"Isto só acontece a músicos. Há um sol e ficamos apaixonados"

Conversa no Fiammetta, restaurante italiano em Lisboa, com Davide Zaccaria e Maria Anadon, um casal ítalo-português que tem José Afonso como inspiração e um projeto de ajudar crianças refugiadas como ambição, mas a quem a crise gerada pela pandemia de repente bateu à porta e até está em risco de perder a casa.
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Já editou outros CD Por Terras do Zeca. Tem agora mais um a caminho. Este é diferente em quê?
D.Z. - É diferente dos outros porque temos a colaboração da Filarmónica de Vagos e em comparação com os outros troquei um bocadito os cantores.

Quem tem agora?
D.Z. - Agora temos a Maria Anadon, a Filipa Pais, o João Afonso, que são os fixos, e convidei a Ana Lins e a Stefania S, que é uma cantora italiana da Sardenha, que canta fantasticamente, e também o Jorge Fernando.

Sendo italiano, embora não da Sardenha, o que é que o fez interessar-se por Zeca Afonso?
D.Z. - Descobri o Zeca Afonso há 20 anos quando morava na Alemanha, por meio de uma cassete com um concerto ao vivo da Dulce Pontes. Não fazia a mínima ideia de que um dia ia tocar com ela e sobretudo que ia conhecer o Zeca Afonso porque ela cantava Índios da Meia Praia e outros temas dele.

Temos aqui a Maria Anadon, que é a sua mulher. É por causa desta musa, e música, portuguesa que está em Portugal há 20 anos?
D.Z. - Sim, a culpa é dela...

Como é que convenceu um italiano a vir para cá?
M.A. - Não convenci, ele veio. Conhecemo-nos em concerto, a fazer uns espetáculos para um pianista italiano, Arrigo Cappelletti.

Isso foi onde?
M.A. - Foi no norte de Itália, fomos para Isolaccia, muito próximo da Suíça, já vínhamos a fazer uns concertos... O Cappelletti descobriu um CD meu à venda numa Virgin Megastore em Milão e comprou. Era sobre os 100 anos do cinema português, foi uma pesquisa que fiz sobre filmes portugueses.

Cantou temas dos filmes portugueses?
M.A. - Cantei. Só uma é conhecida, Verdes Anos, do Carlos Paredes. Se perguntar às pessoas, se calhar ninguém se lembra quem é que cantava a música no filme ou se era cantada ou não.

E estava numa loja Virgin de Milão?
M.A. - Sim, e é aí que sou descoberta. Depois o Arrigo passa um mês a telefonar para Portugal, para vários sítios, Hot Club e por aí fora, até conseguir o meu número e eu ir parar a Milão para dois concertos. E depois conheci o Davide. Ele estava lá, fazia parte. Eu acho que isto só acontece com músicos e com atores. De repente há um sol e ficamos apaixonados... foi uma coisa linda. Através desse sol, faz 20 anos que estamos juntos.

Davide, chegou a Portugal, não sabia falar a língua e hoje fala-a perfeitamente. Como é que se integrou, tanto na sociedade como no meio musical?
D.Z. - Não é que não goste de estar com italianos, não é isso, mas também quando vivia na Alemanha nunca fui atrás dos italianos. Sempre tentei integrar-me com pessoas e músicos, sobretudo na parte musical, ou seja, conhecer melhor a cultura do sítio. Sempre tentei contactar mais com a música e com as tradições locais, estar muito com os músicos portugueses.

Associamos a Itália à música. Ser italiano é uma vantagem na música? Abre portas?
D.Z. - Em alguns casos, sim. A vocalidade, a música, o sole mio...

Essa não canta?
D.Z. - Não, não. Graças a Deus, não. Sou conhecido por, sempre que componho um tema, cantar com a minha voz, gravar e enviar. É comigo a cantar, que é um horror. Às vezes tenho um ataque de tosse e gravo mesmo assim isso...

Está a ser modesto e tem jeito para cantar?
D.Z. - Olhe que é o contrário. Se conseguem perceber a melodia, depois vão cantar fantasticamente.
O que é que canta a Maria?
M.A. - Jazz é a minha formação. Levo 30 anos a cantar jazz. Queria fazer a experiência de cantar jazz em português, mas as coisas nem sempre correm exatamente como imaginamos e o AR da Music Play escreveu uma circular para os jornais e saiu no Blitz uma coisa qualquer que dizia "Maria Anadon lança o seu segundo CD de jazz, Cem Anos do Cinema Português, a cantar as mais belas e conhecidas canções do cinema português", e não era nada disso porque eu tive de recorrer aos músicos que estavam vivos e tinham músicas para filmes, o António Pinho Vargas, o Tomás Pimentel...

Esse CD não era jazz...
M.A. - Não era jazz, embora tivesse arranjos de jazz. Tive de pedir a uma série de malta amiga, escritores, para escreverem os textos para aqueles temas, temas que não tinham tido voz nenhuma. Acabas por fazer que o CD possa ser um flop porque o AR (artistas e repertório de uma agência que faz a comunicação e é o gajo que seleciona os CD de um catálogo enorme e escolhe o que vai ser editado) não teve o cuidado de perceber o que é que lá estava.

Canta músicas de Davide?
M.A. - Músicas dele com textos meus, sim. Fizemos Os Recantos da Alma. Não tenho por hábito escrever letras sem ser com uma música por base... ou porque ele me pede para escrever uma letra.
Chegam a estar os dois em palco?
D.Z. - Várias vezes. Fizemos até um CD que era música minha e letra dela, que era o Viagem de Um Som, o primeiro.

Vivem hoje perto de Azeitão. É de onde, Maria?
M.A. - Alfacinha.
D.Z. - Eu sou de Milão.

E As Terras do Zeca? Toca habitualmente com músicos de grande projeção. Além da Dulce Pontes, que vi cantar na Guiné-Bissau, onde estava o Davide com ela, toca com quem?
D.Z. - Tive uma grande sorte, mal tinha chegado e já estava a trabalhar com grandes nomes como Jorge Fernando, Marisa, Paulo de Carvalho, Ana Moura, e depois cheguei à Dulce em 2004. Com ela, até hoje, demos a volta ao mundo: África, Rússia, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Cuba.

Acha que é a Dulce, por si, que atrai ou é antes curiosidade pela música portuguesa?
D.Z. - Dulce já tem um nome que é considerado um dos melhores do mundo. Ela sozinha tem uma maneira de cantar e de ver a música únicas. São esses nomes que fazem a música mundialmente.

Obviamente ela é reconhecida pela música portuguesa, erradamente às vezes pelo fado - ela não é fadista, canta fado à maneira dela. Lágrima é um dos temas que ela levou a todo o mundo. Lembra-se de algum sítio onde tenha estado com a Dulce que tenha sido emblemático?
D.Z. - Mais emblemática foi a primeira vez que toquei com ela em Itália, estavam a minha irmã e a minha mãe na primeira fila e o amigo que me deu a famosa cassete da Dulce. São concertos mais fortes, com uma simbologia, como o do 10 de Junho na Guiné, onde nos conhecemos.

Lá fora, a maior parte das pessoas não entende o que ela canta, não é pela letra?
D.Z. - Também ninguém percebe o que é que a Björk está a cantar. Ou seja, a música é a junção da melodia e da letra, é uma linguagem universal, até sem letra. Por acaso ela canta temas com letras muito fortes como Lágrima, Infante, que conseguem chegar mesmo a quem não percebe a letra. É como ouvir ópera. Os Beatles... os italianos não sabem inglês. Eu ouvia Hey Jude e chorava sem saber. Só depois comecei a ler a letra.

Ainda bem que falou da ópera. Uma criança italiana, mesmo que não seja educada, nasce neste ambiente musical? Em Portugal vemos a ópera como uma coisa elitista. Em Itália é transversal?
D.Z. - Sim e não. Já passaram os tempos em que os italianos iam à ópera. Os jovens de hoje não sabem quem é Puccini... houve uma altura em que estava bastante satisfeito porque Pavarotti fazia os famosos concertos... quem estudava música clássica não sabia nada, mas para mim servia para pôr os jovens em contacto. Se ele conseguia cantar com um Jon Bon Jovi, quem ouvisse aquele concerto talvez fosse ouvir outras coisas. Mas, verdade seja dita, a cultura em Itália, neste momento, está muito mal.

Toca só violoncelo?
D.Z. - Sou diplomado em Violoncelo e Guitarra. Depois toco um bocadinho de piano.
Maria, como é que chegou à música?
M.A. - Comecei na igreja, na escola, entre amigos. Depois aprendi inglês e os meus gostos mudaram. Tive a felicidade de no Alto de Santo Amaro haver uma série de músicos de jazz, de o pai do meu filho ser baterista de jazz e dar-me muitas coisas a ouvir e de fazer aqueles treinos auditivos, que acho que devíamos todos passar por ali, mesmo os que não são músicos, para termos um ouvido mais apurado para aquilo que é bom.

Começou por cantar profissionalmente em inglês?
M.A. - Sim. E em todas as entrevistas vinha a sagrada pergunta: porquê o jazz?

Estão juntos há 20 anos. A Maria tem um filho do primeiro casamento e o Davide também. Eles têm alguma coisa que ver com música?
D.Z. - Tiveram. O meu filho Daniel começou com bateria.
M.A. - O Pedro foi com baixo e fez o curso até ao final.

Mas não são profissionais?
M.A. - Não. O Pedro está em Medicina Tradicional Chinesa, o Daniel é jovem, ainda está a estudar. A música é um bichinho. Na altura, noutros tempos, ouvíamos música em comum, ninguém estava com headphones na cabeça, era uma atividade partilhada. A minha casa estava sempre cheia de amigos porque alguém tinha trazido um disco no fundo da bagagem e depois ouvia-se aquilo até à exaustão, até ficar aquela faixa estragada. Todas essas coisas fizeram parte. O meu inglês... eu tenho uma das melhores críticas que alguém pode ambicionar ter nos EUA quando estive lá a gravar - tenho três CD só com mulheres, uma americana, duas japonesas, uma israelita...

Está em Portugal há 20 anos mas continua a acompanhar o que acontece em Itália. As duas sociedades são muito parecidas por serem latinas ou nota muita diferença?
D.Z. - São muito parecidas. O problema é que em Itália há uma diversificação muito mais evidente entre o norte e o sul. Portugal, no geral, é muito parecido com Itália do sul, felizmente, onde as pessoas são mais cordiais, não têm a pancada de dividir o país em quatro, e senti isso desde o início.
Uma das coisas de que se fala em Itália é estar na primeira linha das migrações do Mediterrâneo. Sei que tem um projeto pessoal que tem que ver com essa preocupação com o refugiados no mundo.

Quer explicar?
D.Z. -É um sonho que tenho há alguns anos e por vários motivos não tive tempo, porque é preciso grande energia. Basicamente é fazer cantar crianças dos vários países mais pobres, onde as taxas de mortalidade são altas. Crianças da Síria e da Eritreia e juntá-las - alguém me disse que sou completamente chanfrado, mas isto é um desafio e, sobretudo neste momento, é muitíssimo importante criar simbolicamente uma coisa que junte as pessoas. A primeira vez que pensei nisso era um projeto tipo D. Quixote, tipo "vou lá à Síria, à Palestina, a Moçambique, à Guiné, ao Afeganistão, etc.", mas obviamente é impossível por várias razões, seja politicamente, seja a nível de fundos... então a coisa mais simples é ir procurar crianças nos sítios onde estão refugiadas e dar também uma esperança a essas crianças.

Esse projeto está ainda em fase de imaginação?
D.Z. - Falei com algumas pessoas para apresentar o projeto mais ainda não começámos. O que vou fazer em julho é começar já a gravar com duas crianças para apresentar o projeto de maneira mais... Há um tema original meu com a letra da Maria, em que alguns dos cantores vão apresentar o projeto. As vendas vão ser convertidas em projetos de escolas e hospitais.

Maria, está nisto com o Davide?
M.A. - Estou.
D.Z. - os italianos e os portugueses são os povos mais malucos.

Este vosso projeto de ajudar os outros coincidiu com uma situação em que vocês também estão a precisar de ajuda. Vi os apelos nas redes sociais por causa do risco de perderem a casa. Foi culpa desta pandemia e da falta de trabalho para os artistas?
M.A. - É verdade, mas é a triste realidade do nosso meio cultural, num dia pensas num projeto de ajuda e no dia seguinte estamos a pedir ajuda. Obviamente, a pandemia serviu para pôr a nu as nossas fragilidades e passámos a ser chamados intermitentes, podia esticar-me e dizer precários, ou para lá disso. No nosso caso, como explicar a um banco que não, não temos recibos de vencimento dos últimos três meses, que temos de esticar o que foi ganho num determinado período, para os meses de falta de trabalho? Como fazê-los entender que estamos à espera que nos paguem? E então vocês não tinham um contrato, perguntar-se-ão? Sim, mas frequentemente temos gente que não lhes está no feitio pagar em tempo útil.

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