Uma comédia de Natal romântica ao som de George Michael

O título não engana. Está aí a típica produção da quadra natalícia, cheia de luzinhas, acessórios festivos e com Emilia Clarke vestida de elfo... A inspiração não faz parte do embrulho, mas a banda sonora, essa aquece a alma.
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Foi numa tarde de 1984, enquanto George Michael e Andrew Ridgeley viam uma partida de futebol na televisão, que surgiu o primeiro lampejo do tema musical Last Christmas. Assim, sem mais nem menos. O relato desse instante iluminado, que aconteceu em casa dos pais de Michael, vem no livro de memórias Wham! George Michael and Me, lançado neste ano e escrito pelo próprio Ridgeley, que conta como o seu parceiro de banda - grande apreciador da época natalícia -, tomado por uma epifania, correu a fazer o esboço de um refrão e versos no teclado que tinha no andar de cima da casa.

Esta veio a ser a grande música de Natal da sua geração, e não só, no Reino Unido e na Irlanda, e tornou-se mesmo um dos temas mais populares de sempre, ao lado da inevitável animação de shopping dos nossos dias All I Want for Christmas Is You, de Mariah Carey, numa lista que inclui, entre outros, Fairytale of New York, dos The Pogues, e, numa sonoridade mais clássica, The Christmas Song, de Nat King Cole. De resto, também o cinema veiculou temas natalícios que ficaram no ouvido coletivo ao longo do tempo, como o White Christmas cantado por Bing Crosby no filme homónimo de Michael Curtiz, ou Have Your Self a Mery Little Christmas, em Não Há como a Nossa Casa, de Vincente Minnelli, com o sortilégio da voz de Judy Garland.

Claro que Last Christmas, o filme assinado por Paul Feig que chega agora às salas, não joga no mesmo campeonato dessas primorosas obras de Hollywood, mas não será isso que importa desde já assinalar. Na sua génese está uma ideia muito concreta: pegar na aura da canção (e não apenas desta) dos Wham!/George Michael para prestar uma homenagem ao cantor, que, por tremenda ironia do destino, morreu exatamente no dia 25 de dezembro, em 2016. Até por aí a música ganha um sentido particular, nas palavras do compositor do filme, Theodore Shapiro, com "a justaposição perfeita de melancolia e esperança".

É então com uma pitada de melancolia e outra de esperança que Last Christmas procura a sua fórmula de comédia romântica de Natal, através de um argumento de Emma Thompson, por vezes às aranhas entre a fantasia de emoção da época e o termómetro social. No centro do quadro bem enfeitado vamos descobrir Kate/Emilia Clarke, fora do registo de A Guerra dos Tronos, a marcar pontos numa postura divertida e caótica. Constantemente vestida de elfo, ela é fã de George Michael e alimenta o desejo de se tornar cantora, percorrendo audições frustrantes que lhe impossibilitam mostrar a sua estrelinha. Trabalha numa loja londrina de artigos natalícios, gerida por uma chinesa (Michelle Yeoh), e passa as noites nos copos e a carregar uma mala de viagem de casa em casa, para evitar dormir no seu próprio lar... A razão: problemas familiares misturados com uma questão de saúde.

A mãe, interpretada por Emma Thompson (a sublinhar um bocado a caricatura), é um caso psicológico complicado, a que se junta o facto de esta ser uma família de imigrantes da antiga Jugoslávia a observar à sua volta os primeiros sintomas da ansiedade social do Brexit em Londres. E para ter um painel disfuncional completo, a irmã de Kate também não convive bem com a atmosfera lá de casa, escondendo dos pais a sua estável relação lésbica.

No meio desta crise de afetos surge um charmoso homem (Henry Golding, de Asiáticos Doidos e Ricos), como que caído do céu, e, na verdade, de olhos postos no céu, a vaguear à frente da loja de Kate. Eles conhecem-se da forma mais desajeitada possível e, com a passagem dos dias, entre encontros esporádicos, a proximidade de ambos vai tendo um reflexo positivo nas relações da protagonista e na sua disponibilidade para com os outros. Contudo, poucos avanços físicos se dão entre os dois, desde logo porque nem contacto telefónico ele tem. Há um segredo neste personagem que, na parte final, concentra o efeito das luzinhas e o espírito natalício...

Sendo realizado por Paul Feig, que tem vindo a definir um território interessante de comédia no feminino, Last Christmas está muito longe de encontrar o engenho e humor, por exemplo, do seu A Melhor Despedida de Solteira (2011). Há aqui uma cedência óbvia aos clichés deste tipo de filmes-cartão-postal-com-mensagem-calorosa-e-música-ao-abrir que não deixa a balbúrdia e comédia física da sua protagonista ganhar vida própria e chegar àquele ponto ótimo de uma Meg Ryan - só para elevar a fasquia. E, no entanto, ouvir George Michael como permanente banda sonora traz um certo conforto, uma nostalgia inusitada que combina com o ambiente cosmopolita e a tonalidade emocional. Ouve-se inclusivamente um tema póstumo, This Is How (We Want You to Get High), que foi gravado no ano anterior à morte deste icónico nome da música pop, recorde-se, vencedor de dois Grammy e com mais de 115 milhões de álbuns vendidos ao longo da carreira.

** Com interesse

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