O Brasil continua a viver a duas velocidades, na ressaca da disputada eleição de domingo, que resultou na vitória de Lula da Silva, com 50,9% dos votos, e na derrota de Jair Bolsonaro, com 49,1%. Ontem, enquanto o presidente eleito marcava reuniões com os chefes do poder legislativo, Senado e Câmara dos Deputados, e sondava economistas para o governo, nas ruas, aproveitando o feriado nacional, apoiantes do candidato derrotado pediram intervenção militar em frente a quartéis de diversas cidades. Nas autoestradas, entretanto, os bloqueios diminuíram..Lula e Arthur Lira, o poderoso presidente da Câmara dos Deputados que foi base de sustentação parlamentar de Bolsonaro, iniciaram uma aproximação. Lira, do PP, partido de direita, fez saber a Lula que não tenciona dificultar a votação e a aprovação de projetos importantes para o novo governo, desde que em janeiro, quando houver eleições para a chefia da Câmara, o PT, partido do novo chefe do executivo, apoie a sua recondução..No Senado, o entendimento entre Lula e o presidente Rodrigo Pacheco, que, ao contrário de Lira, se foi afastando de Bolsonaro ao longo da campanha e pertence a um partido, o PSD, em vias de se juntar à coligação governista, parece mais fácil..Lula, que terá ainda reunião na semana que vem com Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), sabe que uma relação cordial com o Congresso é vital para a estabilidade do seu governo: em 2015, Dilma Rousseff enfrentou o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e acabou destituída por impeachment no ano seguinte, ao passo que os governos de Michel Temer e Bolsonaro, embora fracos, resistiram até ao fim dos respetivos mandatos graças à compra de apoio do poder legislativo..Em paralelo, Geraldo Alckmin, vice-presidente eleito, inicia esta quinta-feira os trabalhos da equipa de transição entre governos, lado a lado com Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil de Bolsonaro. Mas é Lula quem começa a sondar pessoas para o novo governo: Felipe Salto e Bernardo Appy, nomes com boa aceitação na Faria Lima, a Wall Street brasileira, devem integrar o executivo, segundo informações do jornal O Estado de São Paulo..Mas enquanto o Brasil de 1 de janeiro de 2023, dia da tomada de posse e transferência de faixa presidencial, começa a ganhar forma em Brasília, noutros pontos do país, o 30 de outubro 2022, data da segunda volta das eleições, perdura..Embora Hamilton Mourão, vice-presidente cessante, tenha dito em entrevista a O Globo que "não adianta mais chorar" e que "não houve fraude na eleição", continuaram a ter lugar, em pelo menos 15 estados do Brasil, bloqueios de estradas..De acordo com o boletim da Polícia Rodoviária Federal, divulgado às 13h30 de terça-feira, 156 pontos estavam com vias federais obstruídas por camionistas. O boletim anterior, horas antes, apontava 167 pontos. E o último da véspera, terça-feira, assinalava 271 pontos de retenção. A Polícia Rodoviária Federal afirma ter desfeito já 574 manifestações..Curiosamente, dois bloqueios foram desativados por claques de futebol: a do Atlético Mineiro, que transitava de Belo Horizonte para São Paulo na terça-feira e não queria perder o jogo, e a do Corinthians, a fazer o trajeto entre São Paulo e o Rio de Janeiro para assistir ao duelo na casa do Flamengo. Nalguns casos, os manifestantes, com medo, fugiram, deixando os veículos para trás..Nos dias 31 e 1, o maior aeroporto do país, o de Guarulhos, teve 45 voos cancelados em virtude dos bloqueios. Na quarta-feira, apenas três..Segundo a polícia, cerca de dois mil motoristas foram multados, entre segunda e quarta-feira, por bloquearem autoestradas em todo o país. Em valores, o total de multas chega a 18 milhões de reais, cerca de 3,5 milhões de euros..Ainda na segunda-feira, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística, representante dos camionistas, publicou uma nota de repúdio aos protestos e classificou a ação de "antidemocrática"..Nas ruas, aproveitando o feriado pelo Dia de Finados, que no Brasil se celebra dia 2, manifestantes reunidos em frente a quartéis de dezenas de cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, carregaram ontem faixas com palavras de ordem contra o STF, entoaram gritos de "intervenção federal" e pedidos por uma ação das Forças Armadas sobre o resultado das urnas..Um grupo segurava um cartaz onde se lia: "O Exército Não Pode Bater Continência Para Um Ladrão"..Vestidos com roupas verde e amarelas, traje característico de atos bolsonaristas, os manifestantes não carregaram, no entanto, nenhuma associação ao presidente cessante. A falta de referências segue orientação disseminada, nos últimos dias, em canais bolsonaristas nas redes sociais, para não relacionar Bolsonaro a atos antidemocráticos.."Atenção. Estamos manifestando errado! Temos que ser claros no nosso pedido de manifestação! Parem com esses erros: sem músicas do Bolsonaro, sem bandeiras do Bolsonaro, sem 22 [número de Bolsonaro nas urnas], não destruam nada, não reajam às forças policiais, somente resistam", dizia o texto.."Não queimem pneus; não bloqueiem vias por completo. Estamos agindo de forma inconstitucional e antidemocrática dessa maneira. Estamos impossibilitando as pessoas de exercerem o direito de ir e vir. Não façam xingamentos e discursos anti-PT", acrescentava o comunicado..Entretanto, manifestantes que realizavam bloqueio numa estrada em São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, cantaram o hino nacional fazendo a saudação nazi "sieg heil" e já estão sob investigação do Ministério Público Estadual. Símbolos e gestos nazis são considerados crime no Brasil, de acordo com a Lei do Racismo, de 1988, punidos com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa. Em Santa Catarina, estado com forte influência alemã, são frequentes casos do género..dnot@dn.pt