A insustentável leveza dos negacionistas
Há já alguns anos que a Casa Branca não tinha a visita de um adulto responsável. Anthony Fauci, de seu nome, tem pergaminhos científicos imbatíveis, enfrentou várias epidemias com distintas origens geográficas, e antes de Trump aterrar com estrondo em Washington já tinha trabalhado com cinco presidentes republicanos e democratas. Tem, além disto, uma dose implacável de realismo, como o recente cenário dramático de 200 mil mortes, qualquer coisa como 65 ataques iguais ao do 11 de Setembro. Os alarmes de Fauci parecem ter sido a única maneira de forçar Trump a tomar as medidas que se impõem para condicionar a propagação descontrolada do vírus.
Mesmo assim, o America first chegou literalmente ao topo do ranking global de infetados e em duas semanas dez milhões de americanos perderam o emprego, colapso que não tirou o sono ao presidente, entretido a contar seguidores no Facebook e a criar a ilusão de controlo no caos. Ninguém o tem, muito menos montado num programa político que espezinha os especialistas, a ciência, o rigor, a análise técnica, a comunicação sensata e um empático sentido de comunidade.
Trump e suas réplicas dispersas neste mundo cão são propositadamente sectários, incendiários, narcisistas, negligentes, irresponsáveis, eternos mensageiros de mensagens hiperbólicas, autoelogiosas, falseadoras da realidade. O populista tornado nacionalista ou controla os acontecimentos ou é atropelado por eles. Por definição, um vírus é indomável politicamente se esta não se ancorar na ciência, na prudência e na verdade.
Há dois anos, Trump desmantelou o núcleo de expertise em pandemias que tinha na Casa Branca, uma unidade criada por Obama durante a crise do ébola e que funcionava no Conselho de Segurança Nacional.
Lembremos também Matteo Salvini, que passou algum tempo a denegrir os méritos da vacinação em Itália, enquanto Trump e Bolsonaro cristalizaram a mensagem no descrédito das evidências científicas sobre os impactos das alterações climáticas.
E já em plena pandemia do covid-19, Orbán voltou a um dos seus alvos prediletos, apontando as universidades como polos de propagação do vírus por "terem muitos estrangeiros".
No México, o presidente Obrador tem seguido também à risca o manual da negligência regional, apelando a que todos façam a vida como se nada fosse, incentivando aglomerações em locais públicos, isto apesar de ter cortado em 40% a despesa em saúde, num cenário de contração económica e com evolução da pandemia.
Já o folclore de Bolsonaro alinha pela mesma conduta, num país que pode entrar em rutura rápida no sistema de saúde, conduzir à explosão social e endurecer a resposta política. Seguramente sem qualquer ligação ao momento que se vive, o vice-presidente Hamilton Mourão, general na reserva, celebrou há dias no Twitter o aniversário do golpe de 1964, berço de 21 anos de ditadura militar.
Em Budapeste, culminando dez anos de intenso trabalho pela morte da democracia húngara, Orbán apontou-lhe o derradeiro golpe em plena crise do coronavírus. O Parlamento foi suspenso sem data de regresso, o estado de emergência decretado sem retorno à vista, qualquer eleição ou referendo impedidos, uma governação por decreto, suspensão de leis em vigor e prisão a quem ousar "propagar mentiras", isto é, quem criticar o governo. A verdade é que nenhum destes poderes é preciso para derrotar o covid-19.
Outros Estados membros, com muito mais infetados e mortos do que a Hungria, acautelaram os indispensáveis equilíbrios institucionais e salvaguardas de liberdade, mesmo que a gestão da dupla crise de saúde pública e da economia os tenha levado a centralizar poderes previstos na Constituição.
O que aconteceu na Hungria foi simplesmente a oficialização do fim da primeira democracia na União Europeia, sendo certo que os seus cúmplices se sentam em todas as capitais, com especial responsabilidade para o PPE, as Comissões Barroso e Juncker, e necessariamente Paris e Berlim, a quem caberia a iniciativa de mobilizar o Conselho Europeu a utilizar o dispositivo que os tratados preveem (sanções, congelamento de fundos, suspensão de direito de voto). A União Europeia não sobrevive com autocracias institucionalizadas.
Da China e da Rússia, com a fiabilidade habitual dos números, aproveitaram as disfuncionalidades entre europeus e entre estes e norte-americanos para acelerarem uma sofisticada máquina de desinformação, alimentando o caos que já reinava nos nossos telemóveis e que agora, em confinamento obrigatório, nos leva à loucura desinformativa no WhatsApp, no Twitter e no Facebook.
Não é o método que é novo, é a torrente incontrolável no meio da ansiedade em que mergulhámos: uma teoria da conspiração passa a fazer sentido se não tivermos contraponto credível e rápido, se o rigor jornalístico não se impuser e se a vulnerabilidade à ilusória mensagem política for mais forte do que a confiança nas instituições democráticas e na ação dos seus protagonistas.
O desprezo que alguns destes homens fortes sentem pela ciência, e que os leva a tamanhas doses de irresponsabilidade, acaba por ser a face imberbe das lideranças nacionalistas. A madura e ágil capta as vantagens indiretas do momento para conduzir um ataque subtil mas maciço provocando-nos mossa a longo prazo.
É aqui que as grandes estratégias hoje se jogam: no tempo e no modo. A China e a Rússia com métodos agressivos e um soft power acomodado internacionalmente por deleite ou omissão crítica.
Os EUA virados de tal forma para dentro que no meio de uma crise sem data de fecho não há ninguém que para lá olhe com a admiração de outrora, esperando a construção de soluções, agregadora de aliados, liderando pelo exemplo.
Na Europa, mais uma vez em plena formatação na crista de uma nova crise (iria ser sempre assim, como profetizou Monnet), vive-se o dilema das expectativas: uma autodenominada "Comissão geopolítica" sem orçamento, competências e mensagem à altura da crise das nossas vidas; uma indústria europeia inexistente para enfrentar com rapidez e coordenação uma calamidade de saúde pública, absolutamente dependente da China em bens essenciais; uma geometria demasiado elástica nas alianças entre europeus sem oferecer previsibilidade estratégica a nenhum; e uma falta de vergonha comunitária para conter o vírus antidemocrático nos seus Estados membros.
Os homens fortes não são panaceia alguma para crises de representatividade, saúde pública ou económicas. Exercem apenas o poder para agradar a falangistas, são negacionistas até ao osso e criam um sem-número de mitos autoelogiosos assentes numa artilharia de mentiras diárias.
Nada disto pode ser o futuro da humanidade, muito menos o presente para nos tirar das crises. Mas as democracias liberais, baseadas em supostos princípios inegociáveis, numa rede reforçada de cooperação externa, transparência das suas regras e de braço dado com a ciência, têm de fazer muito mais para chegar ao pós-covid com uma vantagem evidente. Nunca é tarde para lutar por ela.
Investigador universitário