"Tem de haver uma estratégia nacional para identificar assintomáticos. Eles são o grande desafio"
Em Portugal, não há números oficiais de doentes assintomáticos, mas um dos primeiros inquéritos serológicos indicava que 44% da população total poderia estar infetada sem desenvolver sintomas. Uma percentagem elevada para o país que somos. Isto mesmo foi admitido pela diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, já em julho, mas a existência destes doentes e o que fazer para os identificar volta agora a estar em cima da mesa nesta fase de rentrée, em que as escolas abrem a portas, as empresas também e a comunidade já sai mais à rua.
Uma rentrée que dia a dia traz novidades quanto ao aumento do número de casos, com mais surtos em lares ou em escolas, fazendo os alarmes soarem sempre que se fala em doentes assintomáticos. Porque estes tanto podem ser crianças como jovens ou idosos. Qualquer um de nós o pode ser. A covid-19 trouxe este desafio e a única solução para diminuirmos o risco de contágio, uma vez que ainda não há uma vacina profilática, nem tão-pouco uma cura eficaz para a doença, é o cumprimento das regras de proteção.
Senão, "o inverno pode ser muito duro", pois "estes doentes podem fazer disparar o número de infetados", alerta a médica Carla Araújo, especialista em medicina interna, no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que desde o primeiro momento tem estado na linha da frente no combate à doença, e que defende que "é preciso definir uma estratégia nacional de testagem para se identificar estes doentes".
A médica, que também integra o gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a covid-19, sabe que o governo quer aumentar a capacidade de testagem, passando para os 22 mil testes diários, e espera que tal aconteça rapidamente. "Sabemos que quanto mais testarmos mais será possível identificar os doentes assintomáticos", mas, argumenta, "tem de haver uma estratégia nacional para se identificar estes doentes nos lares, nas escolas, nas unidades de saúde, nas empresas, no desporto, onde quer que seja".
No entanto, defende, "uma estratégia planificada e coordenada por peritos", porque "um doente assintomático, desde que identificado, também tem de fazer isolamento e medicação". Mais: "Uma estratégia que nos permita perceber qual o tipo de teste mais adequado para se obter resultados rapidamente."
Para Carla Araújo, que no hospital desenvolve a sua atividade na enfermaria covid, consulta e urgência, mas também na comunidade, de forma voluntária em ações de formação e de sensibilização, "o momento que vivemos é o momento-chave para se travar a infeção e atenuar todas as consequências que podem advir do inverno, época em que, inevitavelmente, outras doenças do foro respiratório irão cruzar-se com a covid-19".
E é neste sentido que apela à comunidade: "O aumento de casos que agora estamos a verificar surge após um período de verão em que registámos menos casos. Todos estamos cansados do confinamento, mas não podemos baixar a guarda, não podemos desleixar os nossos comportamentos." Mais: "Todos temos de interiorizar que podemos ser doentes assintomáticos", mas se "todos cumprirmos as regras o risco de contágio diminui".
Destaquedestaque"O momento que vivemos é o momento-chave para se travar a infeção e atenuar todas as consequências que podem advir do inverno, época em que, inevitavelmente, outras doenças do foro respiratório se irão cruzar com a covid-19".
Ao DN, Carla Araújo rejeita a definição de que "os doentes assintomáticos sejam o grande risco da covid-19", como já tem sido defendido por alguns especialistas. "Penso que não poderemos passar essa responsabilidade para estes doentes. Ou, pelo menos, dizê-lo dessa forma", porque a covid-19 integra muitos outros riscos e desafios", salienta.
Mas a verdade é que "são um grupo de doentes que preocupa a comunidade médica e científica", pois, perante a rentrée e o inverno, "podem fazer disparar o número de casos de infeção e agravar os desfechos finais", argumenta.
"Imagine o que é termos um jovem assintomático, que tem a sua vida ativa na escola ou no trabalho, que está com colegas, em casa dos pais e até com avós. Se não cumpre as medidas de segurança, o risco de contágio aumenta e as cadeias de transmissão também." Se as regras forem cumpridas por todos, como "se todos fôssemos assintomáticos", reforça mais uma vez, "o risco diminuiu e as consequências também".
Nesta primeira semana de outubro, Portugal, tal como muitos outros países da Europa, vê o seu número de infetados a aumentar. Nos últimos dias, o número de novos casos nunca baixou da barreira dos 800, o número de mortes andou sempre entre os seis e os oito, mas, no total, o país já soma mais 77 mil infetados, tendo já atingido o limiar das duas mil mortes - o registo oficial dá conta de 2005 mortes, mais homens do que mulheres, embora em número de infetados seja o contrário, mais mulheres, 42 mil, menos homens, 35 mil.
Na sexta-feira, a diretora-geral da Saúde confirmava estarem ativos 344 surtos e chamava a atenção para o facto de as unidades hospitalares estarem a atingir uma taxa de ocupação de 70% a 80%, o que já é uma percentagem elevada. E, se na primeira fase da pandemia "as unidades de saúde estiveram só para os doentes covid e para as situações de emergência e urgência, agora já não será assim.
"O objetivo definido é que se trate todos os doentes covid e não covid, estando as unidades preparadas para atender uns e outros doentes", afirma Carla Araújo, para quem "os doentes assintomáticos são o grande desafio desta doença. Não são o único desafio, há outros", mas sem dúvida que são "um dos grupos de risco que mais têm preocupado a comunidade médica e científica". Aliás, "há vários estudos nacionais e internacionais que estão a ser desenvolvidos para percebermos precisamente porque é que a doença nuns doentes se manifesta de forma sintomática e noutros não".
Respostas ainda não as há. Por isso, a médica, que integra a unidade hospitalar de um dos concelhos da Grande Lisboa que mais têm sido fustigados pela doença, Loures, defende que a sensibilização da comunidade continua a ser vital. "Há sempre muitas dúvidas e as pessoas têm de continuar a ser sensibilizadas e esclarecidas."
Carla Araújo optou por trabalhar na primeira linha no hospital e na comunidade também por "considerar que a articulação entre hospital e comunidade é fundamental no combate à doença". Mas não só. Considera também que "nós, médicos, temos um papel fundamental não só na prática clínica, mas também na promoção e prevenção da saúde".
Por isso, desde o início que se disponibilizou para participar em ações de sensibilização levadas a cabo pela Câmara Municipal de Loures em bairros, nas ruas, nas escolas e, ao mesmo tempo, no Projeto Respeito pela Vida, lançado pela Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos.
Destaquedestaque"É estando no terreno que percebemos as dúvidas da população e que as podemos esclarecer".
A médica diz mesmo que é estando no terreno que se percebe quais são as dúvidas da população e que as "podemos esclarecer, retificar comportamentos e sensibilizar ainda mais para a doença e como lidar com ela".
Como diz, "o vírus não vai desaparecer. Pelo contrário, já percebemos que vamos ter de lidar com ele durante mais tempo do que imaginávamos. Portanto, não podemos desleixar os comportamentos". Como médica sabe isso muito bem, "temos doentes que entram no hospital pela urgência ou pela consulta por qualquer outro motivo que não a covid, mas quando lhes fazemos os testes de rastreio são positivos. São os assintomáticos. Não podemos baixar a guarda", afirma mais uma vez.
Os locais de maior risco de contágio estão identificados: transportes públicos, restaurantes, escolas, empresas, mas não são iguais em todo o país. Portugal é assimétrico, basta olharmos para os números de infeção. As estratégias e os planos de contingência não podem ser todos iguais, como em tudo há que priorizar, mas temos de perceber que os assintomáticos são um verdadeiro problema" e de igual forma em qualquer lugar.
A médica do Hospital Beatriz Ângelo, que nesta semana foi considerada uma das unidades com maior pressão em relação à covid-19, diz que é preciso perceber que ainda "estamos na fase de contaminação e que é preciso identificar e travar cadeias de transmissão, mas só o conseguimos fazer se soubermos que aquela pessoa, que aquele doente é positivo".
Daí referir, mais uma vez, a necessidade do aumento de capacidade de testagem e de uma estratégia nacional para identificar estes doentes. "Sabemos que se essa pessoa for a um supermercado ou se estiver dentro de uma sala de aulas e se não usar corretamente a máscara ou se não mantiver a distância social vai transmitir o vírus."
Por agora, e se é que já se pode falar numa segunda vaga, a realidade mostra que o perfil de infetados está a mudar. "Pode dizer-se que nesta segunda vaga a pandemia está a atingir uma faixa etária mais baixa, dos 29 aos 50 anos. É aqui que temos registado mais casos, mas o problema dos idosos existe sempre, são doentes mais frágeis, que desenvolvem sintomas mais graves, veja-se os surtos nos lares, e cujo desfecho da doença pode ser fatal."
No entanto, ressalva, é preciso perceber que no grupo dos idosos também há doentes assintomáticos. "Há idosos que estão positivos à doença e cujo único sintoma que têm é apenas alguma prostração, que pode ser confundida com outras situações. Há que estar atento e saber identificar tais situações", alerta.
Destaquedestaque "Não sou apologista de alarmismos, nem de pânicos, temos de aprender a lidar com o vírus, e há que desmistificar preconceitos ou vergonhas: o usar máscara é um sinal de respeito por mim e pela vida do outro".
Carla Araújo não duvida de que os doentes assintomáticos são o verdadeiro desafio para travar a contaminação e as cadeias de transmissão. "Não têm sintomas, circulam na comunidade." Por isso, "a mensagem a passar, e faço-o repetidamente, é que todos temos de ser agentes de saúde", acrescentando: "Não sou apologista de alarmismos, nem de pânicos, temos de aprender a lidar com o vírus, e há que desmistificar preconceitos ou vergonhas: o usar máscara é um sinal de respeito por mim e pela vida do outro. É importantíssimo que as pessoas cumpram as medidas de proteção. Esta é a única barreira ou ferramenta eficaz para evitar um aumento do número de casos."
A especialista em medicina interna é autora, juntamente com a sua equipa, de um manual para se saber viver com a covid, no qual explica desde como se deve lidar a doença até aos sintomas, ao teste positivo, quando se quer ir a um restaurante, etc.
Nesta rentrée, como diz, "todos lidamos com a incerteza. O vírus não vai desaparecer". Daí a importância de interiorizarmos que "todos temos de ser agentes de saúde pública, de forma positiva, e não viver como se o vírus não existisse".