Parque Mayer: não há tirinhos mas ainda há revista

O Capitólio foi renovado mas as obras do Variedades estão paradas. Só no Teatro Maria Vitória, a vida continua como sempre foi: de cada vez que sobe o pano a ordem é para cantar e fazer rir.

"Alzira? Mas onde é que ele foi buscar o Retiro da Alzira? Nunca houve aqui nenhuma Alzira!" Dona Gina ainda não viu o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, Parque Mayer, que se estreia na próxima quinta-feira, mas depois de ver as cenas que a neta lhe mostrou no YouTube já tem a crítica pronta: "Podia ter posto aqui o nosso restaurante, não é?" Afinal, há 56 anos que Georgina está ali, a fazer cozido à portuguesa e pataniscas de bacalhau, e antes dela o restaurante já existia: "Deve ter mais de cem anos", lança. "Isto chegou a ter uma dúzia de restaurantes, agora só cá estou eu."

Assim que chegamos à entrada do Parque, junto à bilheteira, veem-se logo os cartazes anunciando o bacalhau e a posta de Montalegre, cozinha portuguesa "já aqui", "already here" para os turistas. "Nunca nos faltaram clientes, mesmo quando isto estava muito mau", garante, feliz, a dona do restaurante, Gina. "No tempo da Bragaparques isto estava tudo abandonado, havia muito lixo, ninguém queria saber de nós. Mas agora com a câmara as coisas estão melhor, arranjaram os esgotos e estão a fazer obras. Vamos lá ver como isto fica."

Dona Gina e o empresário Hélder Freire Costa, responsável pelo Teatro Maria Vitória, são os dois sobreviventes do antigo Parque Mayer. Foram os únicos que recusaram o dinheiro que lhes ofereceram para libertarem os terrenos. "Eu sempre disse que só saía se me dessem outro teatro", conta Hélder Costa. "Sei que há pessoas que pensam que foi um disparate, que eu devia ter aceitado o dinheiro. Mas esta é a minha casa. E tinha responsabilidades para com as pessoas."

Há 54 anos que Hélder Costa deixou o seu emprego num banco da Baixa e começou a trabalhar no Parque Mayer e hoje é ele quem mantém vivo o espetáculo de revista naquele espaço. "Já tivemos fases muito más", admite. "Na última grande crise", há dez anos, tinham em cena o espetáculo A Revista É Linda: "Vínhamos de um período bom, todos ganhavam bem, havia uma orquestra em palco. Foi a última vez que tivemos músicos. Levei uma grande cacetada. Terminámos o espetáculo com um aperto tremendo, a dever dinheiro a toda a gente, ainda estou a recuperar disso", desabafa. "Agora estamos numa fase nim. Continuamos a trabalhar e vamos ver o que acontece aqui [no Parque Mayer]."

"Preciso de uma nova revista, mas o que me convinha era que esta nova produção fosse baratinha", canta o "senhor Costa" pela voz do ator Flávio Gil, no número de abertura da revista Parque Mania, atualmente em cena no Maria Vitória. Todas as noites, o verdadeiro Costa assoma à varanda por cima do palco com o seu cabelo branco e ri-se com o boneco de si mesmo: "Temos de brincar com a situação, não é?"

Obras intermináveis

À porta do Maria Vitória, esfregando as mãos por causa do frio, um grupo de atores e bailarinos fumam uns cigarros, já com o rosto coberto de base e rímel nos olhos. Falta menos de uma hora para o início do espetáculo nesta sexta-feira à noite movimentada no Parque Mayer. "Isto hoje está uma agitação", comenta Hélder Freire Costa, referindo-se às barraquinhas de cerveja e à música estridente que sai das colunas no palco ao ar livre do Capitólio, mesmo ali à frente. É noite de Festival Super Bock em Stock e o empresário não está nada satisfeito: "Isto obviamente incomoda-nos porque, apesar de tudo, a revista também tem momentos sérios e de silêncio e lá dentro ouve-se este ruído de fundo." A crítica, aliás, estende-se mesmo aos dias em que os concertos acontecem dentro do Capitólio: "Ficou tudo mal feito, é uma barulheira enorme", queixa-se Gina, que, além de ter de gerir as queixas dos clientes, também mora ali, por cima do restaurante, e por isso não tem muita paciência para "músicas fora de horas": "Já chegámos até a chamar a polícia."

O Capitólio é, para já, o cartão-de-visita do novo Parque Mayer, aquele que há de resultar do plano de pormenor aprovado pelo município em 2012 e que prevê intervenções não só nos teatros como em toda a zona envolvente (do Jardim Botânico à Avenida da Liberdade). Primeiro, o ABC foi demolido e no seu lugar foi criado um parque de estacionamento explorado pela EMEL, onde é possível pagar 127,20 para ter lugar no centro da cidade durante um mês inteiro ou apenas 1,25 euros por uma hora de parqueamento. Depois, o Capitólio sofreu profundas obras de remodelação, tendo sido reinaugurado em fevereiro deste ano com programação da Sons em Trânsito. Nove meses depois, Vasco Sacramento garante que está a ser uma aposta ganha: "Já tivemos aqui mais de cem espetáculos, de fado, hip hop, teatro, stand-up comedy e outros." Neste fim de semana foi Márcia, em fevereiro hão de ser os Yo La Tengo, pelo meio atua Salvador Martinha. "Sentíamos que fazia falta uma sala desta dimensão média para concertos em pé, ao estilo dos clubes que existem noutras cidades estrangeiras, e penso que o Capitólio já entrou na agenda da cidade de Lisboa", conclui o promotor.

Quanto ao Variedades, as obras, iniciadas a 13 de fevereiro de 2017 pela empresa Soares da Costa e que, de acordo com a placa afixada no tapume, deveriam estar terminadas no prazo de 365 dias, encontram-se neste momento paradas. Questionada, a Câmara de Lisboa responde por mail: "A obra de reabilitação do Teatro Variedades arrancou em 2017 mas, neste momento, encontra-se suspensa em virtude de a CML ter rescindido a empreitada por incumprimento do empreiteiro, estando a ser preparado o lançamento de um novo concurso público para a realização dos trabalhos."

Se Vasco Sacramento espera que as obras do Variedades avancem rapidamente para que o Parque possa ter "cada vez mais dinâmica", Hélder Freire Costa admite que não veria com maus olhos mudar-se para o renovado auditório, ainda que temporariamente, "enquanto se fizerem obras no Maria Vitória": "Não quero acreditar que a câmara quer acabar com a revista no Parque Mayer", diz, confiante. Mas a verdade é que sobre o futuro destes dois teatros a câmara nada diz para já.

Quem vem aqui é para rir

A voz no interfone avisa que faltam 30 minutos para o início do espetáculo. Para lá da cortina ouve-se o burburinho do público a entrar na sala e a sentar-se nas apertadas cadeiras do Maria Vitória. Algumas poltronas têm uma placa com o nome de estrelas de outros tempos, como Laura Alves ou Fernanda Batista, nas paredes há fotografias de Ivone Silva, Francisco Nicholson, Beatriz Costa, Raul Solnado e muitos outros. "Gostamos de homenagear os artistas que por aqui passaram", explica o empresário. "Esse foi sempre o espírito da revista."

Agora também há estrelas: nem que seja em formato de papel, afixado na porta dos camarins com o nome do seu ocupante. Atrás do palco, no corredor do rés-do-chão, ficam os oito bailarinos. No primeiro andar, um corredor inteiro só para os oito atores. E ainda há um segundo andar com camarins vazios, do tempo em que os elencos eram extensos. Na lateral do palco, um camarim improvisado e duas ajudantes facilitam as trocas de roupa durante o espetáculo. É um despe e veste constante. Passam estrelas de roupões e pantufas. Não há glamour que resista aos bastidores frios de um teatro antigo.

José Sócrates e Passos Coelho ainda são tema de piadas, entre muitas alfinetadas aos políticos, aos polémicos processos judiciais em curso, ao futebol e até ao Me Too. "A revista não vai acabar porque é um teatro do seu tempo", garante Flávio Gil, ator, encenador e um dos autores desta Parque Mania (e que também faz um pequeno papel no filme Parque Mayer). "Pode ser um género antigo na sua forma, mas vai-se atualizando e transformando, quer na linguagem quer nos temas." Há menos piadas brejeiras, quase não há palavrões. "Há um menu da revista que nós respeitamos na íntegra, isso não se muda. Mas depois são sketches com diferentes tipo de humor, que podiam estar num qualquer espetáculo de comédia", explica Miguel Dias, ator e também coautor.

Gargalhadas. O ator da revista alimenta-se delas. Não é preciso recuar aos anos 1930 do filme de António-Pedro Vasconcelos para ver o público a rir, satisfeito, no Parque Mayer. Antes do intervalo, o ator Paulo Vasco agradece a presença dos vários grupos excursionistas e lembra que no Natal e no Ano Novo também há espetáculo. Coisa muito rara hoje em dia, como raro é também o facto de o espetáculo estar em cena de setembro a junho. "Este público é fantástico", diz a atriz Susana Cacela. "Ficam à nossa espera à porta, para nos dar beijinhos e oferecer prendas e tudo. Isto não acontece em mais lado nenhum."

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