O texto que aí fica reproduz as palavras que proferi, na Assembleia da República, na passada sexta-feira, dia 4, na abertura da exposição Cinquenta Anos a Fazer P.Arte, de António Colaço..Estudante em Roma, fui à Basílica de São Pedro muitas, muitas vezes, só para ver a Pietà. De um bloco de mármore, Miguel Ângelo arrancou a Pietà, que nos comove, e, imóveis, olhamos e olhamos... e contemplamos... o que lá está: a dor, a compaixão de uma mãe com o filho morto nos braços, toda a ternura compassiva do mundo, e mais e mais... E nunca nos cansamos de olhar. Aquele mármore é sempre mais do que mármore... foi transfigurado, transfigurou-se..Em Amesterdão, contemplei as célebres Botas de Van Gogh. Ninguém as pode calçar. Para que servem? Mas são as botas mais caras do mundo. O que está lá? Todos os caminhos dos homens e das mulheres... as suas dores e sofrimentos, os seus sonhos e esperanças... infinitamente..O artista, grávido de mundos, vê o que outros não vêem e ensina a ver o que se vê, sempre mais do aquilo que se vê. A arte é símbolo: uma presença que aponta para lá, sempre mais para lá, para uma ausência presente, para a transcendência... na coincidência..Nestes Cinquenta Anos a Fazer P.Arte de António Colaço, o que há é todo o seu percurso de mostrar o que só o artista vê. Ele há uma terrina com furos e com máscaras: afinal, um escorredor de almas... Ofereceu-ma, e eu vi a força de um confessionário, na sua força de salvação e alívio na reconciliação. Ele há uma oliveira que ardeu e que é um Cristo crucificado, a suplicar a libertação da tragédia dos incêndios... e tantas outras tragédias também. Ele há uma tigela, que é outra coisa... também há tijolos... e isso tudo é símbolo de uma reconstrução de alguém que passa por um AVC..Ele há..., ele há..., ele há 50 anos de António Colaço a fazer-se, fazendo arte com muitas artes, transfigurando, e ensinando a ver o que se vê, mas, distraídos, não vemos..Tudo sob o ícone de uma Chaimite, agora desmilitarizada e obra de arte, símbolo da liberdade. Daí o nome da exposição: Palavril (libertação da palavra em Abril). Na Assembleia da República, a Casa da Democracia. Daqui, em liberdade, se luta pela igualdade radical e pela fraternidade concreta. Um Evangelho: notícia boa e felicitante, como diz o étimo grego da palavra. A utopia, a realizar, de um mundo outro, um mundo outro possível e urgente..Aqui chegados, impõe-se uma palavra sobre a relação complexa entre política, ética e estética..Quando comparamos o ser humano e os outros animais, notamos que a linguagem duplamente articulada é característica decisiva dos humanos. Já no século XVIII se deu essa compreensão, pois encontramos inclusivamente caricaturas com um missionário no meio da selva africana dizendo a um macaco: "Fala, e eu baptizo-te." Se falasse, era humano. Evidentemente, esta fala refere-se ao que é próprio do ser humano: dupla articulação da linguagem..Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só podemos compreender-nos a nós próprios em corpo, com outros e na história..O homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem logos (razão e linguagem), é também zôon politikón, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles, na Política: "A razão de o homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o homem, entre os animais, possui a palavra." E continua: "A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.".A linguagem humana não se reduz à expressão emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, a linguagem está na base da ética e funda eticamente a pólis (a cidade, no sentido da vida política)..O que é que isto quer dizer? A política tem de assentar em valores, valores éticos, e espera-se que os políticos sejam éticos. Mas, precisamente aqui, começa o paradoxo. Se fôssemos todos éticos, moralmente bons, não era necessária a política. Mas não somos. Então, precisamos de política? Claro. Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele, o Estado, o monopólio da violência, porque não somos éticos. Se todos fossem éticos, no quadro do cada um fazer-se bem moralmente a si próprio, prestando contas de si e das contas, não seria necessária a política, que ficava reduzida à administração das coisas. As leis seriam justas e todos as cumpririam. Só porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir os conflitos. Como escreve o filósofo André Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de tribunais, de forças armadas, de prisões..Assim, a política não existe directamente para a ética. Mas ai de nós, sem uma conversão ética! Urgência maior é a formação ética, moral, para os valores, que não são redutíveis ao valor do dinheiro divinizado. Sem valores éticos assumidos, remeteremos constantemente para a política, para as leis, para a regulação, para os tribunais, para as prisões... Então, só fica a lei (e aqui há ainda a questão de legislar em causa própria) e a sua sanção, no limite, um Estado totalitário e tirânico, mesmo que sob a aparência de democracia. Ora, não é possível legislar sobre tudo e, sobretudo, acabaria por ser necessário pôr um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei; como os polícias também são humanos, seria preciso pôr um polícia junto de cada polícia e assim sucessivamente... Juvenal disse: "Custos custodit nos. Quis custodiet ipsos custodes?" - "A guarda guarda-nos. Quem guardará a guarda?".Significativamente, o Evangelho, notícia boa e felicitante, quando Jesus ordena: "Fazei obras boas", no original grego está: kalá érga, obras belas. Cá está o elo entre a estética e a ética. Mesmo os pais ou os bons educadores, quando querem chamar a atenção para o bem, criticando qualquer coisa que não é moralmente boa os educandos fazerem, não dizem "não faças isso, porque é mal". Dizem antes: "Não faças isso, não é bonito, é feio.".Na conexão entre ética e estética, a Assembleia da República fez bem ter trazido para dentro dela a exposição Cinquenta Anos a Fazer P.Arte -Palavril, de António Colaço. Foi uma boa decisão, é bem, uma excelente decisão, bela decisão. António Colaço, "místico" (Jaime Gama dixit), ensina-nos a ver o que se vê e, assim, torna-nos melhores..Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga grafia.
O texto que aí fica reproduz as palavras que proferi, na Assembleia da República, na passada sexta-feira, dia 4, na abertura da exposição Cinquenta Anos a Fazer P.Arte, de António Colaço..Estudante em Roma, fui à Basílica de São Pedro muitas, muitas vezes, só para ver a Pietà. De um bloco de mármore, Miguel Ângelo arrancou a Pietà, que nos comove, e, imóveis, olhamos e olhamos... e contemplamos... o que lá está: a dor, a compaixão de uma mãe com o filho morto nos braços, toda a ternura compassiva do mundo, e mais e mais... E nunca nos cansamos de olhar. Aquele mármore é sempre mais do que mármore... foi transfigurado, transfigurou-se..Em Amesterdão, contemplei as célebres Botas de Van Gogh. Ninguém as pode calçar. Para que servem? Mas são as botas mais caras do mundo. O que está lá? Todos os caminhos dos homens e das mulheres... as suas dores e sofrimentos, os seus sonhos e esperanças... infinitamente..O artista, grávido de mundos, vê o que outros não vêem e ensina a ver o que se vê, sempre mais do aquilo que se vê. A arte é símbolo: uma presença que aponta para lá, sempre mais para lá, para uma ausência presente, para a transcendência... na coincidência..Nestes Cinquenta Anos a Fazer P.Arte de António Colaço, o que há é todo o seu percurso de mostrar o que só o artista vê. Ele há uma terrina com furos e com máscaras: afinal, um escorredor de almas... Ofereceu-ma, e eu vi a força de um confessionário, na sua força de salvação e alívio na reconciliação. Ele há uma oliveira que ardeu e que é um Cristo crucificado, a suplicar a libertação da tragédia dos incêndios... e tantas outras tragédias também. Ele há uma tigela, que é outra coisa... também há tijolos... e isso tudo é símbolo de uma reconstrução de alguém que passa por um AVC..Ele há..., ele há..., ele há 50 anos de António Colaço a fazer-se, fazendo arte com muitas artes, transfigurando, e ensinando a ver o que se vê, mas, distraídos, não vemos..Tudo sob o ícone de uma Chaimite, agora desmilitarizada e obra de arte, símbolo da liberdade. Daí o nome da exposição: Palavril (libertação da palavra em Abril). Na Assembleia da República, a Casa da Democracia. Daqui, em liberdade, se luta pela igualdade radical e pela fraternidade concreta. Um Evangelho: notícia boa e felicitante, como diz o étimo grego da palavra. A utopia, a realizar, de um mundo outro, um mundo outro possível e urgente..Aqui chegados, impõe-se uma palavra sobre a relação complexa entre política, ética e estética..Quando comparamos o ser humano e os outros animais, notamos que a linguagem duplamente articulada é característica decisiva dos humanos. Já no século XVIII se deu essa compreensão, pois encontramos inclusivamente caricaturas com um missionário no meio da selva africana dizendo a um macaco: "Fala, e eu baptizo-te." Se falasse, era humano. Evidentemente, esta fala refere-se ao que é próprio do ser humano: dupla articulação da linguagem..Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só podemos compreender-nos a nós próprios em corpo, com outros e na história..O homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem logos (razão e linguagem), é também zôon politikón, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles, na Política: "A razão de o homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o homem, entre os animais, possui a palavra." E continua: "A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.".A linguagem humana não se reduz à expressão emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, a linguagem está na base da ética e funda eticamente a pólis (a cidade, no sentido da vida política)..O que é que isto quer dizer? A política tem de assentar em valores, valores éticos, e espera-se que os políticos sejam éticos. Mas, precisamente aqui, começa o paradoxo. Se fôssemos todos éticos, moralmente bons, não era necessária a política. Mas não somos. Então, precisamos de política? Claro. Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele, o Estado, o monopólio da violência, porque não somos éticos. Se todos fossem éticos, no quadro do cada um fazer-se bem moralmente a si próprio, prestando contas de si e das contas, não seria necessária a política, que ficava reduzida à administração das coisas. As leis seriam justas e todos as cumpririam. Só porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir os conflitos. Como escreve o filósofo André Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de tribunais, de forças armadas, de prisões..Assim, a política não existe directamente para a ética. Mas ai de nós, sem uma conversão ética! Urgência maior é a formação ética, moral, para os valores, que não são redutíveis ao valor do dinheiro divinizado. Sem valores éticos assumidos, remeteremos constantemente para a política, para as leis, para a regulação, para os tribunais, para as prisões... Então, só fica a lei (e aqui há ainda a questão de legislar em causa própria) e a sua sanção, no limite, um Estado totalitário e tirânico, mesmo que sob a aparência de democracia. Ora, não é possível legislar sobre tudo e, sobretudo, acabaria por ser necessário pôr um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei; como os polícias também são humanos, seria preciso pôr um polícia junto de cada polícia e assim sucessivamente... Juvenal disse: "Custos custodit nos. Quis custodiet ipsos custodes?" - "A guarda guarda-nos. Quem guardará a guarda?".Significativamente, o Evangelho, notícia boa e felicitante, quando Jesus ordena: "Fazei obras boas", no original grego está: kalá érga, obras belas. Cá está o elo entre a estética e a ética. Mesmo os pais ou os bons educadores, quando querem chamar a atenção para o bem, criticando qualquer coisa que não é moralmente boa os educandos fazerem, não dizem "não faças isso, porque é mal". Dizem antes: "Não faças isso, não é bonito, é feio.".Na conexão entre ética e estética, a Assembleia da República fez bem ter trazido para dentro dela a exposição Cinquenta Anos a Fazer P.Arte -Palavril, de António Colaço. Foi uma boa decisão, é bem, uma excelente decisão, bela decisão. António Colaço, "místico" (Jaime Gama dixit), ensina-nos a ver o que se vê e, assim, torna-nos melhores..Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga grafia.