O sorriso sangrento de Joker obriga a vigilância policial nos cinemas
Quando o diretor do Festival de Veneza, Alberto Barbera, revelou publicamente o seu entusiasmo em relação aJoker, de Todd Phillips, promovendo-o como o filme "fora da caixa" em competição, para o grande público este era ainda apenas uma ideia apelativa bem gerida pelo marketing da Warner Bros. Depois de causar furor e vencer o prémio máximo desse certame, o elogio mediático tornou-se muito mais sério e concreto: para todos os efeitos, estamos a falar de um título centrado no arqui-inimigo do Batman, isto é, um vilão da DC Comics, uma personagem do universo dos super-heróis... que levou para casa o Leão de Ouro. No mínimo, uma proeza ímpar.
Tratando-se de facto dessa figura de Gotham City, a viver nos anos 1980, o Joker interpretado por Joaquin Phoenix - ator de excelência do atual panorama de Hollywood - não é aquele que conhecemos do Batman, de Tim Burton (Jack Nicholson), ou de O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan (Heath Ledger). Melhor dizendo, não é uma personagem que "faz parte" de um contexto narrativo, de uma intriga de graphic novels, mas é o caso em si mesmo, uma presença física levada ao extremo da representação. Tanto que a câmara de Phillips não se interessa por mais nada sem ser o rosto e o corpo deste ser na grande tela da cidade. Todos os movimentos coreográficos são dele, e passam por ele ou pela sua imaginação.
Apesar das ligações algo desnecessárias ao universo de Batman - desde logo, o candidato à câmara de Gotham City é o pai de Bruce Wayne -, a história que se encena aqui é a de alguém rejeitado pela sociedade e que vai ficando cada vez mais à margem. Um homem, Arthur Fleck, que ganha a vida em pequenos trabalhos como palhaço, e traz sempre consigo um cartão onde se lê: "Desculpe o meu riso, eu tenho uma doença." Assim que desata nas suas gargalhadas penosas, não se sabe quando vai parar. Mas pode ser trágico... Como se não bastasse, vive com a mãe, uma mulher fragilizada, de quem cuida, e faz visitas regulares a uma assistente social que lhe trata da medicação para controlar os pensamentos negativos. A despeito disto, e sem talento nenhum para o humor, acalenta o desejo de vir a ser comediante, com a bênção do seu ídolo Murray Franklin (Robert De Niro), a estrela do talk show que vê fervorosamente na companhia da mãe.
Quem é Murray Franklin senão uma versão do Jerry Langford (Jerry Lewis) de O Rei da Comédia (1982)? As referências a este e a outro icónico filme de Martin Scorsese - Taxi Driver (1978) - não são nada subtis. Na verdade, o espírito da Nova Hollywood de que Joker está imbuído é o grande triunfo da sua abordagem, ao arrepio da formatação dos chamados filmes de super-heróis. O protagonista, Arthur Fleck/Phoenix, nasce assim de um cruzamento do noctívago Travis Bickle com o ávido aspirante a comediante Rupert Pupkin (recorde-se, ambos interpretados por De Niro), só que levado ao expoente máximo da performance insana.
Daí que o discurso de grandeza à volta deste objeto assinado pelo realizador da trilogia A Ressaca deva ser observado com cautela. Em quase todos os seus momentos, a experiência de Joker confunde-se com a loucura vibrante na pele de Joaquin Phoenix. E isso provoca a formulação da mais básica questão artística: é o ator que leva o filme às costas ou o filme que constrói um ambiente propício ao crescimento da personagem? Não haja dúvidas de que Phoenix, qual pincelada de perfeição, é a mais complexa e fascinante mancha humana no grande ecrã, mas também será justo reconhecer a esperteza de Todd Phillips em ir buscar as referências certas para conceber uma obra a roçar a consistência autoral. No entanto, isso não chega para se gritar obra-prima.
A tentação é voltar incessantemente a agulha para o antecipado vencedor do Óscar de Melhor Ator: Phoenix tem aqui a apoteose da sua carreira, rematada com pouco mais do que um sorriso sangrento. A sua magreza e postura quebradiça equivalem à de um anjo que vai ganhar asas pela disposição de vingança, inspirando uma revolução social de máscaras de palhaço contra os ricos... A propósito, a estreia nos Estados Unidos acontecerá com apertadas medidas de segurança. Parece que depois do massacre em Aurora, em 2012, na estreia de O Cavaleiro das Trevas Renasce, esta violência sugerida pela narrativa do novo filme pode trazer maus instintos. O que não deixa de ser estranho, porque não estamos propriamente diante de qualquer coisa inédita na expressão cinematográfica. Como diz o próprio protagonista, são tempos loucos, estes.
*** Bom