"Os doentes encontram nos médicos bodes expiatórios para o tempo que estão à espera"
"Melhorar o Serviço Nacional de Saúde." Esta é a primeira resposta dos médicos para evitar o aumento dos casos de violência para com profissionais de saúde. Dizem-se desprotegidos quando dão a cara pelo SNS. Sem um número adequado de seguranças, sem apoio psicológico ou sem uma punição adequada para os agressores. O que faz que muitas vezes nem sequer apresentem queixas. "Há muitos mais casos, mas os médicos têm medo de reportar, porque sabem que não vai haver uma punição [para o agressor] e têm medo de represálias", afirma Dalila Veiga do Gabinete Nacional de Apoio ao Médico Vítima de Violência, organismo criado há menos de um ano pela Ordem dos Médicos na sequência do aumento das agressões.
"A maioria das vezes, os médicos desistem", reforça Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM). Quase todas as agressões acontecem dentro do consultório, à porta fechada, e por isso são difíceis de provar num sistema judicial que não tem nenhuma tolerância especial para violência contra profissionais de saúde. Segundo Noel Carrilho, no último ano chegaram à FNAM várias queixas deste género, mas são muito raras as que têm continuidade e que chegam a tribunal. O afastamento é, muitas vezes, feito não pelo agressor, mas pelo médico, que chega a evitar escalas de urgência (a partir dos 55 anos, quando a lei o passa a permitir) por trauma.
Pedem, portanto, medidas concretas quer de prevenção quer de punição. Defendem um aumento da quantidade de seguranças nos estabelecimentos de saúde, câmaras em espaços comuns, acompanhamento dos profissionais - dando-lhes ferramentas para agirem em situação de conflito e mecanismos de apoio posteriores a agressões, como apoio psicológico.
O Ministério da Saúde garantiu, ao DN, estar a acompanhar a situação e a estudar medidas para proteger médicos, enfermeiros, assistentes operacionais. No entanto, não especifica quais. Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato dos Médicos (SIM), é perentório na resposta: "Sendo um crime público, deveria ser o Ministério da Saúde e os seus gabinetes jurídicos a apoiar os médicos, o que não acontece. Podem ainda ser tomadas medidas em termos de organização, até da disposição das secretárias nos gabinetes, e dar formação aos profissionais sobre como gerirem conflitos. É preciso ser pró-ativo e não esperar pela desgraça."
Já Maria de Belém Roseira, antiga ministra da Saúde, diz que "se estas situações acontecem é porque não investimos na qualidade das relações humanas, do respeito que cada um deve ter pelos outros", classificando a agressão noticiada nesta quinta-feira a um médico em Moscavide como "inaceitável" e "intolerável". Apresenta como sugestão, o uso de câmaras de vigilância nos centros de saúde "sujeitas às regras de gestão de dados, nas zonas de circulação públicas, uma vez que nos gabinetes, pela natureza do trabalho aí desenvolvido, isso não pode acontecer".
As agressões a profissionais de saúde estão a aumentar. Só nos primeiros seis meses de 2019, foram registadas pela Direção-Geral da Saúde mais de 600 queixas por episódios de agressão, o que perfaz uma média de cem por mês. A classe mais afetada é a dos enfermeiros, depois a dos médicos. E as justificações mais apresentadas são: o assédio moral (57%), violência verbal (13%) e violência física. O ano passado revelou um aumento das notificações de violência contra profissionais de saúde, que desde 2013 já conta com 4893 queixas relatadas.
No caso denunciado nesta quinta-feira, um médico de família, de 66 anos, foi agredido com "socos" e pontapés", no Centro de Saúde de Moscavide, depois de se ter recusado a prolongar uma baixa médica a um jovem de 21 anos. "Pretendia que lhe desse uma vacina para a gripe (porque um primo tinha feito a vacina), e lhe passasse uma renovação da baixa, retroativa a 26/12/2019", contou o clínico, Vítor Manuel Silva Santos, na rede social Facebook. Mas, depois de consultar o processo do utente, o profissional percebeu que o jovem não tinha levantado nenhum dos medicamentos que lhe foram prescritos no último ano.
Perante a recusa do médico em aceder ao seu pedido, o jovem "começou por pegar no teclado do computador e atirá-lo contra a secretária, partindo-o". O mesmo aconteceu com o telefone e depressa atingiu o clínico. "Com a ajuda da namorada, que me segurava, agrediu-me com vários socos e pontapés, um dos socos no olho direito e um pontapé na grelha costal", descreveu.
Dias antes, durante a madrugada de dia 27 de dezembro, sexta-feira, uma médica do Hospital São Bernardo, em Setúbal, foi agredida por uma utente quando prestava serviço de urgência. A mulher entrou no gabinete da médica e agrediu-a com violência, tendo causado um ferimento num olho que obrigou a profissional de saúde a fazer uma pequena cirurgia no Hospital de São José, em Lisboa. Esta sexta-feira, o JN noticia outro caso, ocorrido no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, onde um casal de médicos terá sido sequestrado por um doente no último dia de 2019.
"São os médicos que dão a cara por muitos dos problemas que existem no sistema, como os tempos de espera elevados nas urgências ou até nos certificados de baixa médica, como aconteceu nesta mais recente agressão, e isso faz que sejam eles os alvos de agressões", diz a representante do Gabinete Nacional de Apoio ao Médico Vítima. "Os doentes encontram nos médicos bodes expiatórios para o tempo que estão à espera", acrescenta.
Agredir um profissional de saúde não tem uma punição mais específica, no Código Penal, do que a violência noutro contexto (expressa nos artigos 143.º e 144.º do código). Embora esta vontade tenha sido expressa há uns anos pelo Ministério Público, não chegou a ser concretizada.
Num caso de crime de violação à integridade física ou coação, o Ministério Público tem de abrir um processo criminal, não sendo necessária queixa ou acusação por parte do médico, uma vez que se trata de um crime público - o que nos casos conhecidos esta semana já aconteceu. Nas situações de difamação, injúria ou ameaça é necessária a apresentação de queixa na PSP, na GNR ou no Ministério Público, no prazo máximo de seis meses. "O grande problema judicial que existe no nosso país é a morosidade da resposta ao Código Penal português. Os agressores tomam estas atitudes bárbaras, porque sabem que nada lhes vai acontecer", indica Dalila Veiga.
Além de uma resposta judicial mais célere, os médicos pedem ainda outro acompanhamento: "o que exigimos é que haja um protocolo para acompanhar os médicos que são agredidos. O crime é praticado no local de trabalho, mas na maioria das vezes é o médico que tem de se preocupar com isso. Têm de resolver sozinhos", refere Noel Carrilho.
Com Graça Henriques