No último ano, Elisa Vieira deu 1200 consultas. Em 90% dos casos, atendeu crianças na Unidade de Pedopsiquiatria de Bragança, um edifício amarelo implantado num terreno adjacente ao hospital do Nordeste. Ali desagua uma boa parte dos problemas de infância do distrito. Vêm miúdos com défice de atenção ou sintomas de hiperatividade, vêm crianças com surtos psicóticos e distúrbios graves, vêm vítimas de todo o tipo de abusos..As paredes do seu gabinete estão forradas com desenhos que acumulou ao longo de 24 anos de serviço. Em cima da secretária costuma estar um cesto com rebuçados, que oferece a cada paciente assim que entra na sala. E no Natal não é raro distribuir presentes pelos miúdos que aparecem mais vezes - uma caneta ou uma caixa de lápis de cor. Enquanto vai contando a história dos desenhos mais emblemáticos, toma uma decisão: "Não consigo tirar tudo isto das paredes. Vou deixá-los todos aqui. Se isto vai ficar vazio, bem posso deixar os desenhos.". No final do ano passado, Elisa Vieira meteu os papéis para a reforma. Não tomou essa decisão por ter 68 anos, assegura, é porque vai ser avó e agora quer dedicar-se a essa tarefa. "Ainda sinto energia e custa-me tomar esta decisão, sei que vou fazer falta. Mas não posso continuar a adiar o inevitável. Não posso ficar aqui para sempre." Conta dar as últimas consultas em finais de abril ou inícios de maio. Já começou a despedir-se de alguns pacientes..O grande problema é que não há ninguém para substituí-la..Não foi por falta de aviso: o risco de a aposentação da doutora Elisa deixar o distrito de Bragança sem pedopsiquiatra foi sinalizado em maio de 2018. O Ministério da Saúde recebeu nessa altura um relatório do grupo de trabalho criado para detetar os problemas na rede de cuidados de saúde mental que Portugal oferece às suas crianças. E a verdade é que, na última década, o hospital do Nordeste abriu meia dúzia de concursos para pedopsiquiatras. Mas nunca ninguém concorreu.."Os pedopsiquiatras em Portugal são poucos e, sobretudo, estão mal distribuídos. Há vastas zonas do país que não têm condições para garantir apoio a crianças com problemas de saúde mental", diz Teresa Goldschmidt, uma das autoras do estudo e presidente da Associação Portuguesa de Psiquiatras da Infância e da Adolescência..O que se está a passar em Bragança não é um caso isolado, é uma tendência (ver infografia). Entre especialistas e internos há um total de 170 pedopsiquiatras no continente, mas nenhum deles exerce nos distritos da Guarda, de Portalegre ou de Évora. Há apenas uma médica no distrito de Castelo Branco - da Covilhã assiste toda a Beira Interior. Há um único pedopsiquiatra para cobrir todo o Alentejo, em Beja, e outro para todo o Algarve, em Faro.."Nestas regiões, ou não há ninguém ou os que estão ficam completamente sobrecarregados de trabalho", diz Teresa Goldschmidt. "É nesta condição que o recurso aos fármacos se torna mais inevitável, mais reiterado, porque continua a ser preciso aliviar os sintomas, facilitar a vida familiar, a integração das crianças na escola e na comunidade." Ou seja, mesmo que a terapia seja a solução mais indicada, os miúdos do interior têm muitas vezes de ser tratados com medicamentos. Ou, no pior cenário, não são tratados de todo..O Ministério da Saúde diz ao DN que está preocupado com este problema e tem aumentado as vagas e os concursos para pedopsiquiatria. Há hoje mais 22 profissionais desta especialidade do que em 2016. Mas, mesmo com os incentivos que o governo oferece, ninguém concorre para o interior.."Para o Porto? Nem pensar"."Meu Deus, isto é uma tragédia. Vamos ficar completamente desamparados", diz José Bento, padre, 47 anos, há 22 à frente dos destinos da Casa de Trabalho. A instituição é a maior das cinco casas de acolhimento que existem no distrito de Bragança. Tem neste momento 38 rapazes que foram retirados às famílias, mais oito jovens adultos que vivem em apartamentos de autonomia e se preparam para tomar conta dos seus destinos..Por mês, Elisa Vieira dá 20 consultas a estas crianças e adolescentes. O padre Bento não quer entrar em pormenores, tem medo de estigmatizar os miúdos se for muito pormenorizado. Mas não resiste a explicar o que o aflige. "Chegam-nos aqui os casos mais problemáticos, alguns são órfãos, outros são órfãos de pais vivos, outros têm depressões tão profundas ou comportamentos tão agressivos que as famílias não os podem ter em casa. Muitas vezes não sabemos o que fazer. Mas a doutora Elisa sabe.".Apesar de a Casa de Trabalho ter um psicólogo em permanência, isso não chega para as encomendas. "Quando aqui comecei a trabalhar, o grande problema era a pobreza. Hoje as nossas emergências são normalmente de ordem psiquiátrica - eu diria que em média 75% das nossas crianças precisam deste apoio." Normalmente, a pedopsiquiatra de Bragança marca todas as consultas aos gaiatos da Casa de Trabalho no mesmo dia, uma carrinha vai levá-los ao consultório duas vezes por semana. E antes das aulas, para que não percam a escola.."Agora, com a transferência das consultas que já se anuncia para o Porto, porque a pedopsiquiatria em Vila Real está a rebentar pelas costuras, como é que vamos conseguir fazer isto?" É que há crianças que precisam de cuidados duas vezes por semana - e as consultas decorrem em dias úteis. A viagem dura mais de duas horas para cada lado, não é exequível combinar educação com cuidados de saúde. "Estes são os miúdos que tiveram menos oportunidades na vida e nós só lhes estamos a roubar mais. A felicidade deles não pode ser um bem dispensável.".Quando souberam das notícias da reforma, alguns rapazes juntaram-se e fizeram um cartaz para agradecer a Elisa Vieira tudo o que ela fez por eles. Cada um assinou a sua mensagem - e há palavras de uma intimidade desarmante. "Obrigado por me salvar." "Consigo ganhei vontade de viver outra vez." "Foi como uma mãe para mim." Miúdos de 10, 12, 15 anos.."Quando saíram as notícias de que eu me ia reformar o telefone não parava", confessa a pedopsiquiatra. "Há gente de facto assustada, eu sei. Esta perspetiva de perder os cuidados de saúde mental infantil na região também me assusta." Basta passar uma manhã na sala de espera da unidade de pedopsiquiatria do hospital do Nordeste para perceber os receios da comunidade..Hoje está aqui Ana, que prefere não usar o apelido para manter a privacidade da descendência. Veio trazer a filha de 9 anos à consulta. Professora de Matemática, pôs a casa às costas para ganhar a vida - e foi colocada em Lisboa. "Fiquei dois anos fora e tive de deixar a minha filha com o pai, que trabalha por turnos, e com uma tia, que acabou por adoecer. Foi aí que começaram os problemas.".A rapariga deixou de dormir, depois começou a não obedecer a ninguém, foi-se isolando de outras crianças e tornando-se agressiva com os adultos. Nos últimos tempos, começou também a fazer pequenas mutilações nos braços, e nesse momento a mãe assustou-se seriamente. "Com a doutora Elisa fomos percebendo que isto devia-se ao meu afastamento e ela precisava de mim por perto para se tratar. Então ela escreveu uma carta a solicitar ao Ministério da Educação a minha transferência para Bragança, e eles aceitaram.".No caso da filha de Ana, o distúrbio mental prende-se diretamente com uma questão de proximidade. Quanto menor o contacto estável com um adulto de referência, maiores as possibilidades de entrar num labirinto. "Mas agora como é que eu faço para a minha filha ser seguida no Porto? Consegui vir para aqui para apoiá-la, dar-lhe uma estrutura, e agora isto vem trocar-nos as voltas. Devemos mudar-nos para o Porto? Eu não queria sair de Bragança, agora que voltei não quero ser mais uma pessoa a sair daqui, como toda a gente, mas..."."Para o Porto? Nem pensar", diz Ricardo Sá, que veio acompanhar a mulher, Filipa, a uma consulta da filha de ambos. A gaiata tem 9 anos, há dois começou a mostrar sinais de hiperatividade e défice de atenção. Neste caso, as consultas começaram por ser quinzenais, depois passaram a mensais e agora são de dois em dois meses. A medicação que a criança toma está a baixar - e a médica quer interrompê-la até à Páscoa, para ver se as coisas finalmente estabilizaram. Mas alerta os pais para alguns sintomas, e se eles se repetirem podem passar no consultório para afinar as coisas.."No Porto, vamos a uma consulta a cada três meses e nunca teremos este tipo de acompanhamento", lamenta o pai. "A minha filha tem um problema que não é de uma gravidade extrema, felizmente. O que é que eu vou fazer ao Porto? Levá-la a um médico que não a conhece e a enche de medicação? Mais vale não ir.".O beco sem saída.Elisa Vieira tinha um sonho que ficou pelo caminho: tratar as crianças vítimas de trauma de guerra em Angola. Foi lá que nasceu, e esses anos que passou em Luanda foram simultaneamente felizes e trágicos. Lembra-se que ficava muitas vezes de castigo por desfazer as bonecas em cirurgias que ela própria inventava. Mas, antes de ser médica, trabalhou como enfermeira no Hospital de São Paulo, naquela capital africana. Chegou a passar quatro dias lá dentro, cercada pelas tropas depois da independência. Foi nessa altura que decidiu fazer as malas e vir para Portugal.."Estudei na Universidade do Porto, fiz os cinco anos do curso de Medicina e depois o internato em Chaves." Foram dois anos que lhe serviram para se apaixonar pelas serranias transmontanas. Para tirar a especialidade voltou à segunda cidade do país, e esse é para si o grande problema que explica o atual estado da pedopsiquiatria em Portugal. "Além de haver pouca gente a querer seguir esta área, só há formação em Lisboa, Porto e Coimbra. Se um médico passa 12 anos a viver num lugar, é claro que vai ganhar ali raízes.".Quando acabou a especialidade, abriu uma vaga no hospital de Bragança, ela meteu-se no carro e decidiu vir. "Percebi que não havia quaisquer cuidados de saúde mental infantil nesta região do país e foi por isso que decidi ficar. Estávamos em 1995 e fui eu que abri a pedopsiquiatria na província", diz com uma gargalhada. O marido é professor, pôde também pedir a transferência para a mesma cidade. Com uma filha bebé, decidiram começar a vida onde sentiam que faziam mais falta..Percebeu cedo que tinha uma tarefa hercúlea pela frente. "Não era só tudo o que havia para tratar, era também tudo o que era preciso prevenir." A doutora Elisa tem uma crença inabalável nos cuidados de precaução e acredita que só trabalhando na saúde mental da infância se pode conseguir uma sociedade de adultos saudáveis. Por isso, além de todas as consultas, vai a escolas falar com os alunos sobre bullying, com os professores sobre sinais de abuso, conversa com instituições e famílias sobre os métodos com que devem lidar com os seus miúdos..Em toda a região norte há apenas dez camas para acolher crianças em regime de acolhimento psiquiátrico. Ficam no Hospital Magalhães Lemos e quando Elisa Vieira tem de mandar uma criança para o Porto é certo e sabido que há de ir visitá-la por iniciativa própria no fim de semana. Mas às vezes vem parar uma criança às urgências com um surto psicótico ou uma tentativa de suicídio e nesses casos o telefone toca às duas ou três da manhã e nas mais das vezes ela levanta-se para ir ver o que se passa.."Estive sempre muito sozinha nestes anos, sem outros colegas com quem falar sobre questões específicas de pedopsiquiatria. Tentei o meu melhor, mas sei que com uma equipa a trabalhar aqui teria conseguido muito mais." A pessoa a quem responde diretamente é também uma das suas melhores amigas. Conceição Cardoso, diretora do departamento de psiquiatria de Bragança, diz que vai sentir falta da amiga, mas também da médica. "Um psiquiatra não tem competências para tratar dos problemas específicos das crianças.".O hospital garante que vai voltar a abrir concursos, mas o seu diretor não acredita que as vagas sejam ocupadas. "Ninguém quer vir para o interior e, a menos que haja uma lei que force os médicos a assentar arraiais nas zonas carenciadas, estamos num beco sem saída", diz Carlos Vaz, presidente do conselho de administração. "Mas este caso é particularmente grave. Dou-lhe este exemplo: podemos agradecer à doutora Elisa o desaparecimento de uma personagem muito comum nesta região, que é o louco da aldeia. E sabe porque é que eles já não existem? Porque ela os tratou."