Dos vizinhos às empresas. Saiba o que fazer para salvar uma vítima de violência doméstica
O telefone toca. Do outro lado, alguém relata um cenário de violência que acredita estar a acontecer na casa de outros. São amigos, familiares, colegas ou até mesmo desconhecidos. Em 2017, houve 3205 pessoas a fazer tocar a linha de apoio 116 006, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Este pode ser um passo fundamental para pôr fim a um caso de violência doméstica e travar mortes.
São já 12 as mulheres mortas por este crime em Portugal desde o início de 2019. Abatidas a tiro, espancadas ou atacadas com armas brancas, culpadas pelo ciúme do companheiro que agiu por vingança. Ano após ano, os números continuam alarmantes, mas há formas de ajudar a combater as estatísticas.
Tudo começa na leitura dos sinais, nem sempre fisicamente visíveis. A APAV disponibiliza, no seu site , uma lista de alguns aos quais se deve prestar especial atenção. Caso a pessoa esteja "anormalmente bastante nervosa ou deprimida", "cada vez mais isolada dos amigos e da família, muito ansiosa sobre a opinião ou comportamentos do namorado" e apresente "marcas não justificadas e mal explicadas", como "nódoas negras, cortes ou queimaduras", pode estar a ser vítima de violência doméstica. O mesmo se aplica caso presencie discussões, humilhações e outras formas de desrespeito entre um casal.
Por outro lado, "nunca deve confrontar o agressor", pois pode representar um perigo para a integridade física do denunciante e daqueles em seu redor. Não deve ainda tecer qualquer tipo de "comentários que possam culpabilizar a vítima por ser vítima". A melhor forma de ajudar, segundo a associação, é ligar para as linhas de apoio e denunciar.
A resposta é simples: qualquer pessoa, independentemente do grau de relacionamento que tenha com a vítima ou o agressor.
Em 2000, a violência doméstica foi considerada crime público, o que significa que não é necessário que seja o lesado a apresentar queixa. Em caso de conhecimento ou apenas desconfiança, qualquer pessoa pode mesmo denunciar o crime às autoridades ou associações de apoio, até anonimamente, sem que seja necessária a intervenção das partes envolvidas. Familiares, vizinhos, amigos, colegas, mas também empresas, devem estar atentas e saber que podem agir a qualquer altura, mesmo não sabendo quem praticou o crime - cabe às autoridades apurar a identidade do autor.
A denúncia é até obrigatória para alguns, como entidades policiais, funcionários que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e para qualquer pessoa que sabe que pode estar em risco a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade de uma criança ou jovem com menos de 18 anos.
Mas as estatísticas mostram que o desconhecimento de terceiros quanto ao seu poder de atuação ainda é alto. Em 2017, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, em 78% das ocorrências a intervenção policial surgiu após a denúncia de uma vítima e apenas 9% de informações de familiares ou vizinhos - os restantes surgiram por conhecimento direto das Forças de Segurança (4%), denúncia anónima (3%) ou outro (7%).
Em entrevista ao DN, o técnico da APAV Daniel Cotrim explica que o número de denúncias de terceiros continua baixa, não por não haver mais quem queira denunciar, mas por desconhecimento. "As notícias sobre os homicídios e as que mostram que o número de condenações ainda é pequeno e o de arquivamentos continua alto são verdade, mas têm um efeito negativo: criam um sentimento de impunidade no agressor e afastam as vítimas da denúncia", começa por apontar. "Mas também tem influencia nos cidadãos à volta: cria uma instabilidade social, acreditando que nada funciona. Por isso, decidem que não vale a pena agir e não denunciam", explica.
É preciso "desafiar o sistema", sublinha. Denunciar pode "acelerar processos" e dar força à queixa futura de uma vítima por o caso já ter sido assinalado antes junto das autoridades. "Até posso ter dúvidas de que se trata de violência doméstica, mas a quem compete aferir isso é à polícia. Se há desconfiança, deve denunciar-se", apela o psicólogo da associação.
Qualquer denúncia só pode ser anulada pelo Ministério Público, quando conclui que não há prática de violência doméstica ou suspende o processo provisoriamente. Neste último caso, é cedido um prazo (normalmente de seis meses) para que a vítima volte a mostrar interesse na denúncia e retome o percurso de investigação. Caso ao final deste tempo tal não aconteça, o processo é encerrado.
A Comissão para Cidadania e Igualdade de Género (CIG) alerta que este deve ser um dever de todos: "Ter conhecimento de um crime e não o denunciar é ser cúmplice do mesmo."
Por telefone ou dirigindo-se fisicamente ao balcão de atendimento de uma força de autoridade.
A APAV disponibiliza ajuda presencialmente, de forma gratuita, confidencial, bem como através da Linha de Apoio à Vítima - 116 006 (chamada gratuita das 09.00 às 21.00). "O que vamos pedir é um conjunto de informações para entregarmos às autoridades e formalizar a denúncia. Tentamos identificar o crime e medir o grau de risco", explica o técnico da APAV Daniel Cotrim.
Também a Comissão para a Igualdade de Género (CIG) desenvolveu um serviço de informação telefónico gratuito, disponível 24 horas por dia, para apoiar vítimas de violência doméstica, através do número 800 202 148. Do outro lado da linha, será recebido por um profissional que lhe prestará informação sobre os direitos das vítimas e sobre os recursos existentes em todo o território nacional e onde pode ser obtido apoio psicológico, social e informação jurídica.
Presencialmente, a queixa pode ser feita em qualquer departamento do Ministério Público, da Procuradoria-Geral da República, esquadra ou departamento da Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana, Polícia Judiciária e ainda no Portal de Queixas Eletrónicas. Outros serviços, como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, gabinetes médico-legais e hospitais onde existam peritos médico-legais, estão preparados para receber denúncias.
Qualquer uma destas autoridades e instituições tem o dever de receber qualquer queixa e denúncia, ainda que o crime esteja fora do território de atuação ou mesmo que a investigação não esteja sob a sua jurisdição.
Dentro das instalações das forças de segurança, o atendimento prestado a vítimas de violência doméstica deve ser realizado em espaços próprios que garantam privacidade e conforto.
Feita a denúncia e formalizada a queixa, é aberto um processo de inquérito que dá início a uma investigação. A partir daí, a autoridade criminal responsável, sob a direção do Ministério Público, trata de averiguar a existência de um crime e determinar o autor.
É nesta fase que o órgão policial ouve a vítima, o arguido e as testemunhas. Os locais do crime são analisados, os possíveis vestígios recolhidos e procede-se ao reconhecimento fotográfico. Desde que a vítima é ouvida até que a mesma receba informações sobre o processo pode ser um caminho moroso, de semanas ou até vários meses, dependendo da complexidade da investigação.
Entretanto, estas podem ser integradas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD). Um programa que dispõe de 133 estruturas de atendimento (presencial ou telefónico, com apoio jurídico, psicológico e social gratuito), 39 casas de abrigo (residências de acolhimento até seis meses, onde as vítimas podem viver com os próprios filhos) e 26 unidades de acolhimento de emergência (residências para rápida intervenção, após a denúncia).
Na semana passada, a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, informou sobre a assinatura de mais dois protocolos para a Territorialização da RNAVVD no Baixo Alentejo e no Alentejo Litoral.
Face ao volume de artigos e reportagens publicados sobre violência doméstica nos últimos meses, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) lançou um guia de boas práticas para os jornalistas que reportam estes casos.
A entidade alerta os meios de comunicação para a importância do enquadramento e do contexto. Isto é, deve evitar-se o destaque pelo "insólito", que rompa com a "normalidade", e pela "morbidez do crime".
Os jornalistas devem ainda dar visibilidade a outras formas de violência além do homicídio, para a "reconstrução da consciência social", evitando que se dê a ideia errada de que todos os casos resultam num "desfecho trágico". É, aliás, importante que se informe "com clareza que o ato de violência tem consequências negativas para o agressor".
A ERC aconselha ainda a que não sejam expressas "relações de causalidade entre o crime de violência doméstica e as características dos envolvidos", bem como "as referências a possíveis causas que possam justificar a agressão e simplificar o fenómeno social".
Os profissionais da área não devem descurar "testemunhos de sucesso, dando a conhecer tanto as mulheres que rompem com a violência de género e recuperam o controlo da sua própria vida como homens que se reabilitam", pode ler-se no documento. Em entrevista ao DN, o técnico Daniel Cotrim frisou a importância deste último ponto. De acordo com o psicólogo da APAV, deve-se recordar "não só as vítimas, mas também as muitas mulheres que conseguiram romper com a violência e mudar as suas vidas".
O governo decretou para esta quinta-feira, 7 de março, dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica.