Cinemas português e de Angola sem leaks são aposta do festival de Roterdão

O Festival de Roterdão que terminou neste fim de semana voltou a apostar com insistência no cinema português. <em>Mosquito </em>foi a maior sensação, mas de Angola surgiu a grande coqueluche desta edição, <em>Ar Condicionado</em>, um conto mágico numa Luanda sem<em> leaks</em> e com ar condicionados a voar...
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Sempre foi um caso de amor bonito este do Festival de Roterdão e o cinema português. No último ano do mandato do diretor artístico Bero Beyer não houve exceção. Apesar dos júris das diversas secções não terem querido nada com o cinema nacional, 2020 foi contundente para Portugal. Em produções nacionais ou coproduções com o Brasil, o primeiro grande festival do ano viu um fulgor português que vai deixar marcas.

A começar pelo impacto tremendo que Mosquito, de João Nuno Pinto, provocou. Filme de abertura do certame, Mosquito foi alvo de uma torrencial leva de elogios e, segundo o próprio realizador, convidado desde logo para um substancial circuito nos festivais internacionais. O filme conta a história do avô do realizador, Zacarias, um soldado português que em 1917 se perdeu do seu pelotão em Moçambique, em plena ação militar da Primeira Guerra Mundial. Obra em estado de transe, marcada por um trabalho sensorial de câmara e com um João Nunes Monteiro a revelar-se por completo. Será também uma fita capaz de reabrir feridas acerca do colonialismo português em África...

Mais brasileiro do que português, Desterro, de Maria Clara Escobar, com o dedo do coletivo português Terratreme, foi outro dos destaques. História de uma jovem mãe em viagem entre o Brasil e a Argentina ou uma crónica sobre o mal-estar do quotidiano de um casal de São Paulo. Obra de ruturas poético-punks, Desterro vive de silêncios desconcertáveis, daquilo que não se diz na intimidade das "vidas normais" mas explode em momentos "musicais", um deles ao som de Ana Maria, clássico do Trio Odemira. Maria Clara Escobar prova que é uma das cineastas mais fiáveis do novo cinema brasileiro num retrato de mulher com um fôlego e prenúncio de morte. Esperemos que este pequeno grande tratado existencialista encontre vida comercial nos cinemas portugueses.

Outra das pérolas de Roterdão também foi coproduzida entre Portugal e o Brasil. Chama-se Um Animal Amarelo, de Felipe Bragança, com Catarina Wallenstein e Isabél Zuaa, e é uma fascinante exploração na primeira pessoa das heranças da identidade brasileira. Vai do Brasil do começo do século passado até um Moçambique que exportava escravos, passando ainda por uma Lisboa racista dos nossos dias. Cinema livre e com o dedo nas feridas do colonialismo, é uma espécie de pesadelo ou sonho tropical que se apoia numa história de um cineasta a tentar filmar o mito do seu avô, que sonhava fazer fortuna em África. Uma viagem sobre as fronteiras de um trauma de mestiçagem e dos novos caminhos do nacionalismo. Quando é tragicómico é sempre mais eficaz, quando é vagabundo na sua trip afunda-se um pouco. João Nicolau ajudou no argumento de uma obra escrita com um pessimismo tão elegante como exuberante. Tem distribuição garantida entre nós e no elenco, além de Catarina Wallenstein, destacam-se Adriano Luz e Diogo Dória.

Nas curtas-metragens, referência a Ruby, de Mariana Gaivão, história de uma floresta queimada em Portugal. O filme já tinha tido a sua estreia mundial no Curtas Vila de Conde e é uma lufada de ar fresco no registo do coming of age, a passagem da adolescência à idade adulta. Uma obra tocada pela luz do verão.

Sandro Aguilar, o homem forte da produtora O Som e a Fúria, também competiu na secção dos Tigres média-metragem com Armour, cerca de 40 minutos de minimalismo experimental rodado no Quebec. Um filme ao sabor de uma intriga narrada em interlúdios toda em elipse e em que o papel do desenho de som ganha uma importância primordial. Não é mais do mesmo na obra do cineasta de Mariphasa, é, antes, sim uma exploração de novas texturas do ato de contar uma história.

Ainda nas curtas, referência a Chuva Acalenta a Dor, do cineasta brasileiro residente em Portugal Leonardo Mouramateus, adaptação de um conto de Marcel Schwob, com um dos grandes atores portugueses da nova geração, Mauro Soares. Um universo queer decantado até ao limite mas que fica aquém da longa anterior de Mouramateus, António Um Dois Três. Ainda assim, de lembrar que Roterdão consagrou um foco a este valor emergente do cinema brasileiro.

Nos documentários, o festival convocou também Luísa Homem, autora de Suzanne Daveau, um olhar sobre este nome mítico da geografia em Portugal e mulher com uma vida extraordinária. Suzanne Daveau já tinha sido um dos destaques do último DocLisboa.

Além desta avalancha portuguesa, impossível não esbarrar em Ar Condicionado , de Fradique, produção 100% angolana que imagina uma Luanda contemporânea tocada por um realismo mágico capaz de fazer que haja uma revolta nos aparelhos de ar condicionado. Jornada poética ao som de jazz, é um testemunho de uma criatividade angolana única. Luanda é a verdadeira protagonista deste conto originalíssimo. Para muitos, foi realmente a verdadeira coqueluche do festival.

Outro dos triunfos do "boca-a-boca" foi Énorme, de Sophie Letourneur, comédia com Marina Fois e Jonathan Cohen, em que se aborda o caso de um casal de quarentões à beira de um ataque de nervos depois da primeira gravidez. Humor humanista naquele que terá sido um dos casos mais populares em Roterdão.

O festival encerrou com Um Amigo Extraordinário, de Marielle Heller, com Tom Hanks (nomeado aqui ao Óscar de ator secundário) ao seu melhor nível, desta vez como Fred Rogers, o lendário apresentador de programas infantis na televisão americana. Uma belíssima meditação sobre a generosidade de um sonho americano, mas também um ensaio sobre o cinismo dos nossos tempos. Filme sereníssimo que em Portugal, por não ter mais nomeações nos Óscares, foi atirado para o mercado Home Cinema (e ainda temos de esperar uns meses).

Do Palmarés, referir que o Tigre, prémio máximo, foi para The Cloud in Her Room, do chinês Zheng Lu Xinyuan, enquanto o sul-coreano Beasts Clawing at Straws venceu o prémio do júri. Parasitas, na sua novíssima versão a preto e branco, arrecadou o prémio do público, provando assim a apetência asiática deste festival.

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