"A escola não pode estar no cantinho do sofá porque há miúdos que nem cantinho têm"
A escola e as aulas presenciais são fundamentais para crianças e adolescentes e não há ensino à distância que as substitua, porque não há educação sem emoção e para a garantir é importante estar em presença. Quem o diz é José Morgado, especialista em pedagogia e psicologia infantil, que não entende como a duas semanas do regresso às aulas ainda tanto esteja por definir e clarificar.

© Rodrigo Antunes/Lusa
Depois de seis meses fora do espaço da escola, como perspetiva o regresso às aulas neste ano letivo atípico?
Ai, é só isso, pensei que era mais complicado [ri]. Essa é a pergunta de um milhão de dólares e em Portugal, a começar pelo ministro da Educação, todos queríamos saber responder-lhe a isso. Há muitas inquietações e poucas orientações. As escolas terão algumas, mas não são tão conhecidas pelos pais como seria necessário.
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Sabe-se que as aulas vão começar, nas escolas, apesar de a FENPROF afirmar que não foram criadas as condições para as abrir e que os professores estão com medo.
A generalidade dos professores, à exceção daqueles que integram grupos de risco e naturalmente têm receios, estão ansiando pelas aulas presenciais. Não diria que as escolas não têm condições para abrir, mas é um facto, expresso pela posição conjunta das associações de pais, de diretores de agrupamento e de professores, que estas precisam de orientações claras e coerentes. Neste momento, sabe-se qual é o plano A, que é abrir as escolas, porque qualquer pessoa percebe que não é possível manter as crianças em casa. Há uma dúvida que ninguém tem: é na escola que os miúdos têm que estar, mas depois há o outro lado, que é como vão ser controladas as questões de saúde, aí é que surgem muitas dúvidas.
Acha mesmo que ninguém tem dúvidas de que as escolas devem reabrir com aulas presenciais?
O que se passa no resto da Europa é um regresso às aulas cauteloso, porque a verdade é que passarão décadas até termos outro modelo de escola. Neste momento, o modelo de escola que temos, apesar de todas as novas tecnologias que possamos incluir, assenta na presença física. As tecnologias são ferramentas úteis que otimizam e melhoram quer a diversidade, quer a criatividade, quer a eficiência e eficácia da ação educativa, mas não substituem o espaço da sala de aula e muito menos a relação professor aluno presencial. Toda a gente tem consciência disto, até os professores com a saúde em risco. O meu neto de 7 anos pergunta-me todos os dias se vai ter a outra escola do iPad. Ele não quer a escola do iPad.
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José Morgado é especialista em pedagogia e psicologia infantil.
© DR
Os miúdos também estão desejando voltar à escola?
Estão desejando e precisam, houve demasiados miúdos a ficarem para trás, a OMS reconhece isso, a OCDE reconhece isso, Portugal reconhece isso. Os miúdos sofrem do ponto de vista educativo e não só, com esta situação disruptiva, que implica uma alteração completa das rotinas. Até para os adultos. Ficar em casa de um momento para o outro obrigou a ajustar comportamentos. Uns são mais resilientes, outros menos, mas a isso as crianças sobrevivem, o que mais me preocupa é o impacto nas aprendizagens.
Mas já estamos nisto desde março, não deveria já ter sido feito e planeado?
Exatamente. As aulas começam daqui a duas semanas e ainda não se conhecem os horários, por exemplo. Isto, em termos psicológicos, causa ansiedade. Quando está à beira de uma coisa e só tem dúvidas e não há um discurso tranquilizador dirigido aos pais nem uma planificação já conhecida, isso é inquietante. Por exemplo, o ministério [da Educação] refere a necessidade de manter a distância, se possível. Se possível? Falta muito pouco tempo para o início das aulas e seria importante que se conhecessem as orientações e que estas fossem muito claras e concretas.
O que é fundamental definir?
Há muitos receios, há muitas dúvidas, há muito poucas certezas científicas relativamente ao comportamento da pandemia, nomeadamente nas crianças e quanto mais dúvidas maior insegurança. Portanto, até do ponto de vista da ação política, seria importante um discurso da tutela a tranquilizar as pessoas, dizendo que sabemos que não se pode garantir o risco zero, mas é fundamental para as crianças e adolescentes, por este conjunto de razões, que estejam na escola, esclarecendo as medidas e circuitos a criar e ajustar, consoante as circunstâncias e as realidades de cada escola.
"A dimensão emocional da ação educativa - porque não há educação sem emoção - é fundamental e isso perde-se no chamado ensino à distância."
Que conjunto de razões é esse? Por que são tão importantes as aulas presenciais?
Não é preciso citar nenhum autor da psicologia ou da pedagogia para lhe responder, basta citar o Saint-Exupéry: é muito mais fácil cativar a criança ou o adolescente para as aprendizagens com professor à sua frente e os colegas ao lado do que com a mediação de um ecrã. A dimensão emocional da ação educativa - porque não há educação sem emoção - é fundamental e isso perde-se no chamado ensino à distância - sendo que aquilo que tivemos entre março e junho não foi ensino à distância, foi um ensino de emergência assistido por computador, porque o ensino à distância é bem mais do que aquilo. O que tivemos é absolutamente contranatura do ponto de vista do modelo de escola que temos. Um estudo recente revela que a maior parte dos miúdos tem saudades da escola. Claro que tem. Das aprendizagens, dos colegas e do espaço escola, que é um espaço deles, que lhes é natural. É este tipo de discurso que podia ser incorporado na conversa a fazer com pais, que não sabem de didática e que não têm como papel substituir os professores. A escola não pode estar no cantinho do sofá ou no cantinho da mesa, porque há miúdos que nem cantinho têm.
"Neste momento, já não se justifica ser reativo, é tempo de ser proativo e estarmos mais preparados. Os miúdos precisam da escola."
O distanciamento físico, a redução do tempo dos intervalos, a proibição da entrada dos pais na escola e o uso de máscara constituem preocupações para um conjunto de psicólogos, que as manifestaram numa carta aberta à Ordem dos Psicólogos. Qual é a sua opinião?
Muitas vezes o ideal não é possível, dadas as circunstâncias. Estamos numa situação atípica e temos de encontrar um meio termo, mas há muito que defendo o alargamento das atividades de ar livre e a importância do brincar. Não ponham os miúdos só cinco minutos no intervalo, higienizem os aparelhos, mas deixem-nos brincar um bocadinho. Pode controlar-se o risco, mas não é possível controlar tudo e garantir o risco zero. Se as autoridades de saúde acharem que a máscara é um fator de proteção que se ponha, mas eles precisam de brincar, prefiro que brinquem com a máscara do que não brinquem em nome do controlo do risco. A escola é muito importante para as crianças, se há grupos de risco temos de acautelar e o que eu gostaria é que tivéssemos com clareza alguma orientação relativamente ao que está previsto para acautelar ou minimizar as questões que se possam levantar para não termos de tomar medidas reativas porque para isso chegou março, em que num fim de semana se fecharam as escolas e começaram aulas à distância. Neste momento, já não se justifica ser reativo, é tempo de ser proativo e estarmos mais preparados. Os miúdos precisam da escola e a escola dada num cantinho lá em casa não cumpre o mesmo papel, como se provou, no terceiro período do ano letivo passado, por melhor que tenha sido a resposta das escolas, dadas as circunstâncias.
E é possível recuperar as aprendizagens que se perderam no período do confinamento e do ensino à distância?
É. Tem de ser. O ministério definiu as primeiras cinco semanas para essa recuperação e consolidação, o que não percebo. Que as escolas tenham um plano para perceber, a partir do início das aulas, em cada grupo, sobretudo nos miúdos mais pequenos, qual é o estado da arte relativamente às suas aprendizagens e o que é que têm que fazer durante quanto tempo, é o que é preciso. Percebo e concordo que exista a orientação de uma preocupação inicial de consolidação das aprendizagens que não foram conseguidas, tenho é reservas quanto à definição de um período para isso, porque os miúdos e as escolas não são todos iguais. Por outro lado, é essencial garantir os recursos necessários para pôr em marcha tudo o que isto implica. O ministério anunciou mais 2500 professores, mas não estão mais 2500 professores novos no sistema, tal como funcionários. Se se prolongarem horários para diferir a presença dos miúdos, as escolas têm de estar mais tempo abertas e isso exige mais funcionários. Este é um quadro que me inquieta, porque sinto que devemos manter o ensino presencial, mas acautelando os recursos para isso.
"Se a prioridade for dada à burocracia e não se simplificarem os processos, a coisa correrá menos bem. A prioridade deverá ser esta: receber os miúdos e ajudá-los a sentar outra vez."
Reformulo então a pergunta do início: o que é preciso para um regresso às aulas tranquilo, na medida do possível?
É importante que não se assuste os miúdos, mas eu acho que eles estão motivadíssimos para voltar à escola. Estão assustados, mas estão com vontade. Se forem acolhidos, tranquilizados, ajudados a acomodar-se, as coisas correrão bem. Costumo dizer que os primeiros dias são para aprender a escola e não para aprender as coisas da escola e eles agora têm de reaprender a escola e para isso temos que conversar com eles, criar um tom e um clima acolhedor. Eles vão precisar de matar saudades, de falar das coisas deles, do que fizeram, do que não fizeram, e os professores têm as ferramentas para fazer isso, assim se crie a ideia de que este é um trabalho importante. Se a prioridade for dada à burocracia e se entrarem naquela "azáfama grelhadora", tão presente nas nossas escolas, de construir grelhas por tudo e por nada, e não se simplificarem os processos, a coisa correrá menos bem. A prioridade deverá ser esta: receber os miúdos, ajudá-los a sentar outra vez.
E que impactos é que tudo isto tem e terá em termos de saúde mental no desenvolvimento das crianças e adolescentes?
Sou um bocadinho cauteloso quando se diz que vamos ter um aumento dos problemas de saúde mental, mas que mexe com o bem-estar dos miúdos não tenho dúvidas. Não se passa por experiências deste tipo incólume. Os contextos familiares são importantes como fator de proteção. Foi tudo completamente novo, todos tivemos que aprender a conviver o dia inteiro e ter escola no sofá ou na mesa e isso fez-se, como em todos os processos de aprendizagem, à custa do cai e levanta, porque não há manual de instruções para estas situações, não há para as normais muito menos para as atípicas. O que é que sabemos? Ambientes mais equilibrados têm mais fatores de proteção, ambientes mais disruptivos são mais ameaçadores, mas os miúdos são muito resilientes. Agora, é importante que reaprendam a escola, estão há seis meses fora da escola e é necessário devolver-lhes as rotinas e ajudá-los a reorganizarem outra vez o seu comportamento para proteger o seu bem-estar.
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