assobiar e os que não sabem, sendo estes a grande maioria. Os que dominam a arte têm consciência de que são uma elite e tendem ao exibicionismo. Um cantor de ópera não interrompe um amigo numa conversa informal e dispara uma ária do Rigoletto. Um trompetista não tira o seu trompete do estojo e ataca de O Voo do Moscardo. Mas um assobiador, com falsa casualidade, começa a assobiar baixinho na nossa presença e, de repente, dá-nos um espetáculo de vibratos, trémolos e glissandos. Se isso já basta para nos esmagar, alguns ainda nos humilham com staccati.

Uma pessoa que sabe assobiar leva grande vantagem sobre o resto da humanidade. Primeiro, é capaz de produzir música sem depender de gira-discos ou instrumentos. Segundo, assobiar é uma forma autossuficiente de expressão - permite à pessoa dialogar consigo mesma, dispensando interlocutores. Terceiro, enquanto se assobia não se consegue pensar, o que, nos dias de hoje, pode ser um alívio, desde que não se passe o dia inteiro assobiando. Claro que, ao contrário dos pássaros, dificilmente um homem poderá assobiar pousado num fio elétrico sem levar choque. No meu caso, não saber assobiar é apenas uma das várias disciplinas que nunca consegui dominar, sendo outras não saber sapatear, nem trocar pneus, nem fazer o pino - mas, de todas, assobiar é a que mais lamento não ter aprendido. E, se há uma dúvida sobre se será mais fácil assobiar do que assoviar, perca as esperanças: são a mesma coisa, e quem não souber assobiar não saberá também assoviar.

Num musical de Stephen Sondheim, intitulado Anyone Can Whistle (Qualquer um consegue assobiar), de 1964, a canção-título era só uma ironia, porque expressava exatamente o contrário. Numa tradução livre: "Qualquer um consegue assobiar/ É o que eles dizem/ É fácil/ Qualquer um consegue assobiar/ À hora que quiser/ É fácil. // É muito simples/ Basta relaxar e se soltar/ Pois então alguém me diga/ Porque só eu não consigo?" E o protagonista seguia explicando que sabia dançar tango, ler grego e, se quisesse, poderia matar um dragão por dia - só não conseguia assobiar. Sempre me identifiquei com essa canção.

Anos depois, em 1979, Sondheim produziu outro musical que apresentava uma solução. Era Sweeney Todd, em que um barbeiro degola os seus clientes e estes, depois de moídos e temperados, se tornam o recheio dos bolos vendidos pela sua mulher. A heroína, que é o que nos interessa, é uma jovem mantida presa pelo cruel padrasto, que quer casar-se com ela. Do lado de fora da sua janela gradeada, há uma gaiola com um passarinho que assobia o dia todo. Ela canta para ele: "Passarinho, ensina-me a cantar." Daí, escrevi que, farto de ver o mundo pela janela nesses intermináveis meses de quarentena, ia fazer como a personagem de Sondheim e pedir ao curió do vizinho que me ensinasse a assobiar.

Foi o que bastou para o meu jornal ser inundado de mensagens de leitores protestando contra a manutenção de passarinhos em gaiolas. De certa forma, eles tinham razão: o Brasil é há séculos pilhado por traficantes de aves e outros animais da sua monumental fauna. As autoridades mais abnegadas lutam contra isso, mas é preciso que o Governo Federal colabore - e, em nossos infelizes tempos de Bolsonaro, o que se vê é o contrário: a devastação do meio ambiente, o extermínio de inúmeras espécies de animais e o esvaziamento do órgão encarregado de coordenar a proteção, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis). Pensei comigo: com tantos problemas, o Ibama teria tempo de se preocupar com passarinhos em gaiolas?

Voltei a consultar o meu porteiro João e ele me garantiu enfaticamente que sim, que o Ibama é rigoroso quanto a isto. Não apenas exige que os proprietários de passarinhos em cativeiro sejam registados no órgão, como que cada passarinho seja identificado pelo nome científico, o nome comum e a data do nascimento. E esse documento tem de estar à disposição do fiscal que passar pela gaiola na rua.

Então, de repente, a surpresa. Orgulhoso, João mostrou-me o seu próprio registo no Ibama e o dos seus passarinhos - um trinca-ferro de 9 anos e um papa-capim que fará 11 no próximo dia 24.

Jornalista e escritor brasileiro

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