Organizado, crítico, atento, sabe motivar as suas equipas, líder, discreto, detesta holofotes mediáticos, ambicioso, benfiquista, invisível na internet. São algumas das características apontadas a este homem que, a partir de segunda-feira, dia 7, será o próximo procurador distrital de Lisboa, depois de cinco anos à frente do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), departamento que liderou grandes investigações como a Operação Marquês, o processo Fizz ou o caso vistos gold - este último que acabou por resultar na condenação de apenas quatro dos 21 arguidos e a penas suspensas e multas..Filho de um cabo da GNR, Amadeu Francisco Ribeiro Guerra tem 63 anos, é natural de Tábua e licenciado em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa. Casado, tem uma filha, e pouco se sabe sobre os seus gostos pessoais, ou não fosse a discrição uma das características mais notadas na personalidade de Amadeu Guerra. Sabe-se, no entanto, que é um benfiquista "pouco expansivo", metódico, exigente e organizado no trabalho, mas que cede a ligar a televisão no gabinete durante os jogos da seleção..É o segundo de cinco irmãos. Todos tiraram cursos superiores. Apesar de ter nascido no centro do país, veio estudar para Lisboa ainda adolescente: fez o 6.º e o 7.º anos no Liceu Camões e o escritor Vergílio Ferreira chegou a dar-lhe aulas de latim. Ingressou depois no curso de Direito na Clássica. E ficam por aqui as informações biográficas do procurador.."Vai fazer falta".Neste princípio de 2019 os seus colaboradores no DCIAP não irão receber o habitual e-mail em que costuma perguntar - no início de cada ano - em que condições se encontram os processos. "Vai fazer falta", pelo menos é esta a opinião do presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que confessou ao DN estar preocupado com o nome que lhe irá suceder. Sobre a carreira de Amadeu Guerra, foram só elogios.."Em todos os sítios por onde passou fez um excelente trabalho: deixa as pessoas motivadas e obtém bons resultados. Tenho pena que não possa continuar no DCIAP mais algum tempo, tendo em conta o excelente trabalho que desempenhou", justificou o magistrado..É esta a perceção geral entre procuradores e polícias com quem o DN falou, mas que pediram anonimato por não estarem autorizados a falar pelas respetivas hierarquias. "O Dr. Amadeu Guerra é um líder nato. Grande capacidade de analisar e compreender a realidade e de tentar encontrar as soluções para os problemas. Sensível aos problemas que afetam as suas equipas, as quais se sentem apoiadas pela hierarquia. Dotado de espírito crítico, toma decisões baseadas em sólidos valores de que não abdica. Reservado, não gosta de protagonismos. Magistrado de excelência que preza mais as ações e os resultados do que discursos de intenção. Homem que preza e apoia a família", sintetiza um procurador que lhe é próximo..Desgaste e pressão mediática.Na mesma linha, um procurador-geral adjunto destaca a sua "enorme capacidade de trabalho" - "onde mete a mão faz a diferença". Entende que será um "excelente dirigente na PGDL, nos antípodas da antecessora Maria José Morgado, que gosta de aparecer nos media". Este magistrado compreende que Amadeu Guerra se tivesse "sentido desgastado no DCIAP, pois a pressão mediática é demasiada e não deve ter conseguido atingir o seu objetivo de serenar o departamento e manter reserva das investigações"..Destaca o seu "profundo conhecimento das questões relacionadas com a proteção de dados pessoais" (Amadeu Guerra pertenceu à CNPD entre 1994 e 2006 e acumulou, a partir de 2001, com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos) ao ponto de se ter tornado "quase fanático" na "preservação da sua vida na internet"..O DN confirmou que nem o currículo tem na internet. "É invisível na rede", assinala este procurador que conhece Amadeu Guerra há mais de 20 anos..Nomeação "não foi um golpe".O magistrado foi escolhido pelo Conselho Superior do Ministério Público para substituir Maria José Morgado à frente da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa com 12 votos a favor, de magistrados do MP e de não magistrados, e sete votos contra. O nome do diretor do DCIAP foi avançado por elementos do Conselho contra a vontade da procuradora-geral da República que pretendia que o cargo fosse ocupado por outra magistrada..A sua escolha para a PGDL constituiu a primeira derrota no Ministério Público para Lucília Gago, que tomou posse há pouco mais de dois meses. Se o próprio tinha esse objetivo, nenhuma das pessoas que trabalham ou trabalharam com Amadeu Guerra - entre fonte policiais e judiciais - com que o DN falou, acreditam que se tratou de um golpe para afrontar Gago..Há, no entanto, uma dúvida sobre a qual poucos se atrevem, sequer, a especular. De onde surgiu a ideia de levar este procurador para a PGDL? Terá mesmo nascido de um almoço na zona de Aveiro, dias antes da votação, no qual participaram procuradores e ex-dirigente do MP influentes, entre os quais um que pertence ao CSMP (Conselho Superior do Ministério Público), como corre em alguns círculos?.Como convenceram Amadeu Guerra não se sabe. Há muito que o magistrado não escondia que queria sair do DCIAP - a pressão mediática das grandes investigações causava algum sofrimento e incómodo mesmo a alguém que gosta de discrição e é reservado por natureza..Segundo revelou a própria Lucília Gago na sua declaração no dia da votação do CSMP, o próprio lhe tinha manifestado essa vontade quando conversaram sobre a renovação do seu mandato à frente do DCIAP. "Tal proposta pressuporia, contudo, uma vontade que dele não logrei obter - pela invocação de um estado de desgaste e fadiga -, pese embora os sucessivos pedidos que lhe formulei nesse sentido desde que assumi o cargo de procuradora-geral da República", escreveu..Adiantou ainda que, "em data recente", Amadeu Guerra lhe tinha apresentado "por escrito a sua pretensão de exercer funções de coordenação no Supremo Tribunal de Justiça", tendo dado a sua garantia de que submeteria essa proposta ao CSMP, logo que terminasse a sua comissão de serviço no DCIAP, em março próximo..Assinalou a sua oposição à transferência para a PGDL nesta altura por entender que seria uma "abrupta cessação da comissão de serviço" considerando os elevados constrangimentos que da mesma decorreriam, tendo em conta as relevantes e complexas investigações criminais em curso nesse departamento - algumas numa fase crucial e/ou de ultimação -, sob pena de grave comprometimento do superior trabalho de acompanhamento e direção"..Por isso, fica a questão: qual foi o papel de Amadeu Guerra nesta derrota de Lucília Gago? Este e outros esclarecimentos ficaram por concretizar, pois Amadeu Guerra recusou falar ao DN..A privacidade como estandarte.Considerado o "braço armado" da ex-procuradora Joana Marques Vidal no combate à corrupção, Guerra deixa o DCIAP ainda sem serem conhecidos resultados de grandes investigações relacionadas com a criminalidade económico-financeira - só a sentença dos vistos gold foi lida nesta sexta-feira. Faltam processos emblemáticos, o principal dos quais a Operação Marquês, mas também as investigações ao ex-império BES, às PPP, à PT/Altice, à EDP, à CGD, entre outras..Nas poucas entrevistas que concedeu à comunicação social falou de trabalho e de forma sucinta. "O trabalho dos últimos seis anos foi muito extenuante, com investigações muito complexas e com elevada exposição pública, situação que exige uma dedicação constante, muitas vezes com prejuízo pessoal e familiar para todos os magistrados do DCIAP. Procurámos responder às expectativas e à pressão do cumprimento dos prazos que, no dia-a-dia, nos foi colocada", desabafava à Sábado, em outubro de 2018..Em outubro de 2000 apareceu nas notícias devido à queixa-crime que apresentou, juntamente com o então juiz desembargador Varges Gomes - falecido em novembro de 2018 - na Procuradoria-Geral da República. O visado era o presidente da Comissão Nacional de Proteção de Dados, acusado por Amadeu Guerra e Varges de acesso indevido a dados pessoais e violação de sigilo profissional. Segundo os magistrados, João Labescat teria enviado para a Polícia de Segurança Pública moradas incluídas na base de dados do recenseamento eleitoral..Magistrado vai estar de olho nos espiões.Amadeu Guerra escreveu várias obras sobre proteção de dados, como A Privacidade no Local de Trabalho. O magistrado acabaria por demitir-se em março de 2006 da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Em causa, a privacidade que sempre defendia: durante 15 dias, no início do ano de 2005, as chamadas no seu local de trabalho tinham sido controladas..Esta sua especialização terá sido um dos principais motivos para ter sido nomeado, em novembro passado, para integrar a Comissão de Fiscalização de Dados do Sistema de Informações da República Portuguesa..Trata-se de um grupo de magistrados que vigiam as bases de dados das secretas com o objetivo de garantir que não violam a lei. Durante a sua liderança, o DCIAP destacou-se também nas investigações à criminalidade organizada e os seus procuradores desta área conseguiram uma condenação num processo inédito em Portugal: a do ex-espião do SIS condenado por vender segredos de Estado às secretas russas.