Uma homenagem húngara ao fado e o alerta a Lisboa

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Árpád Szenes-Vieira da Silva é o nome de um pequeno museu na Praça das Amoreiras, das mais bonitas de Lisboa. É também a síntese de uma história de amor entre um húngaro e uma portuguesa, ele nascido em Budapeste e ela em Lisboa, que se conheceram em Paris, cidade excelente para dois grandes artistas viverem, até idílica, não fosse ele, judeu nascido no tempo do Império Austro-Húngaro, ser apátrida e ela depois também, por casar com um estrangeiro fora do país.

Difícil, pois, por causa deste amor luso-magiar, imaginar sítio mais feliz do que o auditório do Museu Árpád Szenes-Vieira da Silva para ontem assistir ao filme Silêncio - Vozes de Lisboa, com presença da realizadora Judit Kalmár, uma húngara que em conversa no final com a audiência contou gostar de fado há muitos anos, de ter até assistido a concertos dos nomes mais famosos, mas que durante as filmagens descobriu um outro género de fado, mais popular, de certa forma mais autêntico, ligado à vivência quotidiana de alguns bairros da capital, sobretudo Alfama.

O filme estreou-se em 2020. Então, o DN conversou com Kalmár e Céline Coste Carlisle, correalizadora suíça que ontem não esteve presente mas enviou uma mensagem. O título da entrevista foi "A carta de amor ao fado de uma suíça e de uma húngara", que faz também justiça a Carlisle, que, por viver há muitos anos em Lisboa, frequentava o restaurante Esquina de Alfama, onde Ivone Dias, veterana fadista estrela do filme, cantava, e onde levou Kalmár antes de se juntarem neste projeto de grande sucesso em festivais.

Faço, porém, sobressair a metade húngara da realização do documentário pela nova homenagem ao fado, que é a escolha deste filme falado em português para abrir um ciclo de cinema húngaro. E como a sensibilidade desse povo da Europa Central parece sentir-se atraída pela típica canção portuguesa, mesmo não sendo fácil entender a letra noutra língua, e tão diferente. "As músicas populares húngaras não serão assim tão distintas do fado nos temas", lançou o embaixador Miklós Halmay (apoiando-se nas recolhas etnográficas de Béla Bartók e Zoltán Kodály) em reforço de Kalmár, que contou como, ao tratar da tradução para húngaro do documentário, teve de lidar com as letras dos fados e tentar a melhor forma de vertê-las para o seu idioma sem se perder aquelas permanentes referências ao destino.

Devo acrescentar que o embaixador Halmay fala português, tal como a outra diplomata húngara presente, Kinga Somogyi, o que só pode surpreender quem desconhece o interesse na Hungria pela cultura portuguesa. Os Lusíadas, por exemplo, foram traduzidos ainda no século XIX, quando a nação húngara (ou magiar, como os próprios se chamam) lutava por ser reconhecida como tal pela dinastia Habsburgo, e o tom epopeico do texto de Luís Vaz de Camões não deixava de entusiasmar muitos patriotas. Mesmo hoje o interesse entre os húngaros pela história e cultura portuguesas é forte, como o testemunha o livro Bensömben Sokan Élnek, descrito por Ferenc Pál, coordenador, como "a mais completa edição de sempre de Fernando Pessoa na Hungria". O título quer dizer "Vivem em nós inúmeros", tomado de empréstimo a um poema de Ricardo Reis, um dos mais famosos heterónimos do poeta, explicou-me, já lá vão três anos, o antigo diretor do Departamento de Português da Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste.

Desta homenagem húngara ao fado, primeiro filme de um ciclo com entrada livre que inclui Aurora Borealis - Luzes do Norte (17 de novembro) e Kincsem (26 de novembro), fica também um alerta sobre a sobrevivência da tal autenticidade. Contou Kalmár que Ivone Dias ainda canta, desde que os problemas de saúde não se juntem à idade para a maçar, e Marta Miranda, outra estrela do documentário, dona de uma voz cheia de sensualidade, continua sonhadora. Mas a verdade, acrescento, é que Alfama está a deixar de ser o que era, que a gentrificação do bairro e a presença maciça de turistas estrangeiros trazem riqueza mas expulsam moradores, e devíamos todos ver este filme como a dádiva de uns amigos de outras partes da Europa para refletirmos sobre o que queremos que Lisboa, e Portugal como um todo, seja. Nenhum fado afinal é definitivo, veja-se o caso de Maria Helena Vieira da Silva, que, tal como o marido, acabou por ter nacionalidade francesa, mas que viu o Portugal democrático oferecer-lhe o reconhecimento que a ditadura recusara. E foi a artista que fez questão que o nome de Árpád Szenes estivesse junto ao dela no museu inaugurado em 1994. Antes do dela, aliás.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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