Uma mulher corta os ramos da árvore caída no jardim. Arranja lenha para fazer uma fogueira, está sem luz e sem gás, "qualquer coisa serve para cozinhar". As crianças brincam, andam de baloiço, depois de saírem da escola ou onde nem sequer foram porque as placas e telhas voaram. Três homens num telhado fixam uma antena..O vendedor de suco de cana-de-açúcar voltou à Praça da Independência, na cidade da Beira, tal como o rapaz dos cocos. Tudo aparentemente normal, não fossem as filas para as caixas de multibanco, nos serviços públicos ou para conseguir água potável. A população regressa às rotinas, também a reconstruir o que está danificado. Gente resiliente, destaca quem os tem visto de fora nas semanas após o ciclone..Muitas casas, escolas, edifícios públicos e privados estão destruídos, sem telhados, há árvores e postes caídos, água ainda por retirar, lixo amontoado, mas também se percebe que muita da degradação é anterior à passagem do ciclone Idai. Há muita pobreza e gente a viver em bairros sem condições sanitárias. Há ainda água para escoar, muito lixo amontoado. Ninguém retira a árvore que caiu em cima de um carro, estava há muito abandonada. Moscas e mosquitos, um calor húmido e sufocante..As casas destruídas são contabilizadas: 97 424, a que se juntam 103 537 danificadas, estragos que afetaram 283 554 famílias, segundo os últimos dados do Instituto Nacional da Gestão das Calamidades. Morreram 598 pessoas e 1641 ficaram feridas. Nada que os impeça de seguir em frente.."Então, fazer o quê? A casa ficou destruída, mas preciso de trabalhar, estava aqui uma semana depois do ciclone. Aos poucos, estamos a tentar chegar à normalidade." É o homem do suco de cana-de-açúcar que o diz. Toni Fernandes, de 35 anos. O único lamento é a falta de clientes, queixas de todo o vendedor..Homens com fios enrolados nos braços sobem e descem escadas de alumínio, estão a repor as linhas do serviço telefónico e as de energia. Sem pressas..Francisca Augusta, de 36 anos, voltou a vender fritos de feijão na Rua Samora Machel Agostinho Neto. Recorda a noite de 14 para 15 de março, a da passagem do ciclone. "O vento levou as chapas de zinco, depois vieram as chuvas, uma noite péssima." Só esta semana começou a arranjar o telhado, mas estava na venda quatro dias depois..Francisca vende um pouco de tudo: banana, água, farinha, arroz, bolachas, ovos, etc. Tem cinco filhos, o marido trabalha na pastelaria. Está na mesma rua em que o cartaz do concerto de Matias Damásio, no dia 8 março, permanece colado à parede. Resistiu como as habitações de boa construção e com placas de cimento..Num mesmo edifício, parte do primeiro piso é ocupado pelo centro de saúde. Ao lado, fica a Escola Privada de Chaimite-Beira, em baixo o Supermercado Merce. Em frente, mulheres sentadas no chão pedem meticais a quem passa. Como Páscoa Morais, de 23 anos, quatro filhos. O primeiro teve-o com 13 anos. Um menino de 14 meses não desgruda da mama. Passa aqui os dias, muito antes da tempestade..Os funcionários de um grande armazém de mobílias carregam caixotes com o que conseguiram aproveitar, as coisas mais pequenas. Tejas Blute, o proprietário, revela ter mais outra loja perto, também ela destruída. Um prejuízo de mais de dez mil milhões de meticais (cerca de 135 mil euros), em mercadoria que importa sobretudo da China. "Vou arranjar tudo, não tem outra maneira. Vinte pessoas dependem de mim." Acredita que as duas megalojas que tem na Baixa voltarão a ter as portas abertas dentro de três meses..A destruição foi muito maior em Búzi, vila da mesma província, que fica a 60 quilómetros da Beira. João Ribeiro, de 62 anos, mora na povoação de Bândua, onde a água cobriu casas, pontes e árvores. Vive num planalto, mas a exploração agrícola que tem na Baixa ficou completamente inundada. O guarda não sobreviveu.."Perdi tudo, 1500 árvores de cajueiros, algumas com 30 anos, 38 hectares de gergelim [sésamo]. O vento levou tudo, também muita criação. Vivi as chuvas torrenciais de 1964, mas não foi uma calamidade como esta. Tive prejuízos incalculáveis", conta João, agora já na Beira para visitar os filhos..Comprovou que os familiares estão bem, vai regressar a Bândua. "Agora é pegar nas mãos, arregaçar as mangas e trabalhar, não há outra maneira. Eu e todos os outros que perderam uma vida de trabalho.".Tudo se passa com uma tranquilidade que chega a ser irritante. Os moçambicanos parecem ter aceitado tudo o que lhes aconteceu. Gente simpática, disponível, que não nega a palavra mesmo às perguntas que tantas vezes lhes fizeram. Não se consegue perceber com o que sonham, mesmo para os filhos que acabaram de parir..O DN viajou a convite da Cruz Vermelha Portuguesa