África e as eleições americanas

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As eleições americanas desta terça-feira, 3 de novembro, são, sem dúvida, as mais decisivas eleições da história recente dos Estados Unidos, desde logo por causa do perfil de um dos contendores: o próprio presidente em exercício, Donald J. Trump. Arrisco-me a dizer que as mesmas se converteram numa espécie de referendum sobre a sua figura.

O impacto dos resultados dessa eleição será sentido tanto interna como externamente. Passando diretamente para os efeitos externos, nenhuma região ou nenhum país estará imune ao desfecho da disputa Trump-Biden, pois, como é óbvio, qualquer grande potência tende a exercer a sua natural influência global de cima para baixo, influindo, muitas vezes diretamente, nas políticas das demais nações e blocos de nações. Mas há também, sobretudo na presente era global e neoliberal, instrumentalizada (viabilizada) pela comunicação, um fator mimético na política internacional, que não pode ser ignorado.

Neste artigo, abordarei as possíveis consequências para o continente africano das eleições que hoje se realizam nos Estados Unidos. O que é possível esperar das relações entre África e os EUA se Joe Biden ganhar ou Trump for reeleito?

Nos seus quatro anos de mandato, o presidente Donald Trump demonstrou não possuir qualquer política africana. Na primeira semana do mês de janeiro de 2018, ele disse ao que vinha, quando se referiu aos Estados africanos como "países de merda" (sic). Outros sinais: não conferiu aos problemas africanos qualquer prioridade na sua administração; recebeu pouquíssimos líderes africanos na Casa Branca; fez cortes nos programas de ajuda a África; estabeleceu limites aos imigrantes africanos, incluindo os nigerianos, que constituem a maior comunidade africana no país, estando representados em todos os estratos sociais.

As únicas preocupações da administração Trump que têm a ver com o continente africano, durante o seu mandato, foram o terrorismo e a China. Foi notório o seu esforço para arrastar os países do continente para uma "guerra fria" com o gigante asiático, como se viu em abril deste ano, quando ligou a vários líderes africanos oferecendo ajuda para combater a covid 19, em troca de distanciamento em relação a Pequim.

Apesar de tudo isso, porém, há uma África que torce pela reeleição de Donald Trump e que, por certo, chorará se ele for derrotado por Biden. Dois fatores explicam isso: política e religião.

Com efeito, e ao contrário de administrações americanas anteriores (republicanas e, nos últimos tempos, sobretudo democratas), Trump não fez grande pressão sobre os países africanos em termos de democracia e direitos humanos. Isso, aliado à sua mal escondida simpatia por líderes autoritários, como Kim Jong-un, da Coreia do Norte, bem como aos seus tiques autocráticos (ataques à imprensa e aos jornalistas, nepotismo, uso de forças militares para reprimir manifestações e outros), é encarado como uma espécie de luz verde pelas várias lideranças africanas, à direita e à esquerda, para adotarem políticas idênticas (por isso, falei acima no mimetismo que existe na política internacional).

A hipótese que levanto aqui é igualmente explicada pela religião. Na verdade, um grande número de líderes evangélicos africanos, sobretudo, apoia publicamente Trump. Segundo uma sondagem do Pew Research Pool, em janeiro deste ano, o ainda presidente americano é muito popular em países como a Nigéria e o Quénia, devido à influência dos principais líderes religiosos, que veem com reservas a agenda liberal, em especial no plano dos costumes, dos democratas americanos. Significativamente, o alinhamento entre muitos líderes cristãos africanos e o movimento Black Lives Matter, por exemplo, está longe de ser total.

Posto o que, por conseguinte, é de prever que, em caso de vitória de Joe Biden, os Estados Unidos voltem a pressionar os diferentes líderes africanos com problemas em matéria de democracia, direitos civis, liberdade de imprensa e eleições (apesar, como temos assistido nas últimas semanas, das confusões das próprias eleições americanas, mas isso são outros quinhentos). Ao mesmo tempo, a pressão para "maneirar" as relações com a China vai, seguramente, ser mantida.

No plano económico, não deverá ocorrer nenhuma mudança dramática, a não ser que os EUA decidam levar a sua rivalidade com a China em África de modo mais efetivo, o que implica largar os cordões à bolsa. O continente tem uma deficiência de base: infraestruturas (estradas, pontes, sistemas de distribuição de água e eletricidade, sem esquecer os recursos humanos). É aí que os Estados Unidos deverão investir em África. Não creio que estimular o comércio ou as exportações, assim como ajudar a criar pequenos e médios empresários africanos, através de programas como o AGOA, sejam a grande prioridade neste momento.

O problema é que neste momento os próprios EUA também atravessam, de algum modo, uma crise de infraestruturas.

Jornalista e escritor angolano

Diretor da revista ÁFRICA 21

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