Quantas mentiras se dizem entre os lençóis?
"A verdade! Mas o que é a verdade? Até os filósofos não sabem o que isso é", lança Paulo, a tentar justificar as mentiras que diz. Está meio despido, sem camisa, sem sapatos, num quarto de hotel manhoso onde foi encontrar-se com Patrícia, a mulher do seu melhor amigo com quem, desde há uns meses, mantém um caso. Estava a correr tudo bem até ela ter começado a sentir-se culpada por mentir ao marido. "Isto para mim já não está a funcionar", queixa-se. Já ele não tem esses problemas de consciência: "Nunca se diz a verdade à própria mulher."
O que é, afinal, uma mentira? Essa é a grande questão que atravessa as duas peças do dramaturgo francês Florian Zeller, A Verdade (de 2011) e A Mentira (de 2014), que o Teatro Aberto apresenta agora como um díptico: à quinta e sábado vemos A Mentira; à quarta e sexta enfrentamos A Verdade; ao domingo é possível ver os dois espetáculos de seguida. Ambos são encenados por João Lourenço e interpretados pelo mesmo grupo de quatro atores: Paulo Pires, Joana Brandão, Miguel Guilherme e Patrícia André.
"Primeiro li A Verdade, mas depois de ler A Mentira percebi que uma peça sozinha não fazia sentido. Tinha de fazer as duas", explica João Lourenço, que de Florian Zeller já tinha feito a peça O Pai. "As pessoas assim veem mais a diversidade da mentira. Toda a gente se vai ver um pouco retratada, numa peça ou noutra. Estão muito próximas da vida. E com o humor o autor vai plantando umas sementes de desconforto, em ambas as peças. São espetáculos divertidos mas que fazem pensar."
No complicado processo de ensaios que durou dois meses e meio, o encenador começou por pedir aos atores que fossem "completamente verdadeiros" na sua abordagem às personagens que, na versão de Vera San Payo de Lemos, têm todas o mesmo nome dos atores. "O tema das peças é muito parecido, porque em ambas há dois casais e há traições, mas ao mesmo tempo são peças muito diferentes", explica João Lourenço. Quando ensaiavam A Verdade, o elenco estava na Sala Vermelha, num cenário que os transportava para os anos 1950. Quando ensaiavam A Mentira, mudavam-se para a Sala Azul e para a atualidade. Aos poucos, as diferentes personagens foram-se definindo e distanciando. "São espetáculos diferentes, não há qualquer confusão", garante o encenador.
Nos textos de Zeller, ambas as peças se passavam na contemporaneidade, mas o encenador optou por colocar A Verdade na década de 1950, ao som de Elvis Presley, com cigarros acesos e telefones fixos. "Acho que é uma época muito sedutora. E pensei que era interessante pôr a verdade mais para trás", explica. João Lourenço reconhece que há ali, naqueles casais enredados em mentiras, qualquer coisa de Harold Pinter e da sua Traição (de 1978).
Para A Mentira, o encenador imaginou o cenário como uma galeria de arte que alguns espectadores serão convidados a visitar. "A mentira está instalada no meio de nós. Foi assim que surgiu a ideia: a mentira como uma instalação", explica João Lourenço. Depois, as pessoas ocupam os seus lugares na plateia e a ação continua na galeria de arte. "Já não tenho paciência para as peças que se passam numa sala, com o whisky à esquerda e o copo à direita. Queria fazer alguma coisa diferente", acrescenta o encenador.
Os enganos e as mentiras dentro de um casal são um tema universal. Já Gil Vicente o tratava no seu Auto da Índia (1509) e Almeida Garrett, no século XIX, nos mostrava como era possível Falar Verdade a Mentir, não é? Aqui, em nenhuma das peças há uma lição moral, garante encenador. "As pessoas vão sair daqui a pensar, isso sim. Há casais que podem sair em silêncio", antevê. "A mentira existe desde sempre. E aprendemos a mentir desde pequenos, com os adultos. Todos mentimos, até as pessoas que dizem que não mentem, mentem, dizem mentiras pequenas, às vezes sem se aperceberem."
A Mentira e A Verdade
De Florian Zeller
Encenação de João Lourenço
Com: Paulo Pires, Joana Brandão, Miguel Guilherme e Patrícia André
Teatro Aberto, Lisboa
A Mentira
Quinta e sábado às 21.30
Domingo às 16.00
Sala Azul
A Verdade
Quarta e sexta às 21.30
Domingo às 18.30
Sala Vermelha