Demorou dez anos até o poder político receber uma proposta sobre os mecanismos de apoio das Forças Armadas (FA) às polícias na segurança interna, dossiê marcado pela resistência dos militares em atuarem sob comando e direção das autoridades civis..O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, recebeu em julho a proposta que o chefe do Estado-Maior-General das FA (CEMGFA) consensualizou, com a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI), sobre os mecanismos de apoio dos militares às Forças e Serviços de Segurança (FSS) em casos de ameaça grave à segurança interna, mas quando não seja decretado o estado de sítio..Trata-se de definir estruturas e procedimentos - leia-se organização operacional e regras de empenhamento - que "garantam a interoperabilidade de equipamentos e sistemas, bem como o uso em comum de meios operacionais" para "assegurar a cooperação" entre FA e FSS. Nos últimos dias, por exemplo, tem-se falado sobre o papel que os militares poderão ter durante a greve dos motoristas de matérias perigosas..Gomes Cravinho disse na segunda-feira que as "implicações jurídicas e constitucionais delicadas" do documento estavam a ser analisadas - e só "dentro das próximas semanas estamos em condições de avançar ou fazer alterações que venham a ser necessárias", acrescentou. Segundo a Lei de Defesa Nacional (LDN), cabe ao ministro da Defesa "coordenar e orientar as ações necessárias para garantir a colaboração das FA com as FSS"..A LDN diz ainda que "compete ao Governo [...] aprovar os mecanismos que assegurem a cooperação entre as FA e as FSS, tendo em vista o cumprimento conjugado das suas missões no âmbito do combate a agressões ou ameaças transnacionais"..Já a Lei Orgânica de Bases da Organização das FA (LOBOFA) diz que "compete ao CEMGFA e ao SGSSI assegurar entre si a articulação operacional"..O 11 de Setembro.Foi em julho de 2009 que a Assembleia da República aprovou os dois diplomas - LOBOFA e LDN - em que, pela primeira vez, é dito que as FA cooperam com as FSS "nos termos da Constituição e da Lei"..Nessa altura já tinham passado oito anos sobre os ataques terroristas do 11 de Setembro. Em face do pedido do então ministro da Defesa, Rui Pena, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) pronunciou-se sobre a intervenção dos militares em situações de ameaça grave à segurança interna como as ocorridas nos EUA..Num parecer de 2001, que o governo homologou ainda em dezembro, a PGR considerou "existir um consenso alargado assente na autonomia específica da política de defesa nacional cuja componente militar não se confunde com funções policiais, e que por isso não se destinam as FA à garantia da ordem interna"..Isso ficou claro a partir de 1982, quando "o conceito constitucional de defesa nacional passou a ter como vetor essencial a segurança do País contra agressões ou ameaças externas, através das FA, distinguindo-se da defesa da ordem interna, constitucionalmente cometida à polícia", observou a PGR.."O legislador constitucional de 1982 adotou, assim, uma conceção mais restrita de defesa nacional, concebida essencialmente como um instrumento garantístico dos elementos do Estado ("independência nacional", "integridade do território" e "populações") e direcionada exclusivamente para o plano externo", observou a PGR, acrescentando: "A preocupação fundamental que presidiu à alteração dos preceitos acabados de referir foi, por um lado, separar a defesa nacional da defesa da ordem interna (segurança interna) e, por outro, redefinir o modelo constitucional das FA, em conformidade com o que vigorava nas constituições democráticas do mundo ocidental, através da sua subordinação de forma inequívoca e substancial ao poder político.".Contudo, a PGR reconheceu que "a defesa militar poderá envolver uma componente externa, caracterizada pelo exercício de um direito de legítima defesa [... ] e uma componente interna, dirigida à estrita proteção dos mesmos bens jurídicos contra ameaças externas, dentro do espaço físico do território nacional" - em cujo "quadro constitucional atual as FA não poderão, em princípio, ser chamadas a desempenhar funções de defesa da ordem interna, a não ser nos casos expressamente previstos na Constituição e na lei."."Evidentemente inaceitável", escreve general.Apesar dessa revisão constitucional de 1982, que alterou profundamente os limites de atuação dos militares desde a monarquia e durante o Estado Novo, nas FA houve quem continuasse a pensar - e a atuar, como se foi verificando nos casos da recusa em atuar sob a autoridade das polícias, em querer exercer a autoridade do Estado no mar ou, ainda, rejeitar a decisão da PGR em atribuir à PJ a investigação do furto de Tancos - como se nada tivesse mudado..Essa posição foi institucionalmente assumida perante o governo no ano seguinte ao da aprovação da LOBOFA e da LDN pelo então CEMGFA, general Valença Pinto: "É evidentemente inaceitável" o que o então SGSSI, juiz Mário Mendes, lhe transmitira com base na Constituição e na lei..Valença Pinto declarou na segunda-feira ao DN ser "redondamente falso" o que o jornal escrevera nesse dia: que, como CEMGFA, "qualificou formalmente como 'evidentemente inaceitável' - em documento enviado ao ministro da tutela, Augusto Santos Silva - o que o então SGSSI, juiz Mário Mendes, lhe transmitira com base na Constituição e nas leis aprovadas pelo poder político: os militares não têm competências próprias no território nacional, exceto se for declarado o estado de sítio"..Contudo, as fontes do DN são taxativas: Valença Pinto, após elencar as restrições referidas por Mário Mendes, declarou que "tal visão é evidentemente inaceitável", e acrescentou: "Se a dimensão da investigação criminal não deve de facto ser associada às FA, já as demais restrições, a serem-no na sua totalidade, inviabilizam na prática a atuação militar.".Os militares estarem "impossibilitados de aplicar as medidas de polícia e medidas especiais de polícia", só poderem deter suspeitos "em situações de flagrante delito", não poderem usar a "força ou outros meios de coerção" nem disparar ou dar ordens a civis foram algumas das restrições referidas no estudo de Mário Mendes e que a Constituição e a lei impõem aos militares fora dos quartéis em tempo de paz..Valença Pinto acrescentou ainda que "também não é aceitável que as FA devam agir neste âmbito sob 'a direção e supervisão das FSS'"..Note-se que a Lei de Segurança Interna dá ao SGSSI competências de "coordenação, direção, controlo e comando operacional" nas missões desenvolvidas em território nacional, nomeadamente em casos de ameaça grave como são os ataques terroristas..O estudo que o juiz Mário Mendes enviara ao general Valença Pinto, após citar a Constituição e elencar as várias leis com relevância para o caso, bem como o referido parecer da PGR, indicava os limites legais que daí decorriam para a atuação das FA na segurança interna..Note-se que estas regras são semelhantes às que vigoram na generalidade das democracias ocidentais - como em França ou Bélgica..Autoridade do Estado no mar.Outra área onde as coisas parecem estar a mexer é a do exercício da autoridade do Estado no mar, oito anos após a Armada ter apresentado uma proposta de racionalização dessas estruturas sem aludir à Constituição - e assumindo todas essas responsabilidades..A caminho das próximas eleições legislativas, partidos como o PS e o PSD referem agora expressamente essa matéria nos seus programas eleitorais: os socialistas propõem-se "consolidar o enquadramento e estruturas da Autoridade Marítima Nacional no ordenamento jurídico nacional" e os sociais-democratas em criar uma "Guarda Costeira com base na estrutura da Armada"..Estas propostas traduzem a noção de que os militares da Armada, ao contrário do que têm afirmado e escrito ao longo dos anos, não têm autoridade ou competências legais para exercerem a autoridade do Estado no mar.