Praticamente toda a população argelina, mobilizada através de um movimento (hirak) sem precedentes, recusa-se a apoiar os cinco candidatos oficiais às eleições presidenciais da próxima quinta-feira dia 12, considerados "filhos do sistema" e aliados ao aparelho do antigo presidente. Perspetiva-se um boicote em massa ao processo eleitoral..Desde 22 de fevereiro, a Argélia - único país do mundo árabe em que o Exército está na origem da criação do Estado-nação - tem sido palco de manifestações apelando à abstenção. A população recusa-se a pactuar com eleições sem que haja previsões de mudança de regime. A convicção é de que este escrutínio apenas pretende legitimar um sistema político corrupto, no poder desde a independência, em 1962..A maioria rejeita as eleições presidenciais para escolher um sucessor de Bouteflika, alegando que o processo é uma tentativa de regenerar o "sistema". As autoridades, por sua vez, negam e tentam minimizar o alcance das manifestações populares..Não há sondagens públicas na Argélia que permitam antecipar a futura participação eleitoral, mas a abstenção, muito significativa nas últimas eleições (nas legislativas de 2012 alcançou 64%, a maior taxa desde 1989, quando o país adotou o sistema multipartidário), é tida como a única forma de protesto contra um sistema que se diz "armadilhado"..Bouteflika, na sequência de uma onda de protestos, renunciou ao cargo a 2 de abril, em meio a uma crise política, social e económica que assola toda a Argélia. Desde então, foi substituído por um governo de transição chefiado pelo presidente Abdelkader Bensalah e pelo primeiro-ministro, Noureddine Bedoui. Mas o poder, de facto, está nas mãos do chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, o general Ahmed Gaid Salah..Por entre os protestos que irromperam recentemente em todo o globo, o hirak sobressai. Tão persistente quanto as manifestações em Hong Kong, o movimento permanece determinadamente pacífico, a favor da aliança entre políticos e organizações. O futuro da Argélia poderá ser resolvido pela habilidade deste movimento para equilibrar as tensões entre a população enquanto se foca na transição da nação rumo à democracia..O origem da insurreição.Os argelinos querem uma reformulação estrutural do governo, logo, do sistema político. Inicialmente, saíram às ruas para exigir a renúncia do então presidente Abdelaziz Bouteflika, que confirmou a intenção de um quinto mandato nas eleições presidenciais em fevereiro, tendo recuado em seguida. Ainda assim, esboçou um plano para as adiar e permanecer no poder até dezembro de 2019, enquanto se vai elaborando uma nova Constituição..O descontentamento é generalizado. O país magrebino, que há 50 anos se posicionou como a "meca da revolução" num mundo pós-imperial, enfrenta uma grave crise económica. O desemprego juvenil está nos 28% e a economia dependente de energia do país cresceu apenas 0,8% em 2018. "A economia argelina está sob imensa pressão para fornecer novos empregos para milhões de pessoas que entram no mercado de trabalho todos os anos", contextualizou em entrevista ao Diário de Notícias o especialista em geopolítica e segurança Felipe Pathé Duarte..Depois, "a figura fantasmagórica do presidente Bouteflika, praticamente ausente dos olhos do público, dá azo a especulações sobre quem verdadeiramente controla o país", prossegue. O que acontecerá a 12 de dezembro é uma incógnita. Poderá ser o início da alteração do regime, o que implicaria haver grandes concessões do establishment - uma abertura significativa do sistema político; ou então assistir-se-á a uma intensificação gradual da instabilidade atual..Contudo, na opinião do analista, dificilmente o exército "cederá o poder a um governo civil, sobretudo se liderado por islamistas". Basta lembrar, sustenta, que os militares organizaram um golpe depois de uma vitória eleitoral islâmica em dezembro de 1991, dando origem a uma violenta guerra civil entre 1992 a 2002..A ausência de Bouteflika tem suscitado muitas especulações. A Argélia é governada por um grupo opaco de elites que estão no eixo do poder político e económico. Aqueles que governam na sombra do presidente são um mistério, assim como aqueles que aparentemente o estão a minar ao permitir que os protestos não tivessem sido bloqueados logo no início..Crise energética.Caso haja um boicote às eleições, com níveis de abstenção sem precedentes, não é de descartar uma guerra civil, com graves repercussões nos mercados de energia, principalmente na União Europeia, o maior comprador de petróleo da Argélia. "O setor de energia da Argélia precisa de investimento. A instabilidade política acentuará ainda mais o problema - afasta os investidores e adia as reformas necessárias. No caso de guerra civil, poderá haver interrupções no fornecimento e choques nos preços a nível global", alerta Felipe Pathé Duarte..A acontecer, Portugal também sairá fortemente prejudicado, sobretudo quanto ao fornecimento de gás natural. A Galp assinou em junho deste ano um novo acordo de aprovisionamento de gás natural com a argelina Sonatrach, que prevê o fornecimento de 2,5 mil milhões de metros cúbicos por ano ao longo da próxima década. Este contrato reforça a parceria que a Galp tem há vinte anos com um dos históricos fornecedores de gás a Portugal, a par com a Nigéria. O volume contratado à empresa petrolífera estatal da Argélia corresponde também a cerca de metade do consumo anual de gás natural em Portugal. A Sonatrach é ainda um fornecedor de gás de referência da EDP, da qual também é acionista..Tais ruturas no abastecimento poderão levar os Estados membros da União Europeia a depender mais da Rússia, tal como aconteceu em 2014. E uma crescente dependência da Rússia daria a Moscovo maior poder de pressão sobre os europeus aliados dos EUA..O recrudescimento do terrorismo.Por outro lado, além de uma eventual crise energética, há receios de um recrudescimento do terrorismo. Há margem para isso. A Argélia é um elemento fundamental no combate ao jihadismo, pela experiência e pela capacidade. A vasta extensão montanhosa das regiões desérticas do sul abriga grupos ligados à Al-Qaeda e ao Daesh - que se movem pelas fronteiras do Mali, da Argélia e do Níger. Um colapso do governo central poderia inviabilizar ações bem-sucedidas no combate ao terrorismo e complicar os controlos fronteiriços..A agravar os prognósticos, a União Europeia poderá ver-se a braços com uma nova onda de refugiados argelinos, tendo como exemplo o caso da vizinha Líbia..Pouco mais de 1500 quilómetros separam Lisboa de Argel, capital da Argélia. Motivos não nos faltam para estarmos atentos a esta crise geopolítica..As cinco candidaturas do "aparelho".Abdelmadjid Tebboune 74 anos, foi duas vezes ministro da Habitação (permaneceu no cargo sete anos) e também primeiro-ministro entre maio e agosto de 2017..Ali Benflis 75 anos, foi ministro da Justiça durante três anos e primeiro-ministro de 2000 a 2003, já sob a presidência de Abdelaziz Bouteflika. Recandidatou-se duas vezes à presidência, em 2004 e 2014..Azzedine Mihoubi 60 anos, foi ministro da Cultura de 2015 a 2019 e secretário-geral interino do partido Reunião Nacional Democrática (RND), o partido do atual chefe de Estado interino, Abdelkader Bensalah. O RND formalizou uma aliança com a Frente de Libertação Nacional (FLN) desde 2005 e é, portanto, um dos pilares do regime..Abdelaziz Belaïd 56 anos, entrou na Frente de Libertação Nacional aos 23 anos, tornando-se o mais jovem membro do comité central da FLN. Foi deputado durante dez anos. Em 2011 saiu da FLN para fundar a Frente El Moustakbel (Frente do Futuro), pequeno partido considerado próximo do poder..Abdelkader Bengrina 57 anos, antigo ministro do Turismo e deputado pelo Movimento da Sociedade pela Paz (MSP) durante cinco anos, é o único candidato islamista.