O Haiti não é aqui
Estou longe de estar descansado com o plano de vacinação. Não sei se a logística está bem organizada ou se os centros de saúde estão bem preparados e equipados. Apesar de não poder estar mais de acordo sobre deverem ser as pessoas ligadas à saúde as primeiras a ser vacinadas, consigo dizer apenas que acho que devem ser as pessoas que mais risco de vida correm se contraírem o vírus as seguintes na enorme fila.
A verdade é que nada sei sobre como organizar uma operação de vacinação em massa e ainda menos sobre quais devem ser os critérios científicos e políticos para escolher as pessoas a vacinar primeiro.
Sei, porém, outras coisas. Sei que nunca, em Portugal ou noutro país, se montou uma operação para vacinar tanta gente e tão depressa, e que é impossível que decorra sem falhas, muitas falhas. Sei que o nosso país tem um programa de vacinação exemplar e que pede meças a qualquer outro de qualquer país do mundo. Sei que o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), apesar de exangue de todo o desinvestimento ao longo dos anos e de todos os erros cometidos, respondeu de uma maneira notável a esta gigantesca crise - se não percebermos desta vez como comunidade, de uma vez por todas, a importância do SNS, nunca chegaremos a perceber. E, sobretudo, sei que Portugal tem ao longo destes anos de democracia respondido muito bem a momentos de crise em que organização e espírito de comunidade foram essenciais.
No entanto, não faltaram, nem faltam, vozes a anunciar vários desastres.
Primeiro, foi a falta de previsão e preparação da segunda vaga de contaminação. Como não houve país que não a tivesse sofrido, e muitos deles com bem mais recursos do que o nosso, presumo que haja muitos portugueses na elaboração das previsões e preparações para o ataque à pandemia por esse mundo fora. Mesmo com o crescimento enorme de infetados e com muitos mais internamentos e doentes nos cuidados intensivos, o nosso SNS aguentou-se melhor do que muitos dos nossos parceiros europeus e, apesar de terem aumentado as restrições, não foram necessárias medidas radicais como o confinamento total. Ao contrário, diga-se, de outros países.
Depois, com o anúncio da chegada da vacina, foi gritado aos quatro ventos que não havia plano. Todos os países do mundo tinham tudo programado há meses, mas nós estávamos distraídos. Afinal, havia plano e nem sequer houve grande contestação às principais opções.
Além disso, basta estarmos atentos à comunicação social para sabermos que é certo e sabido que vai correr tudo mal. A coisa é tão previsível que é notícia aparecerem coisas a correr bem. Pelos vistos, foi preciso uma pandemia para a história de o cão morder uma pessoa ser notícia.
Chegou-se ao ridículo de criticar o facto de a primeira pessoa a ser vacinada ser um médico infecciologista, de 65 anos, responsável por um serviço de combate à pandemia.
Este pessimismo, instalado por muitos com acesso ao espaço público, sobre a vacinação contra a covid-19, é tudo menos inesperado, mas não deixa de ser estranho. É que a história de este tipo de situações, em Portugal, correr sempre mal e que somos - estou a falar dos tempos da nossa democracia - um país de improvisos e desenrascanços está estabelecida e até ajuda a vender comentários e colunas de opinião. Tem só o problema de não corresponder à verdade.
O que surpreende é um país que tem desinvestido tanto nas funções essenciais do Estado - o que depois resulta em falhanços como Pedrógão ou Tancos ou que deixa o SNS e a educação pública degradarem-se tanto - conseguir reagir tão bem a crises destas ou a outros desafios que exigem planeamento e rapidez de processos.
E é bom que fique claro: isto resulta de uma capacidade coletiva que se vai repetindo e não de quem exerce conjunturalmente o poder. Sendo certo que quem tem a responsabilidade em cada altura merece os devidos elogios.
Claro que este ano será muito complicado. É provável que a crise económica que vamos enfrentar até faça os problemas de saúde pública parecerem menores. Que não se perca nunca o espírito crítico e muito menos se deixe de escrutinar as decisões do poder político. Mas é fundamental não dar ouvidos aos profetas da desgraça e a quem aproveita rigorosamente tudo para nos tentar atirar para trincheiras políticas de onde só se acrescenta caos ao caos. Bom ano.
(título roubado ao Caetano Veloso)