"A probabilidade de uma guerra de atrição na Ucrânia é muito grande"

Coordenador do Mestrado em Direito e Segurança da Nova School of Law e especialista em relações internacionais, Felipe Pathé Duarte analisa o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e o impacto que este tem não só nas outras antigas repúblicas soviéticas, mas também numa ordem global ainda dominada pelos Estados Unidos.
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Esteve recentemente no Azerbaijão. Uma intervenção russa na Ucrânia assusta as outras ex-repúblicas soviéticas mesmo quando têm relação cordial com Moscovo, como é o caso?
Assusta. Mas cada caso é um caso. Por exemplo, a interdependência cazaque, arménia, bielorrussa ou quirguize com Moscovo é significativamente maior do que a azeri ou a georgiana. Basta ver quem integra a União Económica Eurasiática. Ou seja, em caso de sucesso na Ucrânia, a probabilidade de Moscovo impor militarmente uma "boa vizinhança" a Estados que possam participar em processos de integração alternativos ao Kremlin torna-se muito maior. Resta-lhes, a essas ex-repúblicas soviéticas, um profundo pragmatismo na sua política externa.

Qual será o objetivo final desta ofensiva de Putin na Ucrânia?
A jusante, será garantir a neutralidade da Ucrânia. Por neutralidade leia-se ingerência sobre a política externa de Kiev, limitando a integração em esferas que não as do Kremlin. A montante, cumprir um desígnio identitário. Isto é, a Rússia como centro de uma comunidade civilizacional (o Russkiy Mir). E isso assenta em quatro eixos: Moscovo como garante e defensor dos direitos dos povos de língua russa; haver boas relações de vizinhança como pré-condição do reconhecimento de independência e integridade territorial dos estados pós-soviéticos; perceber o interesse nacional acima da lei; e considerar o uso da força como forma legítima de defesa de compatriotas.

Alguma hipótese, mesmo que mínima, de a resistência ucraniana ser suficiente para levar a uma retirada russa?
Pode haver. Mas levará tempo. Demasiado para os ucranianos. Vai ser muito penoso. A probabilidade de uma guerra de atrição é muito grande, creio. Seja pela motivação de libertação do invasor seja pelo apoio indireto da NATO. E isso pode ser suficiente para a retirada. A ocupação pode tornar-se excessivamente dispendiosa para a Rússia. Mas, neste cenário, a retirada traduzir-se-á na destruição máxima de infraestruturas e na morte de milhares de ucranianos para impedir o regresso ao estágio anterior.

É a ameaça de uma guerra nuclear a grande razão que impede a NATO de apoiar militarmente a Ucrânia?
Em última instância, sim. Até ao momento, a função do nuclear tem sido dissuasória. Mas o ponto de partida é a consciência político-diplomática de que se entraria numa escalada bélica sem precedentes. Além de que a NATO é uma aliança defensiva. E esperemos que o artigo 5.º não seja invocado. Mas é improvável que o conflito militar se estenda além da Ucrânia, a Rússia não está interessada numa guerra regional.

Putin e Biden estão a corresponder às expectativas à medida que a guerra avança?
Sobre Putin, não sei qual o nível de popularidade interna neste momento. Mas creio que o impacto das sanções, o desgaste do atoleiro de uma guerra de atrição e o número de mortes vão abrir brechas nos alicerces do regime, deslegitimando o seu exercício de poder. Ainda que se passe a mensagem de vitimização de uma identidade. Sobre Biden, parece-me que está a agir com a prudência de quem está a lidar com alguém cuja motivação excede a racionalidade estratégica. Tendo ainda a perceção de que, neste momento, a divisão do Ocidente será a vitoria do Kremlin.

Como tem visto a guerra de desinformação em redor da guerra no terreno?
É uma tática que tem sido usada de parte a parte. Mas, no caso russo, de uma forma muito eficiente. Afetar a perceção do inimigo através do campo social, político, religioso ou cultural é fundamental na chamada "guerra não-linear" russa. É uma progressiva invasão da sociedade do oponente. O objetivo é alcançar um ambiente de polarização social permanente e o conflito dentro do Estado oponente, para criar vazio de poder. Falamos de comunicação estratégica através de hacking, agências noticiosas estatais como a RT, leaks, fake news, que é usada em simultâneo a meios militares convencionais e não convencionais.

leonidio.ferreira@dn.pt

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