A 25 de abril de 1719 - ou seja, há pouco mais de 300 anos -, o editor londrino William Taylor publicou um livro com um título bem longo: A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé, de York, Marinheiro, abaixo do qual se poderia ler um pós-título ainda mais longo: "Que viveu vinte e oito anos sozinho numa ilha desabitada na costa da América, perto da foz do grande rio Orinoco; tendo chegado a terra após um naufrágio em que todos os homens morreram, exceto ele próprio. Dando conta de como foi por fim salvo por piratas." E no fundo da página ainda mais uma informação: "Escrito por ele próprio.".Não se tratava, porém, de mais um relato de um explorador, como havia tantos naquela altura, mas de uma autobiografia ficcionada, e o seu autor era Daniel Defoe. A confusão inicial não impediu o sucesso imediato do livro - considerado o primeiro romance moderno em língua inglesa. Logo nesse ano teve quatro edições. E o autor tratou rapidamente de escrever duas sequelas..Atualmente, Robinson Crusoé é aquilo a que costumamos chamar um clássico. Toda a gente, mesmo os que nunca leram o livro, conhece a história daquele homem que sobreviveu sozinho numa ilha. É uma obra estudada nas escolas, embora nem sempre na sua versão original e completa - como acontece em Portugal, onde Robinson Crusoé integra o Plano Nacional de Leitura e é aconselhado ao sexto ano de escolaridade. O romance não só deu origem a uma série de adaptações (banda desenhada, teatro, cinema, espetáculos) como fundou um género literário próprio, "robinsonada" - histórias de indivíduos ou grupos que sobrevivem isolados em ambientes hostis, seja numa ilha deserta, (como em A Ilha Misteriosa, de Júlio Verne, de 1874; ou em A Ilha do Doutor Moreau, de H.G. Wells, de 1896) ou no espaço (como no filme de 2015, Perdido em Marte, de Ridley Scott, com Matt Damon)..Mas, 300 anos depois, há quem lembre um facto muitas vezes esquecido: é que Robinson Crusoé não estava sozinho. A partir do 25.º ano na ilha, passa a conta com a companhia de outro homem, que batiza como Sexta-Feira. Robinson refere-se a ele como "o meu selvagem". Em contrapartida, Sexta-feira dirige-se a ele como "senhor". Personagem relegada para segundo plano, Sexta-Feira é, no entanto, essencial. Sem ele, Robinson Crusoé seria apenas mais uma história de um náufrago, igual a tantas outras. Com ele, Robinson Crusoé torna-se uma metáfora do colonialismo..O verdadeiro Robinson.Antes de ser um autor popular, Daniel Defoe (1659-1731) era um homem de negócios de pouco sucesso e um agitador social, que esteve mais do que uma vez na prisão. Era também um escritor de segunda categoria, que escrevia sobre qualquer coisa desde que lhe pagassem. Só depois de dedicar-se à escrita e aprimorar o estilo em Memórias de Um Cavaleiro (1720), A Vida Amorosa de Moll Flanders (1722) e outros títulos..Para escrever Robinson Crusoé, ter-se-á inspirado na história verdadeira de Alexander Selkirk, um navegador escocês que, em 1704, enquanto participava numa das viagens do explorador britânico William Dampier, após desavenças com o capitão, pediu para ficar na na ilha de Más a Tierra (que, em 1966, foi batizada como Ilha de Robinson Crusoé), uma das que compõem o arquipélago Juan Fernández (perto do Chile). Foi deixado com pouco mais do que uma espingarda, um machado, uma faca, um tacho, uma Bíblia e algumas roupas. E sobreviveu sozinho na ilha durante quatro anos antes de ser resgatado pelo corsário Woodes Rogers..Esta ilha é o meu reino.Robinson Crusoé era um aventureiro em busca de fortuna. Tinha comprado uma plantação de açúcar no Brasil e tornara-se um próspero colono. Quando acontece o naufrágio, ele está a participar numa expedição que tem como principal objetivo transportar escravos de África para o continente americano. Uma tempestade terrível não só destruiu o navio como o deixou completamente sozinho numa ilha. A Ilha do Desespero, chama-lhe ele..Pragmático, Crusoé começa por recuperar do navio encalhado junto à costa tudo o que é possível recuperar, construindo uma jangada. Depois, escolhe um local para se instalar na ilha e faz tudo o que tem de fazer para domesticar o ambiente em que se encontra, transformando-o num "lar longe de casa". Constrói uma cabana, caça, pesca, cria cabras, planta vegetais, faz as sua roupa e até aprende a fazer objetos em olaria. Faz um calendário para marcar os dias que ali passa e tem uma obsessão com a contabilidade - anotando tudo o que produz, o que consome, o que se estraga. Lê a Bíblia e aceita o seu destino como uma provação a que Deus o sujeita..Autointitula-se governador e a ilha é o seu reino. Ali ele é dono e senhor, porém ainda sem súbditos. Anos depois, Robinson encontra um grupo de selvagens, canibais que se preparam para comer um prisioneiro. Crusoé ajuda-o a fugir e tornam-se companheiros: dá-lhe o nome de Sexta-Feira, ensina-lhe inglês e inicia-o na fé cristã. Vivem assim até ao dia em que um barco comandado por piratas aparece na ilha. Robinson Crusoé ajuda o comandante a recuperar o controlo do navio e regressa com ele a Inglaterra, levando consigo Sexta-Feira..O herói do colonialismo.O herói desta história tinha tudo para cativar a sociedade britânica de uma época que exalta o indivíduo que consegue prosperar por si só, devido ao seu trabalho. De acordo com a The Cornhill Magazine de 1868, Crusoé representava "o carácter vigoroso e perspicaz do inglês investido de seus próprios recursos". Robinson torna-se dono de uma ilha que governa de maneira absoluta. Não precisa de obedecer a ninguém nem está sujeito a qualquer poder, é ele que estabelece os padrões que devem ser cumpridos. Não se trata de regressar à natureza, trata-se, sim, de reproduzir a civilização para aquela ilha do Pacífico..Rapidamente Robinson Crusoé torna-se o exemplo do colonizador perfeito. Como disse James Joyce, em 1912, ele é o protótipo do colono britânico: "Todo o espírito anglo-saxão está em Crusoé: a independência viril; a crueldade inconsciente; a persistência; a inteligência lenta, mas eficiente; a apatia sexual; a religiosidade prática e equilibrada; a taciturnidade calculista." E, da mesma forma, Sexta-Feira é o símbolo de todos os povos subjugados..Racista e imperialista, Robinson Crusoé mostra um desprezo enorme para com todos os outros povos - seja os negros que ele antes traficava, seja a tribo indígena que ele encontra. São selvagens porque não têm os mesmos costumes que ele, têm uma língua e uma religião diferentes. E o encontro com os "selvagens" parte sempre de uma superioridade moral. Não há tentativa de encontro ou de diálogo. Quando ele salva Sexta-Feira, a relação é automaticamente de mestre e servo. É verdade que se tornam companheiros, mas a relação é profundamente assimétrica. Sexta-Feira não se revolta, pelo contrário, admira o seu mestre, apoia-o e protege-o. Porque é que ele age assim, perguntamo-nos hoje?.Na cabeça de Robinson Crusoé (na cabeça de Daniel Defoe e de qualquer outro homem do século XVIII) não podia ser de outro modo. Mas nas nossas cabeças as coisas já não são assim. Trezentos anos depois não podemos ler Robinson Crusoé só como a história do herói que sobrevive ao naufrágio..Como diz a protagonista de Foe, livro que o sul-africano J.M. Coetzee escreveu em 1986, atualizando o mito de Robinson Crusoé: "A verdadeira história não será ouvida até conseguirmos dar voz a Sexta-Feira.