As lições a tirar de Espanha, o país onde o contágio mais cresce

Depois de meses em casa, os espanhóis regressaram à rua com vontade de viver. Beberam café na esplanada e foram até à discoteca. O rastreio de contactos dos infetados foi descuidado por falta de meios na capital e o agravamento das restrições foi sendo feito por região. Espanha é agora o país europeu que mais casos notifica, em média, por dia.

A história começa a repetir-se em Espanha. Os hospitais voltam a encher-se, na capital, à medida que os novos casos de covid-19 crescem, tal como as mortes. Aquela que parece ser uma segunda vaga pandémica do novo coronavírus antecipou-se ao outono-inverno - altura em que há uma maior atividade viral - e já se faz notar na Europa. A Espanha segue à frente, e distante dos outros países europeus, no ritmo de contágio. Nas últimas 24 horas, confirmaram-se mais 8581 novas infeções, das quais 3663 deverão dizer respeito ao dia anterior, de acordo com as autoridades de saúde espanholas.

Foram também registadas mais 42 vítimas mortais por causa da covid-19, aumentando assim o número total de óbitos para 29 194 dos 479 554 casos contabilizados desde o início da pandemia. Madrid continua a ser a comunidade autónoma com o maior número de novas infeções: 2401, segundo os dados mais recentes emitidos pelo Ministério da Saúde.

Também a lotação dos hospitais está a crescer. Há quase sete mil doentes internados, metade distribuem-se pelas regiões de Madrid, Andaluzia e Catalunha.

O mês de junho - quando o país atingiu o número mais baixo de infeções desde o início da pandemia, tendo chegado a baixar aos 109 casos diários - já vai longe. Agora, os indicadores comparam com o fim de março, início de abril, primeiro pico da doença em Espanha. Especialistas ouvidos pela imprensa espanhola têm apontado como possíveis causas para o crescimento dos casos um desconfinamento pouco eficaz, dificuldades na identificação das cadeias de transmissão e de comunicação interna. A maioria das decisões sanitárias estão a ser tomadas regionalmente, o que faz que existam muitas discrepâncias nos comportamentos dos cidadãos espanhóis.

Em Portugal, a ministra da Saúde referiu, nesta quarta-feira, em conferência de imprensa, que as autoridades estão a acompanhar a situação epidemiológica do país vizinho, embora este não reporte diariamente os dados. "Obviamente que acompanhamos com cuidado e cautela toda esta situação", disse Marta Temido.

A vida lá fora, depois de meses em casa

Grande parte dos novos contágios em Espanha diz respeito a jovens assintomáticos ou com doença ligeira, havendo muitos focos ligados a saídas à noite onde há ajuntamentos e bebida envolvidos. Até à segunda quinzena do mês de agosto, as discotecas puderam estar abertas até às 05.00, ao contrário do que acontece em Portugal, onde os estabelecimentos noturnos não tiveram ainda oportunidade de abrir portas.

Durante operações de fiscalização a bares e discotecas, as autoridades espanholas encontraram vários casos de desrespeito pelas regras sanitárias. Num bar, na cidade de Bilbau, onde foram encontrados mais de 30 infetados depois de realizados testes de rastreio, uma adolescentes de 18 anos confessava, ao diário El País: "Era uma noite como muitas outras, na discoteca. Muitas pessoas não estavam a usar máscara, mesmo enquanto dançavam. Por isso, fui uma das primeiras a tirar a minha também."

Outras fontes de contágio muito citadas pelos epidemiologistas espanhóis envolvem reuniões de família, festas de rua e ajuntamentos para celebrar tradições canceladas, como as Festas de São Firmino, em Pamplona, onde as largadas de touros atraem milhares de locais e turistas todos os anos a 7 de julho.

"Houve um relaxamento massivo."

"Os espanhóis foram muito meticulosos a seguir as regras durante o confinamento, mas houve um relaxamento massivo quando passámos a esta espécie de normalidade", aponta o Ildefonso Hernández, professor de Saúde Pública na Universidade Miguel Hernández, em Alicante, em declarações à BBC.

O especialista refere ainda que "a qualidade da democracia espanhola" está a desempenhar um papel decisivo no crescimento das infeções, pois "se o controlo fosse mais rígido, não seria aceitável que algumas regiões tivessem demorado tanto a implementar medidas mais restritivas".

Um país, várias vozes

O Governo de Pedro Sánchez endureceu as medidas de contenção nas últimas semanas, tendo passado a ser obrigatório o uso de máscara em todos os locais públicos, mesmo no exterior, foram decretadas multas para quem seja encontrado a fumar na rua, encerradas discotecas, passou a ser proibido beber na via pública e inaugurou-se uma aplicação de rastreio de contactos (RadarCovid).

Muitas destas medidas já estavam em vigor em algumas das 17 regiões do país, por iniciativa das comunidades autónomas. Outras, pelo contrário, pautaram-se pelo relaxamento da atitude de contenção.

As diferentes competências do executivo nacional e das regiões autónomas têm provocado conflitos na gestão da pandemia, sendo as críticas dirigidas aos dois tipos de poder, nacional e local. Embora o Governo do primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez tenha sido acusado, pela oposição, de mentir sobre as vítimas mortais da pandemia, o governo regional de Madrid, chefiado pelo conservador Partido Popular, não tem conseguido reunir maior consenso, desde junho, quando tomou posse, em plena pandemia.

Falta de capacidade de rastreio

Sujeita a uma pressão mais elevada, no final de julho, começou a falar-se em dificuldades de controlo nas cadeias de transmissão na capital. Na altura, Madrid tinha cerca de 200 pessoas a contribuir para o rastreio de contactos de possíveis infetados numa população de mais de 6,6 milhões de cidadãos. Ou seja, menos de metade do que era suposto.

A falta de meios humanos nas comunidades autónomas também tem sido apontada como uma das razões para a propagação da doença. Entretanto, na semana passada, Pedro Sánchez ofereceu-se para ajudar o poder regional, nomeadamente, disponibilizando dois mil militares para auxiliar nos rastreios.

"O vírus não tirou férias." Europa perto do número de contágios no pico da pandemia

O alerta é da diretora do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) e foi feito nesta quarta-feira: a Europa está perto de atingir o número de casos de infeção que registava no pico da pandemia de covid-19, em março.

"O vírus não andou a dormir durante o verão, não tirou férias, e o que verificamos nesta semana é que a taxa de notificação [de casos] na União Europeia está agora nos 46 por cem mil habitantes", sublinhou Andrea Ammon, numa audição por videoconferência, na Comissão de Saúde Pública do Parlamento Europeu, em Bruxelas.

A especialista aponta ainda que o aumento tem sido constante nas últimas cinco semanas. Já o chefe adjunto do programa de doenças do ECDC, Piotr Kramarz, acrescenta que este crescimento não é homogéneo e que se concentra sobretudo nos países mais afetados durante a primeira vaga, como Espanha, Itália, França e Alemanha.

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