Um astronauta ao contrário para remexer a fundo no país?

António Costa chamou um engenheiro de minas para repensar a economia portuguesa. Líder da Partex, a petrolífera vendida pela Gulbenkian em 2019, quem é António Costa Silva?

Um homem pragmático, de pés no chão - o mesmo chão para onde olha para lançar a modernização da economia portuguesa -, um independente, sem simpatias partidárias conhecidas, que lidera a empresa que já foi a galinha dos ovos de ouro da Gulbenkian, a Partex, vendida no ano passado. Há quem lhe chame um "homem do petronegócio" e os partidos já vieram dizer que conversas só com ministros. António Costa Silva é o nome escolhido pelo primeiro-ministro para coordenar o Programa de Recuperação Económica depois da pandemia de covid-19.

A ideia do engenheiro de minas chamado pelo Governo para ajudar a preparar um plano para atirar a economia para cima começa... por baixo. Passa por sondar o fundo de Portugal, encontrar recursos numa das maiores zonas económicas exclusivas do mundo, e com eles criar elos nas cadeias de valor e ligações globais, às quais não são alheios os portos nacionais - desde logo, Sines, em expansão ao longo dos próximos anos, e visto como futura porta de entrada do gás natural na Europa. Passa ainda por revolver a terra, estender a fibra ótica a todo o país, qualificar estradas, mexer no abastecimento da água, reforçar o SNS ou capacitar as pequenas e médias empresas (PME) na transição digital, como referiu à RTP em entrevista do último domingo.

Um guião para os fundos europeus

Muitas destas ideias, como a aposta na economia do mar e o desenvolvimento dos portos, assim como a transição energética ou a transição digital, não são novas. Mas estão por fazer. Andam há alguns anos na agenda do país, com avanços e recuos. Mas de alguma forma juntam-se também num percurso pessoal ligado à geologia e a interesses múltiplos. Em entrevista ao jornal online Eco, António Costa Silva falou numa "visão integrada" para um plano de recuperação que irá absorver os fundos europeus que serão disponibilizados a partir do próximo ano. Assim o Conselho Europeu aprove o nível de financiamento já proposto pela Comissão Europeia, que poderá entregar a Portugal 15,5 mil milhões de euros em subvenções.

A agenda do homem chamado a consultor pelo primeiro-ministro encontra, aliás, algum paralelo naquela que foi apresentada pela Comissão de Ursula von der Leyen em início de mandato e que deverá, afinal, conformar a entrega dos fundos. Mas não é de hoje. Costa Silva, o gestor da petrolífera Partex, vem-na anunciando há alguns anos em entrevistas e noutras comunicações publicadas, num percurso fora da política e que encontra interesses que se estendem desde a geopolítica à poesia e à ficção.

Na face menos visível, António Costa Silva é também António Valis, quase como Novalis, o engenheiro de minas que deu ao romantismo alemão A Flor Azul: terá sido ele que disse que o engenheiro de minas era um astronauta ao contrário, a explorar também ele mundos desconhecidos, como referia no final do ano passado Costa Silva em entrevista ao Dinheiro Vivo e TSF para explicar o que faz um gestor no meio da literatura.

Nos livros, encontra-se uma espécie de sumário lírico das atrações deste homem do petróleo que fala em levantar o fundo dos mares e os seus minerais, as estradas e as condutas que nos trazem a Internet ou a água. No fundo, as infraestruturas, o que nos organiza na base. "O chão, sempre o chão a chamar-me, do fundo do tempo", escreve no poema "Bié-chão", publicado em livro a meias com Nicolau Santos, jornalista, amigo desde Luanda, que com ele conta quatro livros de poesia a quatro mãos.

Bié é a província natal. É onde fica Catabola, município no coração de Angola onde Costa Silva nasceu em 1952 e de onde partiu depois para Luanda. Foi lá, no início dos anos 1970, que a participação no centro cultural da universidade juntou Costa Silva a outros, primeiro à volta dos filmes, depois das questões políticas e da independência, num debate que acabaria por levar o atual gestor da Partex, sem historial de atividade política em Portugal, a três anos de prisão em Angola.

"Passou as passas do Algarve. Foi muito torturado", conta Nicolau dos Santos, amigo e membro do mesmo círculo académico em Luanda. "Fico sempre fascinado porque nem ele nem outros amigos que estiveram nessa situação se perderam no caminho. Quando foram expulsos e vieram para Portugal acabaram os cursos e fizeram carreiras notáveis."

Foi no Instituto Superior Técnico, em Lisboa e já não em Luanda, que Costa Silva terminou a licenciatura em Engenharia de Minas. Mas Costa Silva ainda chegou a trabalhar na Sonangol, passando depois pela Companhia Portuguesa de Serviços (CPS) e pela francesa CGG, multinacional especializada na análise de reservas de petróleo e gás, até chegar ao Instituto Francês do Petróleo, onde dirigiu projetos em campos de exploração na Argélia, no México, na Venezuela, na Arábia Saudita e no Irão, onde entrou em 2001 e ficou até 2003.

"Pouco depois de ter aceitado, o Rui Vilar, que era então o presidente da Gulbenkian, convidou-o para ser presidente da Partex", conta Nicolau Santos. "Ele disse que não fazia sentido porque estava há muito pouco tempo na empresa. O Rui Vilar disse 'então a gente fica à espera, de quanto tempo precisa? Seis meses? Um ano?' E esperaram."

Foi assim que António Costa Silva chegou à liderança da petrolífera da Fundação Calouste Gulbenkian, a Partex, vendida no final do ano passado aos tailandeses da PTTEP, que por esta via terão procurado uma entrada em novas concessões no Médio Oriente. Antes desta venda houve ainda negociações com o CEFC China Energy, grupo chinês que teve em 24 de abril falência declarada por um tribunal de Xangai, e envolvido em suspeitas de corrupção, ao qual a Gulbenkian acabaria por fechar as portas da Partex em abril de 2018.

No percurso pós-Angola de Costa Silva, ficou de parte a atividade política. Mas há quem lhe encontre capacidade de ser apreciado pela esquerda. "Houve pessoas que vieram desaguar em formações políticas mais conservadores, no PSD, no CDS, etc. O António Costa Silva manteve-se sempre independente, sem atividade política, mas muito fiel ao quadro de valores sociais daquele tempo. Manteve-se fiel não só a esse quadro de valores, como aos amigos, mesmo em termos de projeto de vida", diz Agostinho Pereira de Miranda, amigo também desde os tempos da universidade em Luanda, que também vem salientar uma ideia de uma necessidade de legitimação ética para o capitalismo no discurso de Costa Silva.

"Ele não está nada interessado em ser ministro"

Chamado agora como consultor para o que se espera que seja um plano de charneira a ligar Portugal a um futuro pós-covid com uma economia renovada, isso não significa porém, como garantiu o próprio e assegura quem o conhece, que haja também um futuro de atividade política na agenda. "Ele não está nada interessado em ser ministro, garanto eu. Nem em entrar para o Governo, nem vai aderir a nenhum partido. Tenho a certeza absoluta disso", diz Nicolau Santos.

O que não limitará resistências face a alguém que vem da área dos petróleos e que, mesmo fazendo a apologia do investimento nas energias renováveis, defendeu a exploração de gás natural no Algarve - num projeto da Partex e Repsol que o Governo de António Costa acabaria por chumbar em 2016 e que foi muito contestado.

Para Agostinho Pereira de Miranda, poderá haver também quem, dentro do Governo e nos restantes círculos da política, não o veja com bons olhos. "É uma pessoa com mais mundo do que muita gente no Governo e isso - já que estamos muito condicionados pela conjuntura nacional - pode tornar a sua função mais difícil com outros membros do Governo, que claramente têm uma visão um bocadinho mais paroquial destas coisas." O advogado e amigo, também ligado ao setor da energia, vê Costa Silva como uma figura que "tende a ser maltratada pelo establishment político". "Receio bem que isso venha a acontecer. Mas, tendo ele uma dose de idealismo, é também pragmático, e penso que está preparado para esses embates."

Não há conversa: partidos só falam com ministros

O semanário Expresso avançou neste fim de semana que António Costa Silva foi convidado pelo primeiro-ministro para delinear o plano de retoma da economia a médio e longo prazo, uma espécie de "paraministro" com a tarefa de articular posições entre ministérios e também de ouvir os parceiros sociais e os partidos da oposição. Mas, pelo menos, este último é um cenário que não se concretizará: um a um, os vários partidos vieram dizer que não aceitam o engenheiro de minas como interlocutor. Nesta segunda-feira foi a vez do líder do PSD, Rui Rio, sublinhar que não tem "rigorosamente nada contra nem a favor que o Governo ausculte quem quer que seja e encomende o trabalho a quem quer que seja", mas acrescentando que "no momento de conversar, os interlocutores do Governo têm de ser os ministros".

Também o BE, pela voz de Catarina Martins, já tinha avisado que só "negoceia com membros do Governo, como fez até agora e como mandam, aliás, as regras da boa transparência da nossa democracia". Logo no sábado, o CDS emitiu um comunicado recusando conversas com António Costa Silva: "O primeiro-ministro pode escolher com quem é que os seus ministros se aconselham, mas em matéria de governação do país o CDS deve falar com o Governo e não com quem o Governo fala". Quem não poupou nas críticas à escolha de António Costa e Silva foi o PAN, que reagiu com "absoluto espanto" ao nome escolhido pelo primeiro-ministro para definir o plano de recuperação económica e social do país. "Um homem do petronegócio, que até agora tem representado os interesses das grandes petrolíferas em Portugal e que tem uma já conhecida visão económica assente na destruição de ecossistemas e de património natural, no desrespeito da vontade das populações e no desprezo pelos efeitos das alterações climáticas", apontou o partido, em comunicado.

Já depois de o primeiro-ministro ter confirmado que convidou o gestor da Partex para "coordenar a preparação do Programa de Recuperação Económica", António Costa e Silva disse na RTP, na noite de domingo, que o seu papel não passa por se reunir com os partidos: "A minha missão não é negociar, a minha missão é fazer o plano. Quem vai negociar e estabelecer prioridades é o Governo."

A caminho da remodelação?

Na mesma entrevista à televisão pública, António Costa e Silva afastou qualquer cenário de vir a integrar o executivo numa próxima remodelação, que pode ocorrer em breve, com a esperada saída de Mário Centeno - que o Expresso aponta para julho, após a aprovação do Orçamento suplementar - e que envolveria a transição de Pedro Siza Vieira para as Finanças, com o gestor da Partex a ocupar então a pasta da Economia. Mas António Costa Silva põe-se fora desta equação. Logo no sábado, em declarações ao Eco, já tinha afirmado: "Continuo na minha empresa e o resto são especulações sem fundamento." O engenheiro de minas mantém-se na Partex e está a trabalhar neste plano pro bono.

Não é a primeira vez que António Costa chama alguém fora do Governo para gerir dossiês importantes, embora em situações com contornos diferentes. Foi assim com a "reversão" da privatização da TAP, conduzida por Diogo Lacerda Machado em nome do primeiro-ministro, situação que se repetiu com os lesados do BES - mas neste caso tratava-se de dossiês específicos, de particular melindre político, e Lacerda Machado é amigo pessoal de longa data do primeiro-ministro. Não é o caso de António Costa Silva, dado que ambos não se conheciam até ao convite para definir a estratégia para a reorganização da economia.

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