Não há pior mal para um escritor do que ficar marcado por uma quase primeira obra espetacular e a partir desse momento a carreira girar principalmente em torno desse título. Agustina Bessa-Luís, que morreu após uma longa ausência da vida pública por doença que a retirou do mundo, foi uma dessas situações. Causa: o romance ASibila..Publicado quase no início da sua vida literária, o romance A Sibila serviu sempre de bilhete de identidade a uma autora que alguns leram no tempo de publicação, espantados com aquele fulgor inspirativo pouco habitual na literatura produzida em tempo salazarento; outros foram lendo entre as novidades anuais que a escritora nunca deixou de lançar até ao momento de se retirar - mesmo aí havia obras no baú, e ontem era a palavra-chave de uma obra gigante quando os que se despediam de Agustina Bessa-Luís necessitavam de um exemplo..Entre alguns portugueses que olharam para a obra de Agustina Bessa-Luís com maior abrangência esteve o cineasta Manoel de Oliveira, que a retirou para fora desse gueto ao filmar sete trabalhos da escritora e ter excluído ASibila da lista de personagens, como as interpretadas por Catherine Deneuve ou John Malkovich, entre muitos outros..Agustina Bessa-Luís morreu aos 96 anos, a meia centena de quilómetros da Vila Meã que a viu nascer a 15 de outubro de 1922, depois de ter assistido e participado em muitos acontecimentos das últimas décadas da sociedade portuguesa. Tal como acontecia nos seus romances, em que narrava grande parte de um século da história do país, 1850 a 1950, a sua vida tornou-se um arquivo de factos que lhe proporcionaram muitas histórias da História..Era uma obra bem diferente da com o título da primeira, de 1948, a novela Mundo Fechado, porque, apesar de muito do seu mundo se situar em grande parte no cenário do Douro e do Minho, abriu-o futuramente a narrativas fascinantes como seria As Fúrias (1977), a contos em A Brusca (1971), a romances históricos como A Monja de Lisboa sobre Maria da Visitação (1985), a biografias como a de Santo António (1979) ou Marquês de Pombal (1981), a ensaios como os de Dostoiévski e a peste emocional (1981), ou Camilo e as Circunstâncias (1981), a várias peças enquanto dramaturga como Garrett..O estilo de Agustina pertencia, segundo classificava o pensador Eduardo Lourenço, à corrente neorromântica, em muito influenciado pela obra de Camilo Castelo Branco. Mas a sua vida também continha inúmeros episódios que rivalizavam com as invenções daquele escritor, afinal o seu pai deixara a família de lavradores e com 12 anos emigrara para o Brasil. Aí fez fortuna, tendo regressado e iniciado uma vida profissional nas áreas do espetáculo e do jogo, que também inspiraram a escritora. Por seu lado, a mãe descendia de uma espanhola de Zamora. Como os pais mudavam de residência frequentemente, Agustina encontrou a paz na infância e na adolescência nas férias que passava na região do Douro, na casa do avô, que tinha uma boa biblioteca. Grande leitora dos clássicos franceses e ingleses, rapidamente o romance a seduz, sendo que se dedica às experiências na escrita ainda muito nova. Designadamente com dois romances em que usa o pseudónimo de Maria Ordoñes, intitulados Ídolo de Barro e Deuses de Barro..Reações.Ao saber-se ontem da morte da escritora a reação foi geral. Desde os portugueses que leram os seus romances na escola como leitura obrigatória, os que a continuaram a descobrir e uma nova geração de leitores. Mas foi o Presidente da República e a ministra da Cultura quem apresentaram primeiro publicamente os pêsames. Marcelo Rebelo de Sousa salientou que "há personalidades que nenhumas palavras podem descrever no que foram e no que significaram para todos nós". A escritora destacou-se, disse, "como criadora, como cidadã, como retrato da força telúrica de um povo e da profunda ligação" entre as raízes dos portugueses e "os tempos presentes e vindouros". Na nota, Marcelo Rebelo de Sousa "curva-se perante o seu génio"..Para a ministra Graça Fonseca, Agustina Bessa-Luís "ocupa um lugar sem par na narrativa portuguesa contemporânea, sempre preocupada com a condição social e cultural em Portugal" e é uma das "grandes romancistas e mestre de um dos mais originais processos criativos da ficção portuguesa". Acrescenta: "Autora de uma obra tantas vezes virada para o passado mas sempre contemporânea, sempre presente", Agustina Bessa-Luís inaugurou "um novo espaço ficcional, à imagem de outras grandes mulheres e que, juntamente com ela, revolucionaram radicalmente a prosa em português, como Maria Velho da Costa ou Maria Gabriela Llansol"..A escritora Lídia Jorge também se pronunciou: "Deixa, do ponto de vista da ficção, uma das obras mais importantes do século XX e, como escritora, sem dúvida alguma, a mais importante. É absolutamente extraordinária, multifacetada e que toca praticamente todos os géneros", salientando que "onde ela brilha com fulgor único é na ficção"..Para o escritor Mário de Carvalho, Agustina Bessa-Luís era uma "escritora extraordinária" e "uma das grandes" do século XX, a quem já só falta superar um desafio, o da imortalidade". Acrescenta: "Ganhou com ASibila o reconhecimento praticamente unânime de todos os seus confrades, porque, no meio literário, havia um consenso generalizado sobre a grande qualidade literária de Agustina Bessa-Luís.".Políticos dos vários partidos pronunciaram-se também, tal como o primeiro-ministro António Costa, entre dezenas de manifestações de pesar..Mudar de editora.Tão diferente da maioria dos autores nacionais, também o foi no ritmo de publicação, pois era raro o ano em que não editava um ou mais livros. No entanto, a relação com a sua editora de sempre terminou recentemente. Após mais de seis décadas a publicar a obra de Agustina, a editora Guimarães foi substituída pela Relógio d'Água, que tem vindo a relançar com grande periodicidade a obra, acrescida de prefácios de vários admiradores confessos da autora. Para a filha, Mónica Baldaque, essa interrupção editorial era necessária: "Temos tido acesso a trabalhos muito interessantes de gente muito nova, seja das universidades, seja de cursos fora da literatura, que leem e estudam Agustina de uma forma muito moderna e com uma perceção do que foi a sua escrita continuadamente.".A longa obra faz a escritora receber a maioria dos importantes prémios literários nacionais: Delfim Guimarães foi o primeiro, em 1953, e o mais recente foi o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2001. Pelo meio ficaram treze distinções..Além da literatura, a autora teve outras "ocupações": pertenceu ao conselho diretivo da Comunidade Europeia de Escritores em 1961 e 1962, foi diretora do jornal O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987, responsável pelo Teatro Nacional D. Maria II entre 1990 e 1993, e membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, além de pertencer às academias de Ciências, Artes e Letras de Paris, da Brasileira de Letras e das Ciências de Lisboa..Como que num coroar da sua carreira, em 2004 foi-lhe concedido o Prémio Camões. Justificação: "O júri tomou em consideração que a obra de Agustina Bessa-Luís traduz a criação de um universo romanesco de riqueza incomparável que é servido pelas suas excecionais qualidades de prosadora, assim contribuindo para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum.".Divulgação do espólio.A escritora estava desde julho de 2006 ausente da vida pública devido a questões de saúde. Antes, publicara o seu último livro: A Ronda da Noite. Mas a sua obra não estava esquecida e além da reedição em curso, também a família se preocupou em investigar o seu espólio. É o caso da edição de três espessos volumes que reúnem em 2795 páginas várias centenas de textos dispersos de Agustina Bessa-Luís e que a Fundação Calouste Gulbenkian apresentou em outubro de 2017..Esta recolha e organização da neta da autora, Lourença Baldaque, Ensaios e Artigos (1951-2007) permite a radiografia completa do seu pensamento sobre quase tudo, sendo muito curiosa a recordação das opiniões políticas no pós-25 de Abril, bem como os comentários sobre alguns ícones da música popular, Madonna e Bob Dylan (parcialmente reproduzido abaixo)..A rudeza ou sedução nos comentários sobre os seus pares escritores geram mais polémica, já que Agustina não se proíbe de dizer o que realmente pensa sobre a literatura..Leia algumas partes no A a Z literário que se segue:.Agustina: "Decorre a apresentação do livro de Cavaco Silva no salão nobre [do Centro Cultural de Belém], e os carros pretos dos ministérios sobem a rampa com uma lentidão consular. (...) Freitas do Amaral acaba também de escrever um livro e é saudado triunfalmente. Eu escrevi cinquenta e não me prestam tanta atenção. Pelo que fico, por um momento, desencorajada." (1994).Bob Dylan: "A multidão serve-se dos mitos no grande banquete frio de ideias feitas. A ideia romântica e a ideia triunfal, a ideia extradoméstica. Mas os anos 60 passaram. No seu rochedo sobre o mar, Bob Dylan está só. (...) Um tipo domesticado, como todos os velhos dizem. O seu lado espiritual deixa-o na sombra. O seu motivo cavalheiresco torna-o solitário." (1987).Camilo Castelo Branco: "Um homem dotado para a vida é um homem angustiado; ele sabe que quanto mais o seu génio progride e se expande, mais cria para si próprio condições de invulgar desastre. (1964) " Tanto temia Camilo o punho da sociedade para quem escrevia e que, afinal, não era persistente na crueldade nem obstinada na estupidez. (...) Na verdade, não sei que lhe deu a Camilo para escrever este romance (A Enjeitada) a não ser o desprezo pela sua atividade face a um público que lhe exigia emoções calculadas, e para quem o melodramático se confunde com o sério." (1980).Dostoiévski: "Não há melhor maneira de perceber a intimidade de Dostoiévski senão fazendo da sua obra uma Bíblia, pegando nela à boa maneira russa e deixando que se abram as folhas do destino, ao acaso, no encontro desse romântico calor e realidade profunda que foram seus dons. Como eu faço agora, detendo-me num parágrafo de Niétochka, um dos seus primeiros ensaios da longa novela, escrita na prisão e que tem por inteiro o estremecimento da aspiração frustrada do amor humano." (1981).Êxito: "O êxito dos romances de Lawrence Durrell pode corresponder a uma fraqueza da personalidade, é natural que corresponda a uma fraqueza da personalidade de todos nós." (1965).Fellini: "O que Fellini chama inocência é a libertação do aborrecimento. É o riso, o prazer, a espontaneidade inglória mas eficaz, e coisas assim. (...) Mas não é inocência. A inocência é o insulto que o amor aprova. E, como o amor, é rara. O que Fellini chama inocência é a libertação do aborrecimento. É o riso, o prazer, a espontaneidade." (1973).Goethe: "O 'eterno feminino', com que Goethe termina o segundo Fausto, é um aditamento à insuficiência humana com que todos os trabalhos e ideias se defrontam. Se a mulher assumisse o poder, com todas as suas objetas funções o homem fica muito inexpressivo e o seu sentido da divindade perde-se.".Henry Miller: "Vejamos o caso de Henry Miller, que conta já mais de oitenta primaveras e diz fluentemente as mesmas coisas que um moço de vinte primaveras comenta por conta própria, ainda que de maneira mais ingrata e verde. Ambos se encontram no mesmo ponto: viver não é conhecer a vida." (1973).Inspiração: "Escrever uma página inspirada não acontece todos os dias. Às vezes movemos o pensamento pelos atribulados caminhos do doméstico, que corrompem a subtileza e a graça; outras vezes pomos na cabeça o nosso gorro sábio, e resulta uma enfadonha tabuada de sentimentos." (1966).José Régio: "É cedo ainda para que eu fale do Régio. Vejo-o ainda de desvelada maneira, "quieto no seu canto", porque a poesia é incomunicável. O que víamos era talvez uma dinâmica infeliz e um deserto de orgulho crucificado." (1970).Kafka: "As criaturas isoladas, diamantinas, como Kafka, simulam toda a vida uma coragem normal de relações, contactos, até amores perdoáveis. Mas ficam sempre naquela terra hostil onde se murmura; nas selvas negras de Brecht onde se murmura: "Nós não pudemos ser amáveis... recordai-nos com indulgência." (1968).Lobo Antunes. "Se me dissessem, há um tempo atrás, que eu haveria de fazer a apresentação de um livro de Lobo Antunes, e um livro chamado Tratado das Paixões da Alma, eu não teria levado a sério. (...) Das leituras que fiz algo de fundamental: que não se tratava de um carreirista das letras nem jovem zangado, como foi moda apelidar os snobes inteligentes. Tratava-se muito simplesmente de um homem em más relações com a justiça dos homens. E até com a injustiça deles." (1990).Mecenas: "A cultura não é custear espetáculos. A cultura não se elabora, vive de uma filtragem moral e sentimental da sociedade que a produz. Não é obra de empresários nem de mecenas. Não é programa de Estado." (1977).Namora: "Com o livro de Fernando Namora, URSS - Mal Amada, Bem Amada, dá-se um caso de protocolo sem boa construção. Se percorremos um país estranho, há que ter em conta o que é realmente degradação e costume. (...) O livro de Namora é um roteiro em que a imparcialidade não nos comove, simplesmente porque ela não interessa a ninguém. Namora escreve com certa usura de emoções. Sempre foi assim, ou descobre um registo mais profundo ao ficar fora da sua própria identidade?" (1986).Odisseia: "Há uma teoria quanto ao autor de Odisseia que atribui a uma siciliana a obra imortal de Homero. Essa atrevida opinião funda-se em traços psicológicos, que não são para desprezar. Por exemplo, o grande conhecimento da vida doméstica demonstrado pela primeira Nausícaa, em contraste com a sua ignorância a respeito de navegação e os trabalhos pastoris." (1992).Público: "O que acorre a esta conferência (...) é gente nova quase toda, dita das Artes, e que se preocupa extraordinariamente com a moldagem da sua personalidade." (1960).Quadro: "O retrato presidencial de Jorge Sampaio é um retrato à margem do retratado. Paula Rego tem dificuldades em pintar pessoas. Desenha-as mas não as inventa, não as estuda, não reage com elas a isto que se chama o mundo. O retrato do Presidente Mário Soares, que confiou num amigo para o fazer, obedece a um absurdo lógico. Parte do conhecimento da sua personalidade, arrebatada e impaciente, para exprimir o lado facecioso de um temperamento. Não trai, apenas se destina a círculo dos amigos e nem sequer à roda da família." (2006).Romance: "O romance é ainda um 'jogo de palavras' e não corresponde, mesmo quando obtém grande sucesso, à exigência do homem. Porque, para lá dos seus intuitos de diversão ou aventura, talvez pressinta o pequeno campo de imagens do romance como coisa que não deve ser tomada a sério." (1963).Salman Rushdie: "Não se podem ler os livros sagrados dando-lhes um significado panfletário. (...) Gibreel, o homem armado, personagem de Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, achava que a fé era como uma doença, e que havia de voltar sempre. Por isso preferiu puxar o gatilho e libertar-se da infância da sua credulidade e dos génios de outrora." (1991).Timidez: "A mulher tímida encontra o sucesso ao pé da porta, e foi nessa nota que os empresários de Marilyn se garantiram. Mas é muito raro que as mulheres sejam tímidas. Para isso têm de possuir um elevado sentido metafísico, sem o qual a timidez é apenas insuficiência mental. Quando Greta Garbo diz: 'Tive hoje uma grande discussão com Deus', está explicado o teor da sua beleza e fascinação." (1992).Uso: "Os usos estéticos da língua portuguesa começam notoriamente nos cronistas do século XIV, com Fernão Lopes. Até então, a prosa escrita destinava-se a atos de doação e testamentos e ao registo de propriedades. A redação desses papéis era confiada ao tabelião ou secretário régio, que não punham empenho na elegância da língua, mal socorrida por um latim bárbaro e menos que vulgar." (2005).Vinha do Douro: "De maneira muito inesperada, indo ao Douro onde ainda há uma casa de família meio entregue a fantasmas competentes e que não pomos em dúvida, encontrei-me com Madame Bovary ali ao lado. Filmava-se um mortório, e as jovens do lugar, vestidas de preto, rodeavam o caixão da Dona Augusta, que era a Laura Soveral muito engripada. É estranho essa encarnação em figuras que os não inspiram. (...) E se eu tivesse melhor caneta, mais diria. Mas acaba-se aqui a tinta; não o canto que faltou a Camões, porque nesse tempo vinho de cheiro não havia.".Wilhelm Reich: "Há muito tempo que não lia Wilhelm Reich. No meio de muitas ideias malsucedidas, de muitos absurdos concubinatos com a verdade, Reich mantém algo de surpreendente no seu discurso. A linguagem é, às vezes, delirante, outras vezes profética. Decerto comoveu muitos psiquiatras com veia revolucionária. Recorrem a Reich como a um precursor no âmbito das informações genitais, mas ignoram a teoria do novo líder." (1992).Xenófanes: "A ignorância do magistério que determina a obra de Xenófanes não basta para o tomarmos como autodidata. Quer aprendesse nos livros ou nas palavras dos mestres, ele foi poeta e admite-se que foi professor de Parménides. Xenófanes dizia que a verdade não é para ser divulgada, porque as imagens da opinião ou do senso comum são historicamente mais fortes do que a justiça da verdade ou a verdade da justiça." (1995).Yourcenar: "Antes de tudo, posto que para Filipe La Féria o cenário antecipa o teatro e é o seu porta-voz, a cova de Electra, aos nossos pés. (...) Mas o drama não está lá. O estudo dos atores não foi fecundo. Os atores estão vestidos como se fossem hunos e não gregos. Eu penso que a peça de [Marguerite] Yourcenar é débil, muito perto de um drama burguês, com um tempero de psicanálise que nos fatiga e nos dececiona." (1987).Zarco: "Há um monumento a Gonçalves Zarco, mas não exige que os corredores de fundo da história parem diante dele, esperando indicações preciosas para poderem prosseguir. (...) Chegada à Madeira, depois de duas ou três conversas com jornalistas, apercebi-me de que eles sabiam mais de mim do que eu própria. Sabiam quem me estima e quem me detesta, facto que parece bizarro se o tornarmos público aqui. Isto quer dizer que a ilha exerce um poder desinibidor e que lá o sintoma de identidade não é visto da mesma maneira." (1995)
Não há pior mal para um escritor do que ficar marcado por uma quase primeira obra espetacular e a partir desse momento a carreira girar principalmente em torno desse título. Agustina Bessa-Luís, que morreu após uma longa ausência da vida pública por doença que a retirou do mundo, foi uma dessas situações. Causa: o romance ASibila..Publicado quase no início da sua vida literária, o romance A Sibila serviu sempre de bilhete de identidade a uma autora que alguns leram no tempo de publicação, espantados com aquele fulgor inspirativo pouco habitual na literatura produzida em tempo salazarento; outros foram lendo entre as novidades anuais que a escritora nunca deixou de lançar até ao momento de se retirar - mesmo aí havia obras no baú, e ontem era a palavra-chave de uma obra gigante quando os que se despediam de Agustina Bessa-Luís necessitavam de um exemplo..Entre alguns portugueses que olharam para a obra de Agustina Bessa-Luís com maior abrangência esteve o cineasta Manoel de Oliveira, que a retirou para fora desse gueto ao filmar sete trabalhos da escritora e ter excluído ASibila da lista de personagens, como as interpretadas por Catherine Deneuve ou John Malkovich, entre muitos outros..Agustina Bessa-Luís morreu aos 96 anos, a meia centena de quilómetros da Vila Meã que a viu nascer a 15 de outubro de 1922, depois de ter assistido e participado em muitos acontecimentos das últimas décadas da sociedade portuguesa. Tal como acontecia nos seus romances, em que narrava grande parte de um século da história do país, 1850 a 1950, a sua vida tornou-se um arquivo de factos que lhe proporcionaram muitas histórias da História..Era uma obra bem diferente da com o título da primeira, de 1948, a novela Mundo Fechado, porque, apesar de muito do seu mundo se situar em grande parte no cenário do Douro e do Minho, abriu-o futuramente a narrativas fascinantes como seria As Fúrias (1977), a contos em A Brusca (1971), a romances históricos como A Monja de Lisboa sobre Maria da Visitação (1985), a biografias como a de Santo António (1979) ou Marquês de Pombal (1981), a ensaios como os de Dostoiévski e a peste emocional (1981), ou Camilo e as Circunstâncias (1981), a várias peças enquanto dramaturga como Garrett..O estilo de Agustina pertencia, segundo classificava o pensador Eduardo Lourenço, à corrente neorromântica, em muito influenciado pela obra de Camilo Castelo Branco. Mas a sua vida também continha inúmeros episódios que rivalizavam com as invenções daquele escritor, afinal o seu pai deixara a família de lavradores e com 12 anos emigrara para o Brasil. Aí fez fortuna, tendo regressado e iniciado uma vida profissional nas áreas do espetáculo e do jogo, que também inspiraram a escritora. Por seu lado, a mãe descendia de uma espanhola de Zamora. Como os pais mudavam de residência frequentemente, Agustina encontrou a paz na infância e na adolescência nas férias que passava na região do Douro, na casa do avô, que tinha uma boa biblioteca. Grande leitora dos clássicos franceses e ingleses, rapidamente o romance a seduz, sendo que se dedica às experiências na escrita ainda muito nova. Designadamente com dois romances em que usa o pseudónimo de Maria Ordoñes, intitulados Ídolo de Barro e Deuses de Barro..Reações.Ao saber-se ontem da morte da escritora a reação foi geral. Desde os portugueses que leram os seus romances na escola como leitura obrigatória, os que a continuaram a descobrir e uma nova geração de leitores. Mas foi o Presidente da República e a ministra da Cultura quem apresentaram primeiro publicamente os pêsames. Marcelo Rebelo de Sousa salientou que "há personalidades que nenhumas palavras podem descrever no que foram e no que significaram para todos nós". A escritora destacou-se, disse, "como criadora, como cidadã, como retrato da força telúrica de um povo e da profunda ligação" entre as raízes dos portugueses e "os tempos presentes e vindouros". Na nota, Marcelo Rebelo de Sousa "curva-se perante o seu génio"..Para a ministra Graça Fonseca, Agustina Bessa-Luís "ocupa um lugar sem par na narrativa portuguesa contemporânea, sempre preocupada com a condição social e cultural em Portugal" e é uma das "grandes romancistas e mestre de um dos mais originais processos criativos da ficção portuguesa". Acrescenta: "Autora de uma obra tantas vezes virada para o passado mas sempre contemporânea, sempre presente", Agustina Bessa-Luís inaugurou "um novo espaço ficcional, à imagem de outras grandes mulheres e que, juntamente com ela, revolucionaram radicalmente a prosa em português, como Maria Velho da Costa ou Maria Gabriela Llansol"..A escritora Lídia Jorge também se pronunciou: "Deixa, do ponto de vista da ficção, uma das obras mais importantes do século XX e, como escritora, sem dúvida alguma, a mais importante. É absolutamente extraordinária, multifacetada e que toca praticamente todos os géneros", salientando que "onde ela brilha com fulgor único é na ficção"..Para o escritor Mário de Carvalho, Agustina Bessa-Luís era uma "escritora extraordinária" e "uma das grandes" do século XX, a quem já só falta superar um desafio, o da imortalidade". Acrescenta: "Ganhou com ASibila o reconhecimento praticamente unânime de todos os seus confrades, porque, no meio literário, havia um consenso generalizado sobre a grande qualidade literária de Agustina Bessa-Luís.".Políticos dos vários partidos pronunciaram-se também, tal como o primeiro-ministro António Costa, entre dezenas de manifestações de pesar..Mudar de editora.Tão diferente da maioria dos autores nacionais, também o foi no ritmo de publicação, pois era raro o ano em que não editava um ou mais livros. No entanto, a relação com a sua editora de sempre terminou recentemente. Após mais de seis décadas a publicar a obra de Agustina, a editora Guimarães foi substituída pela Relógio d'Água, que tem vindo a relançar com grande periodicidade a obra, acrescida de prefácios de vários admiradores confessos da autora. Para a filha, Mónica Baldaque, essa interrupção editorial era necessária: "Temos tido acesso a trabalhos muito interessantes de gente muito nova, seja das universidades, seja de cursos fora da literatura, que leem e estudam Agustina de uma forma muito moderna e com uma perceção do que foi a sua escrita continuadamente.".A longa obra faz a escritora receber a maioria dos importantes prémios literários nacionais: Delfim Guimarães foi o primeiro, em 1953, e o mais recente foi o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2001. Pelo meio ficaram treze distinções..Além da literatura, a autora teve outras "ocupações": pertenceu ao conselho diretivo da Comunidade Europeia de Escritores em 1961 e 1962, foi diretora do jornal O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987, responsável pelo Teatro Nacional D. Maria II entre 1990 e 1993, e membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, além de pertencer às academias de Ciências, Artes e Letras de Paris, da Brasileira de Letras e das Ciências de Lisboa..Como que num coroar da sua carreira, em 2004 foi-lhe concedido o Prémio Camões. Justificação: "O júri tomou em consideração que a obra de Agustina Bessa-Luís traduz a criação de um universo romanesco de riqueza incomparável que é servido pelas suas excecionais qualidades de prosadora, assim contribuindo para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum.".Divulgação do espólio.A escritora estava desde julho de 2006 ausente da vida pública devido a questões de saúde. Antes, publicara o seu último livro: A Ronda da Noite. Mas a sua obra não estava esquecida e além da reedição em curso, também a família se preocupou em investigar o seu espólio. É o caso da edição de três espessos volumes que reúnem em 2795 páginas várias centenas de textos dispersos de Agustina Bessa-Luís e que a Fundação Calouste Gulbenkian apresentou em outubro de 2017..Esta recolha e organização da neta da autora, Lourença Baldaque, Ensaios e Artigos (1951-2007) permite a radiografia completa do seu pensamento sobre quase tudo, sendo muito curiosa a recordação das opiniões políticas no pós-25 de Abril, bem como os comentários sobre alguns ícones da música popular, Madonna e Bob Dylan (parcialmente reproduzido abaixo)..A rudeza ou sedução nos comentários sobre os seus pares escritores geram mais polémica, já que Agustina não se proíbe de dizer o que realmente pensa sobre a literatura..Leia algumas partes no A a Z literário que se segue:.Agustina: "Decorre a apresentação do livro de Cavaco Silva no salão nobre [do Centro Cultural de Belém], e os carros pretos dos ministérios sobem a rampa com uma lentidão consular. (...) Freitas do Amaral acaba também de escrever um livro e é saudado triunfalmente. Eu escrevi cinquenta e não me prestam tanta atenção. Pelo que fico, por um momento, desencorajada." (1994).Bob Dylan: "A multidão serve-se dos mitos no grande banquete frio de ideias feitas. A ideia romântica e a ideia triunfal, a ideia extradoméstica. Mas os anos 60 passaram. No seu rochedo sobre o mar, Bob Dylan está só. (...) Um tipo domesticado, como todos os velhos dizem. O seu lado espiritual deixa-o na sombra. O seu motivo cavalheiresco torna-o solitário." (1987).Camilo Castelo Branco: "Um homem dotado para a vida é um homem angustiado; ele sabe que quanto mais o seu génio progride e se expande, mais cria para si próprio condições de invulgar desastre. (1964) " Tanto temia Camilo o punho da sociedade para quem escrevia e que, afinal, não era persistente na crueldade nem obstinada na estupidez. (...) Na verdade, não sei que lhe deu a Camilo para escrever este romance (A Enjeitada) a não ser o desprezo pela sua atividade face a um público que lhe exigia emoções calculadas, e para quem o melodramático se confunde com o sério." (1980).Dostoiévski: "Não há melhor maneira de perceber a intimidade de Dostoiévski senão fazendo da sua obra uma Bíblia, pegando nela à boa maneira russa e deixando que se abram as folhas do destino, ao acaso, no encontro desse romântico calor e realidade profunda que foram seus dons. Como eu faço agora, detendo-me num parágrafo de Niétochka, um dos seus primeiros ensaios da longa novela, escrita na prisão e que tem por inteiro o estremecimento da aspiração frustrada do amor humano." (1981).Êxito: "O êxito dos romances de Lawrence Durrell pode corresponder a uma fraqueza da personalidade, é natural que corresponda a uma fraqueza da personalidade de todos nós." (1965).Fellini: "O que Fellini chama inocência é a libertação do aborrecimento. É o riso, o prazer, a espontaneidade inglória mas eficaz, e coisas assim. (...) Mas não é inocência. A inocência é o insulto que o amor aprova. E, como o amor, é rara. O que Fellini chama inocência é a libertação do aborrecimento. É o riso, o prazer, a espontaneidade." (1973).Goethe: "O 'eterno feminino', com que Goethe termina o segundo Fausto, é um aditamento à insuficiência humana com que todos os trabalhos e ideias se defrontam. Se a mulher assumisse o poder, com todas as suas objetas funções o homem fica muito inexpressivo e o seu sentido da divindade perde-se.".Henry Miller: "Vejamos o caso de Henry Miller, que conta já mais de oitenta primaveras e diz fluentemente as mesmas coisas que um moço de vinte primaveras comenta por conta própria, ainda que de maneira mais ingrata e verde. Ambos se encontram no mesmo ponto: viver não é conhecer a vida." (1973).Inspiração: "Escrever uma página inspirada não acontece todos os dias. Às vezes movemos o pensamento pelos atribulados caminhos do doméstico, que corrompem a subtileza e a graça; outras vezes pomos na cabeça o nosso gorro sábio, e resulta uma enfadonha tabuada de sentimentos." (1966).José Régio: "É cedo ainda para que eu fale do Régio. Vejo-o ainda de desvelada maneira, "quieto no seu canto", porque a poesia é incomunicável. O que víamos era talvez uma dinâmica infeliz e um deserto de orgulho crucificado." (1970).Kafka: "As criaturas isoladas, diamantinas, como Kafka, simulam toda a vida uma coragem normal de relações, contactos, até amores perdoáveis. Mas ficam sempre naquela terra hostil onde se murmura; nas selvas negras de Brecht onde se murmura: "Nós não pudemos ser amáveis... recordai-nos com indulgência." (1968).Lobo Antunes. "Se me dissessem, há um tempo atrás, que eu haveria de fazer a apresentação de um livro de Lobo Antunes, e um livro chamado Tratado das Paixões da Alma, eu não teria levado a sério. (...) Das leituras que fiz algo de fundamental: que não se tratava de um carreirista das letras nem jovem zangado, como foi moda apelidar os snobes inteligentes. Tratava-se muito simplesmente de um homem em más relações com a justiça dos homens. E até com a injustiça deles." (1990).Mecenas: "A cultura não é custear espetáculos. A cultura não se elabora, vive de uma filtragem moral e sentimental da sociedade que a produz. Não é obra de empresários nem de mecenas. Não é programa de Estado." (1977).Namora: "Com o livro de Fernando Namora, URSS - Mal Amada, Bem Amada, dá-se um caso de protocolo sem boa construção. Se percorremos um país estranho, há que ter em conta o que é realmente degradação e costume. (...) O livro de Namora é um roteiro em que a imparcialidade não nos comove, simplesmente porque ela não interessa a ninguém. Namora escreve com certa usura de emoções. Sempre foi assim, ou descobre um registo mais profundo ao ficar fora da sua própria identidade?" (1986).Odisseia: "Há uma teoria quanto ao autor de Odisseia que atribui a uma siciliana a obra imortal de Homero. Essa atrevida opinião funda-se em traços psicológicos, que não são para desprezar. Por exemplo, o grande conhecimento da vida doméstica demonstrado pela primeira Nausícaa, em contraste com a sua ignorância a respeito de navegação e os trabalhos pastoris." (1992).Público: "O que acorre a esta conferência (...) é gente nova quase toda, dita das Artes, e que se preocupa extraordinariamente com a moldagem da sua personalidade." (1960).Quadro: "O retrato presidencial de Jorge Sampaio é um retrato à margem do retratado. Paula Rego tem dificuldades em pintar pessoas. Desenha-as mas não as inventa, não as estuda, não reage com elas a isto que se chama o mundo. O retrato do Presidente Mário Soares, que confiou num amigo para o fazer, obedece a um absurdo lógico. Parte do conhecimento da sua personalidade, arrebatada e impaciente, para exprimir o lado facecioso de um temperamento. Não trai, apenas se destina a círculo dos amigos e nem sequer à roda da família." (2006).Romance: "O romance é ainda um 'jogo de palavras' e não corresponde, mesmo quando obtém grande sucesso, à exigência do homem. Porque, para lá dos seus intuitos de diversão ou aventura, talvez pressinta o pequeno campo de imagens do romance como coisa que não deve ser tomada a sério." (1963).Salman Rushdie: "Não se podem ler os livros sagrados dando-lhes um significado panfletário. (...) Gibreel, o homem armado, personagem de Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, achava que a fé era como uma doença, e que havia de voltar sempre. Por isso preferiu puxar o gatilho e libertar-se da infância da sua credulidade e dos génios de outrora." (1991).Timidez: "A mulher tímida encontra o sucesso ao pé da porta, e foi nessa nota que os empresários de Marilyn se garantiram. Mas é muito raro que as mulheres sejam tímidas. Para isso têm de possuir um elevado sentido metafísico, sem o qual a timidez é apenas insuficiência mental. Quando Greta Garbo diz: 'Tive hoje uma grande discussão com Deus', está explicado o teor da sua beleza e fascinação." (1992).Uso: "Os usos estéticos da língua portuguesa começam notoriamente nos cronistas do século XIV, com Fernão Lopes. Até então, a prosa escrita destinava-se a atos de doação e testamentos e ao registo de propriedades. A redação desses papéis era confiada ao tabelião ou secretário régio, que não punham empenho na elegância da língua, mal socorrida por um latim bárbaro e menos que vulgar." (2005).Vinha do Douro: "De maneira muito inesperada, indo ao Douro onde ainda há uma casa de família meio entregue a fantasmas competentes e que não pomos em dúvida, encontrei-me com Madame Bovary ali ao lado. Filmava-se um mortório, e as jovens do lugar, vestidas de preto, rodeavam o caixão da Dona Augusta, que era a Laura Soveral muito engripada. É estranho essa encarnação em figuras que os não inspiram. (...) E se eu tivesse melhor caneta, mais diria. Mas acaba-se aqui a tinta; não o canto que faltou a Camões, porque nesse tempo vinho de cheiro não havia.".Wilhelm Reich: "Há muito tempo que não lia Wilhelm Reich. No meio de muitas ideias malsucedidas, de muitos absurdos concubinatos com a verdade, Reich mantém algo de surpreendente no seu discurso. A linguagem é, às vezes, delirante, outras vezes profética. Decerto comoveu muitos psiquiatras com veia revolucionária. Recorrem a Reich como a um precursor no âmbito das informações genitais, mas ignoram a teoria do novo líder." (1992).Xenófanes: "A ignorância do magistério que determina a obra de Xenófanes não basta para o tomarmos como autodidata. Quer aprendesse nos livros ou nas palavras dos mestres, ele foi poeta e admite-se que foi professor de Parménides. Xenófanes dizia que a verdade não é para ser divulgada, porque as imagens da opinião ou do senso comum são historicamente mais fortes do que a justiça da verdade ou a verdade da justiça." (1995).Yourcenar: "Antes de tudo, posto que para Filipe La Féria o cenário antecipa o teatro e é o seu porta-voz, a cova de Electra, aos nossos pés. (...) Mas o drama não está lá. O estudo dos atores não foi fecundo. Os atores estão vestidos como se fossem hunos e não gregos. Eu penso que a peça de [Marguerite] Yourcenar é débil, muito perto de um drama burguês, com um tempero de psicanálise que nos fatiga e nos dececiona." (1987).Zarco: "Há um monumento a Gonçalves Zarco, mas não exige que os corredores de fundo da história parem diante dele, esperando indicações preciosas para poderem prosseguir. (...) Chegada à Madeira, depois de duas ou três conversas com jornalistas, apercebi-me de que eles sabiam mais de mim do que eu própria. Sabiam quem me estima e quem me detesta, facto que parece bizarro se o tornarmos público aqui. Isto quer dizer que a ilha exerce um poder desinibidor e que lá o sintoma de identidade não é visto da mesma maneira." (1995)