Portugal é o terceiro país da Europa com mais presos por crime rodoviário
A 31 de dezembro de 2017, havia nas prisões portuguesas 1148 pessoas a cumprir pena por crimes rodoviários. A maioria - 795 - por conduzir sem carta; os outros por condução sob estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas (233) e por condução perigosa (120).
Com 10,1% da população prisional condenada por estes crimes - que não incluem homicídio por negligência ou ofensas à integridade física relacionados com acidente de viação - Portugal só fica, na Europa, atrás da Bulgária (15,5%) e da Islândia (16,7%), empatando com a Letónia. De acordo com o SPACE, relatório anual do Conselho da Europa sobre prisões, divulgado na terça-feira, a percentagem média de presos por crimes rodoviários no total dos países europeus é de 4,3%, menos de metade da portuguesa.
Estabelecendo a legislação nacional a pena máxima de dois anos para a condução sem carta e de três para a condução perigosa ou sob influência - muito abaixo, portanto, do limite de cinco anos que permite a suspensão da pena -, é possível concluir que os reclusos condenados por estes três crimes correspondem a quase metade (48,5%) dos que cumprem penas até três anos, e que se contabilizam, segundo o SPACE, em 2369.
Numa altura em que se debate a frequência da utilização do instituto da pena suspensa em crimes contra as pessoas, nomeadamente violência doméstica e violação, e quando mais uma vez o SPACE chama a atenção para a sobrelotação das prisões nacionais - as sétimas mais lotadas de entre os países constantes no relatório -, o facto de mais de 10% dos reclusos estarem presos por este tipo de crimes, cujas penas máximas estão muito abaixo do limite de cinco anos que permite a suspensão, não pode deixar de causar perplexidade.
Acresce que se trata de crimes definidos como de "perigo abstrato", que tutelam "o bem jurídico segurança da circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais" (nos termos de um acórdão de 2017 do Tribunal da Relação de Coimbra, que condena a um ano de prisão efetiva um homem que foi várias vezes apanhado a conduzir sem carta). Ou seja, penalizam a possibilidade de causar um dano (pessoal ou patrimonial) e não a existência de um dano efetivo.
Ainda assim, têm muito mais peso na população prisional portuguesa do que crimes de dano efetivo contra as pessoas, como a violência doméstica, a violação ou outros crimes sexuais e as ofensas à integridade física. Só os crimes contra a propriedade, como o roubo e o furto, e os relacionados com estupefacientes - estes últimos também crimes de perigo abstrato - somam individualmente mais reclusos.
A comparação com a Europa sublinha esse contraste. De facto, se a média de condenados presos por violação no conjunto europeu é 4,6%, em Portugal é 1,8%; na categoria "outros crimes sexuais" (que a partir das estatísticas portuguesas percebemos corresponder a abuso sexual de crianças e menores dependentes), a média europeia é 3,9% e cá 2,5%. Nas ofensas à integridade física, volta a haver uma média muito superior na Europa: 7,6% para 3,2%.
Sendo a violência doméstica uma categoria ausente no relatório SPACE, não é possível cotejar a taxa de reclusão para este crime com a de outros países europeus. Mas as estatísticas da Direção-Geral da Política de Justiça certificam que no total de 2947 reclusos que em 31 de dezembro de 2017 cumpriam pena por crimes contra as pessoas, 292 faziam-no por terem sido condenados por violência doméstica. O que corresponde a menos de 2,6% dos condenados presos (que eram 11335 naquela data).
Claro que os crimes não têm todos o mesmo peso estatístico, quer na ocorrência quer no reporte (há crimes com cifras negras, cuja incidência real é superior à reportada, como é tipicamente o caso da violação e outros crimes sexuais), e que essas diferenças terão de se repercutir nas condenações - não tanto nas condenações a prisão, já que estas deverão depender da gravidade dos crimes. E sem dúvida que os crimes rodoviários têm um elevado número de registos, até porque este depende sobretudo de operações de fiscalização direta das polícias: em 2017, por exemplo, foram fiscalizados mais de dois milhões e meio de condutores.
Assim, em 2017, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, as polícias detetaram 30 602 crimes rodoviários, dos quais 505 dizendo respeito a condução perigosa, 9305 a condução sem habilitação legal e 19 848 a condução de veículo com taxa de álcool igual ou superior a 1,2 gramas por litro de sangue. O valor global inclui ainda 545 casos de ofensa à integridade física por negligência em acidente de viação e 404 de homicídio por negligência.
Já o crime de violação contabilizou apenas 408 participações. Mas as ofensas à integridade física voluntárias simples chegaram aos 23 416, somando-se-lhes as ofensas à integridade física graves (584); quanto à violência doméstica, atingiu 22 599 queixas. Comparativamente, então, a taxa de condenação a prisão pelo crime de conduzir sem carta, em comparação com o número anual de participações, é muitíssimo mais elevada do que a taxa de condenação a prisão pelo crime de violência doméstica.
Interessante também constatar que nos processos findos em tribunais de primeira instância o número respeitante a condução perigosa foi em 2017 de 388, correspondendo a mais de metade das participações policiais nesse mesmo ano e a menos do quádruplo dos condenados por esse crime que cumpriam pena de prisão nesse ano (120). Já para a condução em estado de embriaguez os processos findos em primeira instância foram 10 380, pouco mais de metade das participações. O DN não encontrou os dados respeitantes a processos por condução sem carta.
No último Relatório de Segurança Interna, apresentado no final de março e respeitante a 2018, o número de condutores fiscalizados que acusaram álcool em níveis criminais no sangue foi de 18 289, seguindo a tendência decrescente que se tem vindo a verificar na última década. A condução sem habilitação legal foi reportada em 9529 casos.
Há "um rácio claramente excessivo de presos por cem mil habitantes, considerando a estrutura e a frequência da criminalidade e, bem assim, a comparação com países europeus com sistemas judiciais com os quais Portugal tem identidade matricial", lê-se no documento estratégico que o Ministério da Justiça publicou em 2017 sobre o sistema prisional.
O jurista e sociólogo do Direito João Pedroso não podia estar mais de acordo. Escreveu-o no DN em janeiro de 2018: "A reclusão só deve ser aplicada para sancionar crimes graves ou percursos reiterados de criminalidade média ou grave. (...) Atualmente teremos um número significativo de pessoas presas para o qual não haverá justificação, em termos humanos, sociais e de política pública para estarem reclusas. (...) Há pessoas reclusas (...) por conduzirem, para poderem trabalhar ou por outra necessidade, sem carta de condução."
Sugerindo que passe a ser possível "permitir a obtenção de carta de condução a pessoas com pouca escolaridade sem testes escritos", Pedroso considera, em declarações ao DN, e dado os números de presos condenados por crimes rodoviários, que se verifica "uma automobilização do direito penal".
"Temos um sistema penal muito ligado ao automóvel. No meu entender, a condução sem carta não devia ser crime, nem sequer a condução sob efeito de álcool ou estupefacientes. Essas condutas só deveriam ser crime em caso de acidente. O problema começa por ser da lei que criminaliza mas também é da ideologia punitiva, da jurisprudência."
A criminalização da condução sem carta ocorreu em Portugal em 1998, alegando-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, que "a necessidade de prevenção de condutas que, por colocarem frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, se revestem de acentuada perigosidade impõe a criminalização do exercício da condução por quem não esteja legalmente habilitado para o efeito." O crime só pode ser cometido em "via pública ou equiparada" e a pena é até um ano para condução de veículo a motor (trator, por exemplo) e até dois anos caso se trate de motociclo ou automóvel.
Já a "condução perigosa de veículo rodoviário", que inclui o conduzir "não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva" e "violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em autoestradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita", é crime previsto no artigo 291.º do Código Penal, com pena até três anos.